Por Raul Silva para O estopim | 01 de outubro de 2025
Página inicial do prefácio de Bauman - Foto: Raul Silva
Bem-vindos ao nosso primeiro Diário de Leitura, uma nova seção que irá compor a parte literária do site O Estopim.
Neste espaço, vamos mergulhar em obras que nos ajudem a decifrar o complexo quebra-cabeça do nosso tempo. E para inaugurar este projeto, nada mais apropriado do que a leitura do livro Modernidade Líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. A motivação para começar com este livro é clara: a necessidade urgente de tentar entender a sociedade atual e o mundo em que vivemos, especialmente em uma era marcada pela pós-verdade, pela desinformação e por uma sensação de instabilidade constante.
Vamos, juntos, refletir sobre o que Bauman nos diz e como suas palavras, escritas na virada do milênio, parecem descrever perfeitamente o nosso presente.
A metáfora central: o Mundo se tornou Líquido
Bauman inicia sua reflexão com uma metáfora poderosa e que guiará todo o seu pensamento: a "fluidez" ou "liquidez" como o estado que define a nossa fase da modernidade. Ele recorre a uma definição quase de enciclopédia para nos lembrar das qualidades dos fluidos: eles não mantêm a forma, mudam constantemente sob pressão e, para eles, o que realmente importa é o fluxo do tempo, não o espaço que ocupam momentaneamente.
Ao contrário dos sólidos, que são estáveis, resistentes e neutralizam a passagem do tempo, os líquidos são móveis, leves e inconstantes. Pense nisso por um instante. Quantas áreas da nossa vida hoje não parecem se encaixar nessa descrição? Os empregos que já não são para a vida toda, os relacionamentos que se formam e dissolvem com a rapidez de um "match", as informações que nos inundam e desaparecem na mesma velocidade, as identidades que precisamos constantemente reconstruir nas redes sociais. Tudo parece ter perdido a solidez de outrora. A estabilidade virou sinônimo de estagnação, e a capacidade de se mover rápido, de viajar leve, tornou-se o maior dos trunfos.
Capa do livro - Editora Zahar - Foto: Raul Silva
Bauman, de forma brilhante, resgata a famosa frase de Karl Marx sobre a modernidade ter como principal tarefa "derreter tudo o que é sólido". No entanto, ele argumenta que essa tarefa mudou radicalmente de propósito.
Na primeira fase da modernidade, que podemos chamar de "sólida", o objetivo era derreter as velhas estruturas – como as tradições, as lealdades familiares e os costumes – para substituí-las por sólidos novos e melhores: o Estado-nação, a burocracia, as fábricas, as classes sociais bem definidas. Era preciso demolir a velha ordem para construir uma nova, que se pretendia mais racional, previsível e duradoura.
O que vivemos agora, na modernidade líquida, é um segundo momento desse derretimento. O alvo não é mais as velhas tradições, mas sim os próprios alicerces que a modernidade sólida construiu. Agora, o que derrete são "os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas". Derretem-se os laços de solidariedade, a confiança nas instituições, a capacidade de ação política conjunta. O derretimento tornou-se um fim em si mesmo, uma condição permanente.
O Poder na Era Líquida: da vigilância à fuga
Talvez a análise mais impactante deste prefácio seja sobre a transformação do poder. Na modernidade sólida, o poder era pesado, territorial e se exercia através do controle e da vigilância. Bauman usa o modelo do Panóptico de Foucault como a metáfora perfeita: os chefes precisavam estar presentes para vigiar e gerenciar os subordinados, que, por sua vez, estavam presos a um lugar (a fábrica, a prisão, a escola). Havia um engajamento mútuo, ainda que conflituoso, entre capital e trabalho, entre governantes e governados.
Uma sociedade de consumidores e de ausência de certezas - Foto: Reprodução.
Hoje, o poder tornou-se extraterritorial. A principal técnica de poder não é mais o confronto direto ou a administração, mas "a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação". O poder flui. A elite global contemporânea é nômade; ela governa à distância, sem precisar se responsabilizar pelo território ou pelo bem-estar das populações assentadas.
Isso se manifesta de formas muito concretas no nosso mundo:
No Brasil e no Mundo: Pensemos na "uberização" do trabalho. Uma empresa global, cujo poder reside em um algoritmo etéreo, domina uma massa de trabalhadores individuais e desorganizados, sem oferecer os "sólidos" direitos trabalhistas do passado. O poder da empresa está justamente em sua leveza e mobilidade, na sua capacidade de se desengajar de qualquer responsabilidade local.
Guerras Recentes: Bauman cita as guerras do Golfo e da Iugoslávia como exemplos de um novo tipo de conflito "atingir e correr", em que o objetivo não é mais a conquista de território (um fardo sólido e caro), mas a destruição de barreiras para permitir o fluxo do poder global. As guerras com drones, onde o soldado opera a milhares de quilômetros de distância, são a apoteose dessa lógica.
