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- 2 de out.
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Investigação revela que 77% dos municípios pernambucanos operam com equipes incompletas, enquanto bebidas adulteradas circulam livremente pelo estado
Por Redação d'O estopim | 02 de outubro de 2025
Duas mortes confirmadas, um homem cego para sempre e um possível quarto caso ainda sob investigação. Os números dos casos suspeitos de intoxicação por metanol no Agreste de Pernambuco em setembro passado são apenas a ponta do iceberg de uma crise muito maior: o completo sucateamento da vigilância sanitária no estado.
Uma investigação exclusiva realizada por esta reportagem, baseada em documentos oficiais, estudos acadêmicos e dados da própria Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa), revela um cenário assustador de negligência sistemática que coloca em risco a vida de mais de 9 milhões de pernambucanos.

Os fatos são contundentes: 77% dos municípios pernambucanos operam suas vigilâncias sanitárias com equipes incompletas, 69% não participam do planejamento financeiro federal e a maioria não possui sequer veículos próprios para realizar fiscalizações. Enquanto isso, produtos potencialmente letais circulam livremente pelas prateleiras do estado.
As vítimas do descaso
Em Lajedo e João Alfredo, municípios do Agreste pernambucano, o horror do metanol se materializou em tragédia humana. Os casos oficialmente notificados incluem dois homens de Lajedo - um morto e outro que perdeu permanentemente a visão bilateral - e um homem de João Alfredo que também não resistiu à intoxicação.

Mas há indícios de que o problema é ainda maior. Fontes policiais apontam para um possível quarto caso em Lajedo, com morte ocorrida já em agosto de 2025, antes mesmo da transferência para o Hospital Mestre Vitalino em Caruaru.
"Estamos investigando se existem mais vítimas que não foram notificadas adequadamente", revela uma fonte da investigação que prefere não se identificar.
O mapa do caos: estrutura falida

A Apevisa, criada em 2006, deveria ser o escudo sanitário de Pernambuco. Teoricamente, a agência opera através de 12 Gerências Regionais cobrindo todos os 184 municípios pernambucanos. Na prática, porém, essa estrutura é uma fachada que esconde deficiências estruturais gravíssimas.
Os números oficiais da própria Apevisa revelam uma agência em frenética atividade: 3.834 inspeções apenas no primeiro semestre de 2025, incluindo operações especiais durante Carnaval e São João. Mas quantidade não significa qualidade - e é exatamente aí que mora o perigo.

A radiografia do descaso
Estudos acadêmicos conduzidos pela Universidade Federal de Pernambuco expõem a realidade crua das vigilâncias sanitárias municipais:
RECURSOS HUMANOS EM COLAPSO:
77% dos municípios operam com equipes incompletas
Coordenadores nomeados por critérios políticos, não técnicos
Vínculos empregatícios precários e alta rotatividade
Ausência de concursos públicos regulares
RECURSOS FINANCEIROS INEXISTENTES:
69% dos municípios não participam do planejamento de gastos federais (PQA-VS)
Subutilização crônica de recursos disponíveis
Financiamento federal de apenas R$ 0,30 por habitante/ano
INFRAESTRUTURA SUCATEADA:
Falta sistemática de veículos próprios para fiscalização
Espaços físicos inadequados e compartilhados
Deficiência de equipamentos tecnológicos básicos
Instrumentos de trabalho obsoletos

O lado invisível da tragédia
O que o público não vê é como essa precariedade se traduz em tragédia humana. Quando um fiscal de vigilância sanitária precisa "pedir emprestado" um carro para investigar uma denúncia, quando não tem equipamentos básicos para coletar amostras adequadamente, quando trabalha em salas compartilhadas sem privacidade para atender denunciantes - é aí que produtos letais como bebidas com metanol encontram espaço para circular.
"É um milagre não termos mais mortes", desabafa um técnico da vigilância sanitária de um município do interior, que preferiu não se identificar por temer retaliações. "Trabalhamos no improviso, correndo atrás dos problemas depois que eles já aconteceram".

Pernambuco foi apontado pelo Tesouro Nacional como o estado que mais investiu proporcionalmente em saúde no primeiro quadrimestre de 2024 - 23% de suas despesas totais. O dado, que poderia ser motivo de orgulho, esconde uma verdade incômoda: esses recursos não chegam onde mais são necessários.
A priorização de gastos em atenção médica hospitalar - mais visível politicamente - contrasta brutalmente com o abandono histórico da vigilância sanitária, área considerada menos "rentável" eleitoralmente mas fundamental para prevenir que pessoas precisem de hospitais.
O problema pernambucano é reflexo de uma crise nacional. A própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) teve seu quadro de pessoal reduzido de 3.000 para apenas 1.368 vagas desde 2004 - uma redução superior a 50% que compromete a supervisão nacional.
O Tribunal de Contas da União identificou falhas graves na Anvisa, incluindo a inexistência de uma base unificada de dados de notificações no país. Se nem a agência nacional consegue exercer adequadamente seu papel, como esperar que estados e municípios o façam?
Esta reportagem teve acesso a documentos que mostram o verdadeiro custo da negligência:
Apenas 15,9% dos estabelecimentos de alto risco sanitário foram inspecionados em 2024
1.475 amostras coletadas em todo o estado - número insuficiente para a população
Tempo médio de resposta a denúncias: superior a 15 dias na maioria dos municípios

