- Raul Silva
- 21 de ago.
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Enviado ao STF, o relatório final da Polícia Federal reúne documentos, mensagens e movimentações financeiras que delineiam um roteiro que vai da minuta de pedido de asilo na Argentina à internacionalização da pressão contra o Supremo. Os achados permitem reconstituir a sequência dos fatos e medir seus efeitos no tabuleiro político, dentro e fora do país.

A peça final da Polícia Federal revela um padrão de conduta que combina tentativa de interferência em processo no STF, movimento coordenado de pressão transnacional e planos de evasão amparados por uma minuta de asilo à Argentina sob Javier Milei. Não se trata de episódios isolados, mas de uma sequência coerente de iniciativas que, somadas, buscam subverter a jurisdição brasileira, deslegitimar decisões do Supremo e preservar capital político por meio de uma narrativa de perseguição.
O ponto de partida é a constatação material de que o celular de Jair Bolsonaro abrigava uma minuta de pedido de asilo endereçada ao presidente argentino. A abertura do documento apresenta a chave da defesa narrativa:
“De início, devo dizer que sou, em meu país de origem, perseguido por motivos e por delitos essencialmente políticos.”
A peça invoca ainda medidas cautelares e os artigos 359-I e 359-M do Código Penal, típicos do capítulo sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito, num esforço de vestir a controvérsia com o figurino do delito político. Ao estruturar-se como petição de refúgio, o texto opera em duas frentes simultâneas: jurídica e comunicacional. Busca, de um lado, inserir-se na tradição do asilo por perseguição; de outro, transformar um litígio penal em disputa de versões perante plateias externas e internas, deslocando o foco da materialidade dos atos para a retórica da vítima.

A PF registra que os “elementos informativos” apontam para o fato de que o ex-presidente “tinha em sua posse documento que viabilizaria sua evasão do Brasil em direção à República Argentina”, em um recorte temporal sensível: após a intensificação das investigações sobre crimes de abolição violenta da ordem democrática. O contexto imediato inclui a Operação Tempus Veritatis, de 8 de fevereiro de 2024, quando foi determinada a entrega do passaporte e atingidas figuras do entorno político e militar do investigado. A existência dessa minuta, ainda que não convertida em ação, cumpre papel de ato preparatório e evidencia planejamento. No plano processual, robustece a leitura de risco de fuga e recalibra a dosimetria de medidas cautelares; no plano político, corrói a versão de que haveria mera “perseguição”, pois introduz o dado objetivo de que uma alternativa de saída do país foi construída e mantida à mão.
A reação institucional mais precoce ao avanço das apurações veio sob a forma do descumprimento de cautelares. A PF identificou mensagem de Walter Braga Netto para o celular de Bolsonaro:
“Estou com este número pré-pago para qualquer emergência. Não tem zap. Somente FaceTime. Abs Braga Netto”, enviada às 00h31 de 9 de fevereiro de 2024, menos de um dia depois da operação que proibiu contatos entre investigados.
A perícia destaca o uso de linha pré‑paga recém-ativada e a preferência por FaceTime, elementos que sugerem a tentativa de estabelecer um canal paralelo de comunicação com menor rastreabilidade. A verificação técnico-financeira associa o número a uma chave PIX em nome de Braga Netto, consolidando autoria e afastando a hipótese de anonimato instrumental.
Na formulação da PF, o descumprimento das cautelares impostas pelo STF “menos de 24 horas após a ciência das proibições” revela “total desprezo […] quanto ao caráter vinculante das decisões” e agrava a ilicitude. Essa passagem projeta efeitos diretos: reforça a necessidade de medidas mais gravosas, aumenta a percepção de periculosidade processual e encarece o apoio público de atores do campo conservador que hesitam em bancar a imagem de quem desobedece frontalmente a Suprema Corte.
Em paralelo, o relatório mapeia a internacionalização da pressão institucional por meio de plataformas, advogados e peças judiciais no exterior. O eixo Rumble/TMTG aparece em comunicações atribuídas a Martin De Luca, que teria remetido a Bolsonaro, “na mesma data” do protocolo à Justiça dos EUA, peças relacionadas à ação contra ministro do STF — para a PF, um “indício relevante” de “desvio” quanto à finalidade real daquele litígio.
Há evidência material: uma versão impressa da ação, com o mesmo número de caso, foi apreendida na mesa do investigado; e o primeiro arquivo enviado em 14 de julho de 2025 “aborda pedido formulado pela RUMBLE INC. e TRUMP MEDIA & TECHNOLOGY GROUP […] para suplementar uma ação movida contra o ministro Alexandre de Moraes”. O elo comunicacional explicita-se em áudio transcrito:
“Martin, peço que você me oriente […] uma nota […] que eu possa fazer aqui, botar nas minhas mídias”.
Na leitura da PF, isso configura “liame subjetivo” e “convergência de interesses” voltados a “amplificar ataques” ao Supremo, com finalidade de deslegitimar decisões judiciais. Em termos práticos, trata-se de exportar o conflito doméstico e trazê-lo de volta como pressão reputacional, tentando criar, pela via transnacional, um custo político para o cumprimento das decisões internas.