O indivíduo à deriva e a sede por solidez
Se o poder se liquefez e se tornou inalcançável, o que acontece conosco, os indivíduos? A responsabilidade pela construção de uma vida coerente e segura foi totalmente privatizada e transferida para os nossos ombros. Instituições que antes serviam como referência – a família, a classe, a comunidade – tornaram-se o que Ulrich Beck chama de "categorias zumbi": estão "mortas e ainda vivas", não oferecem mais um porto seguro, mas ainda assombram nosso imaginário.
É nesse cenário de incerteza e insegurança que podemos entender a ascensão da desinformação e da pós-verdade. Em um mundo líquido, sem pontos de referência estáveis e confiáveis, as pessoas se agarram desesperadamente a qualquer coisa que pareça sólida. Uma teoria da conspiração, por mais absurda que seja, oferece uma narrativa coesa e estável sobre um mundo assustadoramente caótico. Um líder autoritário que promete restaurar uma ordem perdida oferece uma ilusão de solidez e controle. A polarização política no Brasil e em outros lugares do mundo pode ser vista como essa busca desesperada por certezas em um oceano de fluidez.
A leitura deste prefácio de Bauman não oferece respostas fáceis, mas nos entrega uma ferramenta analítica poderosa. Ele nos ajuda a entender que a ansiedade, a efemeridade e a instabilidade que sentimos não são falhas individuais, mas a própria lógica do mundo em que vivemos. Este é apenas o começo da nossa jornada por Modernidade Líquida. As questões que ficam são profundas: é possível recriar laços de solidariedade em um mundo que nos empurra para o individualismo? Como podemos construir um futuro coletivo quando o poder se tornou mestre na arte da fuga? Continuaremos essa reflexão em nosso próximo Diário de Leitura.
Por Raul Silva para Radar Literário d'O estopim |26 de setembro de 2025
Publicado em 2015, "Ainda Estou Aqui", de Marcelo Rubens Paiva, subverte a definição de um simples livro de memórias para se firmar como um artefato cultural de rara potência. É, na verdade, uma obra híbrida e multifacetada que se tece com os fios da biografia íntima, do testemunho histórico, do jornalismo investigativo e do ensaio filosófico. A genialidade de Paiva está em fundir esses gêneros de forma orgânica, criando um texto que é ao mesmo tempo documento e desabafo.
Confira nossa resenha em áudio
Justiça, memória e a luta de Eunice Paiva contra a Ditadura e o AlzheimerRadar Literário
Capa do livro - Editora Alfaguara
No seu cerne, o livro é um poderoso e comovente tratado sobre a memória e a luta desesperada contra o seu apagamento em duas frentes simultâneas e igualmente trágicas: a batalha de uma família contra o esquecimento deliberadamente imposto por um Estado autoritário e a batalha de um filho contra a dissolução da identidade de sua mãe pela névoa impiedosa do Alzheimer. Essas duas batalhas não correm em paralelo; elas se entrelaçam, dialogam e se espelham, mostrando que o esquecimento, seja ele forçado pela violência política ou pela falha da biologia, é sempre uma forma de aniquilamento.
A narrativa se constrói sobre um pilar duplo de perdas, erguendo um monumento à resiliência humana. De um lado, acompanhamos a saga incansável de Eunice Paiva, mãe do autor, em busca da verdade sobre o destino de seu marido, o deputado Rubens Paiva. Figura política proeminente e cassada pelo regime, ele foi sequestrado, torturado e assassinado por agentes da ditadura militar brasileira em 1971, tornando-se um dos mais emblemáticos "desaparecidos políticos" do país.
Por mais de quatro décadas, Eunice enfrentou a burocracia kafkiana, o silêncio cúmplice e a negação sistemática das Forças Armadas. Ela transformou seu luto pessoal em uma bandeira política, convertendo a dor da ausência em ação incessante pela memória e pela justiça. Sua luta não era apenas por um corpo para enterrar, mas pelo direito à verdade, tornando-se a personificação da resistência contra o projeto de esquecimento histórico que, sob o pretexto de uma "reconciliação", tentou varrer para debaixo do tapete os crimes e as feridas abertas do regime.
Em um espelhamento cruel e paradoxal do destino, enquanto Eunice luta para que a memória de seu marido não seja apagada da história do Brasil, seu filho, Marcelo, trava uma batalha inversa e igualmente dolorosa: ele luta para preservar as memórias de sua mãe, que começam a ser implacavelmente roubadas pelo Mal de Alzheimer.
Eunice Paiva e Rubens Paiva - Foto: Acervo pessoal da família Paiva
A sobreposição dessas duas jornadas é o que confere ao livro sua força avassaladora e seu impacto universal. Paiva narra com uma honestidade brutal, que não poupa o leitor dos detalhes mais crus da degenerescência, e, ao mesmo tempo, com uma ternura infinita, o processo de desintegração cognitiva de Eunice. Ele descreve a perda progressiva das palavras, dos nomes dos filhos, dos rostos familiares e, por fim, da própria noção de si. Ele documenta não a morte física de sua mãe, mas a dolorosa metamorfose de uma das mentes mais brilhantes e ativas de sua geração — uma advogada combativa, uma mãe presente — em uma sombra de si mesma, presa em um labririnto interior. A crueza dessa descrição serve a um propósito maior: o de mostrar que a perda da memória é uma forma de desaparecimento em vida.