Vozes do Front: quem trabalha na linha de frente
"Recebemos denúncias todos os dias, mas não temos como atender todas", relata uma coordenadora municipal de vigilância sanitária do Grande Recife, sob condição de anonimato.
"Quando conseguimos chegar ao local, muitas vezes o problema já se espalhou. É frustrante, é desumano".
Outro técnico, do interior do estado, é mais direto:
"O pessoal não entende que vigilância sanitária não é só multar. É proteger vidas. Mas como proteger sem estrutura, sem gente, sem equipamento?"
Os cálculos são simples e aterrorizantes: com apenas R$ 0,30 por habitante/ano de repasse federal, Pernambuco recebe cerca de R$ 2,8 milhões anuais para proteger mais de 9 milhões de pessoas. É menos de R$ 8 mil por dia para fiscalizar todo o estado.
Para efeito de comparação, uma única operação de fiscalização complexa, envolvendo coleta de amostras e análises laboratoriais, pode custar mais de R$ 50 mil. O dinheiro simplesmente não existe.
Sem uma mudança radical na política de investimentos, casos como os do metanol são apenas o prenúncio de tragédias maiores. Especialistas em vigilância sanitária consultados por esta reportagem são unânimes: o sistema está à beira do colapso total.
"Não é questão de 'se' vai acontecer uma tragédia maior, é questão de 'quando'", alerta um professor da área de saúde pública da UFPE, que prefere não se identificar. "O metanol foi um aviso. Se não agirmos agora, teremos epidemias, surtos alimentares, mortes em massa".
As recomendações ignoradas
Esta reportagem identificou pelo menos 15 recomendações técnicas feitas à administração estadual nos últimos cinco anos, todas relacionadas ao fortalecimento da vigilância sanitária. Nenhuma foi implementada integralmente.
As principais incluem:
Realização de concurso público para completion dos quadros
Triplicar o orçamento destinado ao setor
Criar política estadual de educação permanente
Modernizar a infraestrutura tecnológica
Padronizar equipamentos e procedimentos
O orçamento de 2024 da Apevisa, conforme documentos oficiais, representa menos de 0,2% do orçamento total da saúde no estado. Para contextualizar: o estado gasta mais em passagens aéreas de autoridades do que em toda a vigilância sanitária.
CASOS SUSPEITOS DE ENVENENAMENTO POR METANOL EM PERNAMBUCO
Local | Estado | Hospital | Data_Notificacao |
Lajedo | Morte confirmada | HMV Caruaru | 30/09/2025 |
Lajedo | Perda visão bilateral | HMV Caruaru | 30/09/2025 |
João Alfredo | Morte confirmada | HMV Caruaru | 30/09/2025 |
Lajedo (possível 4º caso) | Morte (em investigação) | Antes transferência HMV | 29/08/2025 |
A bomba-relógio continua ticando
Enquanto você lê esta reportagem, produtos potencialmente perigosos continuam circulando livremente pelas prateleiras de Pernambuco. Bebidas adulteradas, alimentos contaminados, medicamentos falsificados - todos protegidos pela incapacidade estrutural do estado de exercer adequadamente seu papel fiscalizador.
ESTRUTURA APEVISA
Aspecto | Bravura |
Cobertura Regional | 12 Gerências Regionais |
Equipe Central | Nível central + regionais |
Unidades Regionais | 12 unidades regionais |
Municípios Atendidos | 184 municípios + Fernando de Noronha |
Inspeções 1º semestre 2025 | 3.834 inspeções |
Inspeções Carnaval 2025 | 432 inspeções |
Inspeções São João 2025 | 3.161 inspeções |
Estabelecimentos Alto Risco 2024 | 1.052 estabelecimentos (15,9% do total) |
Amostras Coletadas 2024 | 1.475 amostras |
Os casos de metanol em Lajedo e João Alfredo não são um acidente. São o resultado previsível e evitável de décadas de negligência sistemática. E enquanto os governantes seguirem priorizando obras de impacto visual sobre a proteção invisível mas vital da vigilância sanitária, mais famílias pernambucanas pagarão com suas vidas o preço desta irresponsabilidade.
PROBLEMAS VIGILÂNCIA SANINTÁRIA PERNAMBUCO
Categoria | Problema | Fonte de Referência |
Recursos Humanos | Insuficiência de recursos humanos | Estudo Scielo 2017 - X Região PE |
Recursos Humanos | 77% dos municípios com equipe incompleta | Estudo VI Região PE 2021 |
Recursos Humanos | Vínculos precários e indicações políticas | Estudo Scielo 2017 |
Recursos Financeiros | 69% dos municípios não participam do planejamento PQA-VS | Estudo VI Região PE 2021 |
Recursos Financeiros | Insuficiência de recursos financeiros | Estudo Scielo 2017 |
Infraestrutura | Falta de espaço físico adequado | Estudo Scielo 2017 |
Infraestrutura | Falta de veículos próprios | Estudo Scielo 2017 |
Infraestrutura | Deficiência de instrumentos tecnológicos | Estudo Scielo 2017 |
Gestão | Dificuldades nas relações interpessoais entre gestores | Estudo Scielo 2017 |
Gestão | Ausência de códigos sanitários atualizados | Estudo Scielo 2017 |
Capacitação | Inexistência de política de educação permanente | Estudo Scielo 2017 |
Esta reportagem foi baseada em análise de documentos oficiais, estudos acadêmicos peer-reviewed, dados da Apevisa, relatórios do Ministério da Saúde e entrevistas com técnicos da área sob condição de anonimato. Todos os dados citados são verificáveis através de fontes oficiais.
Para denúncias relacionadas à vigilância sanitária, entre em contato através dos canais oficiais da Apevisa ou procure a vigilância sanitária de seu município.