No front doméstico, a engrenagem de intimidação e acossamento discursivo se completa com a coordenação de influenciadores e lideranças religiosas “com o objetivo de interferir” no curso da AP 2668-STF, com menções a Paulo Figueiredo e Silas Malafaia. Em trecho destacado, o relatório registra ameaças de Malafaia:
“a próxima retaliação vai ser à pessoa física. Vão atingir Alexandre de Moraes, alguns ministros do STF, Diretor de Polícia Federal, Procurador-Geral e suas famílias”.
O timing de postagens e a circulação de conteúdos no X, incluindo interações do próprio De Luca, sugerem uma coreografia de pressão destinada a deslocar o debate para o terreno do medo e da retaliação, reduzindo o espaço para a argumentação jurídica e programática. Politicamente, esse repertório tende a confinar o bolsonarismo em um reduto de alta temperatura retórica e baixa capacidade de expansão, sobretudo entre eleitores moderados.
A máquina não roda sem dinheiro. A investigação reporta que, após receber R$ 2 milhões de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro promoveu duas transferências para a conta de Heloísa Bolsonaro — R$ 50 mil em 19 de maio de 2025 e R$ 150 mil em 5 de junho de 2025, dia do depoimento do pai à PF. A conclusão textual da peça é inequívoca: Eduardo “utilizou a conta bancária de sua esposa como forma de escamotear os valores”, evitando bloqueios, numa simetria com o expediente de Jair ao transferir R$ 2 milhões a Michelle Bolsonaro um dia antes. “Artifício idêntico […] em clara demonstração de liame subjetivo”, sintetiza o documento, ao descrever a lógica de “contas de passagem” em datas sensíveis, aumentando a aparência de ocultação e justificando pleitos por medidas assecuratórias e cautelares.
O enquadramento penal dessa engrenagem combina dois tipos centrais. O artigo 344 define a coação no curso do processo como “usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio” contra autoridades envolvidas. O artigo 359-L alcança quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito”. Na leitura da PF, a primeira tipificação incide sobre a interferência direta na AP 2668-STF; a segunda, mais ampla, abarca condutas que atingem diretamente instituições democráticas, “objetivando subjugá-las a interesses pessoais”.
O relatório é explícito ao afirmar que os investigados “praticaram e continuam praticando condutas” que se amoldam, em tese, a esses tipos — ou seja, sustenta uma continuidade delitiva. Esse ponto é decisivo: a acusação não fala apenas de atos passados, mas de um processo em curso, cujo prolongamento justificaria cautelares mais duras e dificulta a vida de aliados que tentem tratar tudo como ‘página virada’.
Leia o Relatório na integra
No tabuleiro interno, os efeitos se espalham. A minuta de asilo cristaliza o dilema de aliados regionais e nacionais, que passam a ponderar o custo de sustentação política diante de evidências textuais e materiais de planejamento de evasão. O episódio do contato vedado em menos de 24 horas com Braga Netto oferece uma régua de comportamento que diminui a margem para narrativas moderadoras. A interface com Rumble/TMTG e a consultoria comunicacional descrita no áudio mostram que a disputa foi deslocada para arenas onde o barulho pode substituir a prova aos olhos da audiência, mas não neutraliza seus efeitos nos autos. O conjunto empurra as legendas de apoio a uma estratégia de dupla pista: retórica de solidariedade para a base e distanciamento operacional em eleições locais e na negociação federativa. Para o governo e as instituições, a peça legitima a defesa do caráter vinculante das decisões do STF, evocada textualmente no relatório, e provê base técnica para contenção sem espetáculo.
No plano externo, o asilo se revela menos como proteção jurídica e mais como busca de validação simbólica diante de plateias ideologicamente alinhadas. A tentativa de circundar a institucionalidade brasileira por atalho diplomático esbarra em tratados, custos reputacionais e na leitura, por parceiros, de que as condutas sob apuração se situam na esfera de obstrução de justiça e ataques à ordem democrática, categorias que, em geral, não se confundem com o tradicional “delito político”. A mensagem política subjacente é cristalina: asilo não é estratégia de defesa; é confissão de derrota narrativa — e a conta, para quem oferece guarida, cobra-se em capital diplomático e desgaste de imagem.
No balanço, o relatório final não é mero inventário de provas, mas um mapa de relações que conecta a minuta de asilo ao circuito de intimidação e às vias de internacionalização litigante, articulando o dinheiro como combustível e o descumprimento de cautelares como método. Ao final, produz-se um efeito erosivo: reduz-se a margem de manobra de Bolsonaro, isola-se o núcleo duro, constrangem-se aliados e informa-se a opinião pública com evidências difíceis de contornar.
A narrativa de vítima, sustentada por slogans, cede espaço a fatos: um rascunho que planeja a saída do país, uma mensagem enviada na madrugada para burlar proibições, um áudio pedindo orientação para “botar nas minhas mídias”, uma ameaça dirigida “à pessoa física”, e transferências financeiras que a própria PF descreve como meios para escamotear valores. Junta-se tudo, e o que se vê não é improviso: é roteiro.