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Enviado ao STF, o relatório final da Polícia Federal reúne documentos, mensagens e movimentações financeiras que delineiam um roteiro que vai da minuta de pedido de asilo na Argentina à internacionalização da pressão contra o Supremo. Os achados permitem reconstituir a sequência dos fatos e medir seus efeitos no tabuleiro político, dentro e fora do país.


O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, retratado aqui em um debate eleitoral em outubro, deixou seu país para a Flórida dois dias antes do término de seu mandato. Mauro Pimentel / AFP via Getty Images
O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, retratado aqui em um debate eleitoral em outubro, deixou seu país para a Flórida dois dias antes do término de seu mandato. Mauro Pimentel / AFP via Getty Images

A peça final da Polícia Federal revela um padrão de conduta que combina tentativa de interferência em processo no STF, movimento coordenado de pressão transnacional e planos de evasão amparados por uma minuta de asilo à Argentina sob Javier Milei. Não se trata de episódios isolados, mas de uma sequência coerente de iniciativas que, somadas, buscam subverter a jurisdição brasileira, deslegitimar decisões do Supremo e preservar capital político por meio de uma narrativa de perseguição.


O ponto de partida é a constatação material de que o celular de Jair Bolsonaro abrigava uma minuta de pedido de asilo endereçada ao presidente argentino. A abertura do documento apresenta a chave da defesa narrativa:


“De início, devo dizer que sou, em meu país de origem, perseguido por motivos e por delitos essencialmente políticos.”

A peça invoca ainda medidas cautelares e os artigos 359-I e 359-M do Código Penal, típicos do capítulo sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito, num esforço de vestir a controvérsia com o figurino do delito político. Ao estruturar-se como petição de refúgio, o texto opera em duas frentes simultâneas: jurídica e comunicacional. Busca, de um lado, inserir-se na tradição do asilo por perseguição; de outro, transformar um litígio penal em disputa de versões perante plateias externas e internas, deslocando o foco da materialidade dos atos para a retórica da vítima.


Marcelo Endelli/Getty Images
Marcelo Endelli/Getty Images

A PF registra que os “elementos informativos” apontam para o fato de que o ex-presidente “tinha em sua posse documento que viabilizaria sua evasão do Brasil em direção à República Argentina”, em um recorte temporal sensível: após a intensificação das investigações sobre crimes de abolição violenta da ordem democrática. O contexto imediato inclui a Operação Tempus Veritatis, de 8 de fevereiro de 2024, quando foi determinada a entrega do passaporte e atingidas figuras do entorno político e militar do investigado. A existência dessa minuta, ainda que não convertida em ação, cumpre papel de ato preparatório e evidencia planejamento. No plano processual, robustece a leitura de risco de fuga e recalibra a dosimetria de medidas cautelares; no plano político, corrói a versão de que haveria mera “perseguição”, pois introduz o dado objetivo de que uma alternativa de saída do país foi construída e mantida à mão.


A reação institucional mais precoce ao avanço das apurações veio sob a forma do descumprimento de cautelares. A PF identificou mensagem de Walter Braga Netto para o celular de Bolsonaro:


“Estou com este número pré-pago para qualquer emergência. Não tem zap. Somente FaceTime. Abs Braga Netto”, enviada às 00h31 de 9 de fevereiro de 2024, menos de um dia depois da operação que proibiu contatos entre investigados.

A perícia destaca o uso de linha pré‑paga recém-ativada e a preferência por FaceTime, elementos que sugerem a tentativa de estabelecer um canal paralelo de comunicação com menor rastreabilidade. A verificação técnico-financeira associa o número a uma chave PIX em nome de Braga Netto, consolidando autoria e afastando a hipótese de anonimato instrumental.


Na formulação da PF, o descumprimento das cautelares impostas pelo STF “menos de 24 horas após a ciência das proibições” revela “total desprezo […] quanto ao caráter vinculante das decisões” e agrava a ilicitude. Essa passagem projeta efeitos diretos: reforça a necessidade de medidas mais gravosas, aumenta a percepção de periculosidade processual e encarece o apoio público de atores do campo conservador que hesitam em bancar a imagem de quem desobedece frontalmente a Suprema Corte.


Em paralelo, o relatório mapeia a internacionalização da pressão institucional por meio de plataformas, advogados e peças judiciais no exterior. O eixo Rumble/TMTG aparece em comunicações atribuídas a Martin De Luca, que teria remetido a Bolsonaro, “na mesma data” do protocolo à Justiça dos EUA, peças relacionadas à ação contra ministro do STF — para a PF, um “indício relevante” de “desvio” quanto à finalidade real daquele litígio.


Há evidência material: uma versão impressa da ação, com o mesmo número de caso, foi apreendida na mesa do investigado; e o primeiro arquivo enviado em 14 de julho de 2025 “aborda pedido formulado pela RUMBLE INC. e TRUMP MEDIA & TECHNOLOGY GROUP […] para suplementar uma ação movida contra o ministro Alexandre de Moraes”. O elo comunicacional explicita-se em áudio transcrito:


Martin, peço que você me oriente […] uma nota […] que eu possa fazer aqui, botar nas minhas mídias”.

Na leitura da PF, isso configura “liame subjetivo” e “convergência de interesses” voltados a “amplificar ataques” ao Supremo, com finalidade de deslegitimar decisões judiciais. Em termos práticos, trata-se de exportar o conflito doméstico e trazê-lo de volta como pressão reputacional, tentando criar, pela via transnacional, um custo político para o cumprimento das decisões internas.


Malafaia em audiência sobre entidade familiar, em 2013 Lula Marques (Agência PT)
Malafaia em audiência sobre entidade familiar, em 2013 Lula Marques (Agência PT)

No front doméstico, a engrenagem de intimidação e acossamento discursivo se completa com a coordenação de influenciadores e lideranças religiosas “com o objetivo de interferir” no curso da AP 2668-STF, com menções a Paulo Figueiredo e Silas Malafaia. Em trecho destacado, o relatório registra ameaças de Malafaia:


a próxima retaliação vai ser à pessoa física. Vão atingir Alexandre de Moraes, alguns ministros do STF, Diretor de Polícia Federal, Procurador-Geral e suas famílias”.

O timing de postagens e a circulação de conteúdos no X, incluindo interações do próprio De Luca, sugerem uma coreografia de pressão destinada a deslocar o debate para o terreno do medo e da retaliação, reduzindo o espaço para a argumentação jurídica e programática. Politicamente, esse repertório tende a confinar o bolsonarismo em um reduto de alta temperatura retórica e baixa capacidade de expansão, sobretudo entre eleitores moderados.


A máquina não roda sem dinheiro. A investigação reporta que, após receber R$ 2 milhões de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro promoveu duas transferências para a conta de Heloísa Bolsonaro — R$ 50 mil em 19 de maio de 2025 e R$ 150 mil em 5 de junho de 2025, dia do depoimento do pai à PF. A conclusão textual da peça é inequívoca: Eduardo “utilizou a conta bancária de sua esposa como forma de escamotear os valores”, evitando bloqueios, numa simetria com o expediente de Jair ao transferir R$ 2 milhões a Michelle Bolsonaro um dia antes. “Artifício idêntico […] em clara demonstração de liame subjetivo”, sintetiza o documento, ao descrever a lógica de “contas de passagem” em datas sensíveis, aumentando a aparência de ocultação e justificando pleitos por medidas assecuratórias e cautelares.


O enquadramento penal dessa engrenagem combina dois tipos centrais. O artigo 344 define a coação no curso do processo como “usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio” contra autoridades envolvidas. O artigo 359-L alcança quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito”. Na leitura da PF, a primeira tipificação incide sobre a interferência direta na AP 2668-STF; a segunda, mais ampla, abarca condutas que atingem diretamente instituições democráticas, “objetivando subjugá-las a interesses pessoais”.


O relatório é explícito ao afirmar que os investigados “praticaram e continuam praticando condutas” que se amoldam, em tese, a esses tipos — ou seja, sustenta uma continuidade delitiva. Esse ponto é decisivo: a acusação não fala apenas de atos passados, mas de um processo em curso, cujo prolongamento justificaria cautelares mais duras e dificulta a vida de aliados que tentem tratar tudo como ‘página virada’.


Leia o Relatório na integra


No tabuleiro interno, os efeitos se espalham. A minuta de asilo cristaliza o dilema de aliados regionais e nacionais, que passam a ponderar o custo de sustentação política diante de evidências textuais e materiais de planejamento de evasão. O episódio do contato vedado em menos de 24 horas com Braga Netto oferece uma régua de comportamento que diminui a margem para narrativas moderadoras. A interface com Rumble/TMTG e a consultoria comunicacional descrita no áudio mostram que a disputa foi deslocada para arenas onde o barulho pode substituir a prova aos olhos da audiência, mas não neutraliza seus efeitos nos autos. O conjunto empurra as legendas de apoio a uma estratégia de dupla pista: retórica de solidariedade para a base e distanciamento operacional em eleições locais e na negociação federativa. Para o governo e as instituições, a peça legitima a defesa do caráter vinculante das decisões do STF, evocada textualmente no relatório, e provê base técnica para contenção sem espetáculo.


No plano externo, o asilo se revela menos como proteção jurídica e mais como busca de validação simbólica diante de plateias ideologicamente alinhadas. A tentativa de circundar a institucionalidade brasileira por atalho diplomático esbarra em tratados, custos reputacionais e na leitura, por parceiros, de que as condutas sob apuração se situam na esfera de obstrução de justiça e ataques à ordem democrática, categorias que, em geral, não se confundem com o tradicional “delito político”. A mensagem política subjacente é cristalina: asilo não é estratégia de defesa; é confissão de derrota narrativa — e a conta, para quem oferece guarida, cobra-se em capital diplomático e desgaste de imagem.


No balanço, o relatório final não é mero inventário de provas, mas um mapa de relações que conecta a minuta de asilo ao circuito de intimidação e às vias de internacionalização litigante, articulando o dinheiro como combustível e o descumprimento de cautelares como método. Ao final, produz-se um efeito erosivo: reduz-se a margem de manobra de Bolsonaro, isola-se o núcleo duro, constrangem-se aliados e informa-se a opinião pública com evidências difíceis de contornar.


A narrativa de vítima, sustentada por slogans, cede espaço a fatos: um rascunho que planeja a saída do país, uma mensagem enviada na madrugada para burlar proibições, um áudio pedindo orientação para “botar nas minhas mídias”, uma ameaça dirigida “à pessoa física”, e transferências financeiras que a própria PF descreve como meios para escamotear valores. Junta-se tudo, e o que se vê não é improviso: é roteiro.

 
 
 
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