A genialidade da estrutura narrativa de Paiva reside em sua recusa a uma cronologia linear, optando por uma abordagem que reflete a própria desordem da memória. O livro é um mosaico, uma colagem de fragmentos que espelha a natureza caótica do trauma e do esquecimento. Capítulos que funcionam como um diário íntimo sobre o avanço da doença e os desafios práticos e emocionais do cuidado são intercalados com flashbacks vívidos da infância do autor, transcrições de documentos oficiais da Comissão da Verdade, cartas pessoais, reportagens da época e trechos da minuciosa investigação sobre o sequestro e assassinato de Rubens Paiva.
Essa polifonia de vozes e textos cria uma experiência de leitura imersiva e, por vezes, sufocante. Ao saltar de um laudo pericial frio para uma lembrança afetuosa, Paiva coloca o leitor diretamente no centro do caos emocional e histórico vivido pela família. Essa desorientação temporal, portanto, é uma escolha estética e política: ela não apenas espelha a mente fragmentada de Eunice, mas emula a própria memória fraturada de uma nação que ainda luta para montar o quebra-cabeça de seu passado.
Eunice Paiva, acompanhada do filho Marcelo Rubens Paiva, recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva, seu marido desaparecido desde 1971 - Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress
No centro de tudo, e a cada página, emerge a figura monumental de Eunice Paiva. O livro é, antes de mais nada, uma eloquente carta de amor e uma homenagem à sua força inabalável. Longe de ser retratada apenas como vítima passiva da história ou da doença, ela é a protagonista resiliente, uma mulher que, mesmo diante das maiores dores que um ser humano pode suportar — a perda do marido e a perda de si mesma —, se recusou a ser silenciada.
Advogada, mãe de cinco filhos, ela se tornou um símbolo de dignidade e coragem, não só para sua família, mas para inúmeras outras que passaram pela mesma tragédia do desaparecimento forçado. Ao registrar meticulosamente a história de sua mãe, da sua lucidez combativa à sua vulnerabilidade final, Marcelo cumpre a promessa contida no título: "Ainda Estou Aqui". Ele se torna a memória viva dela, o guardião de sua história e de sua luta, garantindo que nem a brutalidade da ditadura nem a crueldade da doença tenham a palavra final sobre quem foi Eunice Paiva.
"Ainda Estou Aqui" é, portanto, uma obra de importância capital, cuja relevância só cresce com o tempo. É um documento de denúncia que humaniza as estatísticas da ditadura, dando nome, rosto, história e uma complexidade de sentimentos a uma de suas vítimas e à família que foi permanentemente marcada pela violência de Estado. Mais do que isso, é uma reflexão universal sobre o amor filial, o luto, a identidade e a própria essência do que nos torna humanos.
Ao justapor a perda da memória coletiva e da memória individual, Marcelo Rubens Paiva nos força a confrontar o quão essencial e ativo é o ato de lembrar — para uma pessoa, para uma família e para uma nação inteira. Não é um livro fácil, mas profundamente necessário. É um testamento inesquecível que afirma, com clareza cortante, que o antídoto contra o desaparecimento — seja ele imposto por um regime ou por uma doença — é o ato de contar a história.
"Ainda estou aqui" tem sido destaque na imprensa nacional e estrangeira. Foto: reprodução.
O eco dessa verdade literária encontrou sua mais potente caixa de ressonância na adaptação cinematográfica homônima dirigida por Walter Salles. O filme não apenas traduziu com maestria a complexidade da obra para as telas, mas amplificou sua mensagem a uma escala global, um fenômeno coroado com o histórico Oscar de Melhor Filme Internacional em março de 2025. Sete meses depois, o impacto do filme não diminuiu; pelo contrário, ele continua a acumular prêmios nos mais prestigiados festivais ao redor do mundo, de Cannes a Veneza.
Essa aclamação contínua demonstra que a história de Eunice Paiva transcendeu seu contexto brasileiro para se tornar um símbolo universal da luta por justiça e memória. O sucesso duradouro do filme potencializa a força da narrativa original, provando que a luta contra o esquecimento é uma pauta urgente e global. Cada novo prêmio não é apenas um reconhecimento artístico para Salles e sua equipe, mas uma vitória para a memória histórica, um lembrete contundente de que, enquanto houver quem conte essas histórias, as vozes silenciadas continuarão a ecoar.
Recentemente Raul Silva fez uma resenha especial para o quadro Literatura de Primeira na Rádio Itapuama FM confiram aqui:
Na madrugada silenciosa de sábado, 30 de agosto de 2025, às 00h40, o Brasil perdeu uma de suas vozes literárias mais queridas e reconhecidas. Luis Fernando Veríssimo, o mestre da crônica brasileira, morreu aos 88 anos no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, vítima de complicações decorrentes de uma pneumonia. Estava internado na UTI desde 11 de agosto, travando sua última batalha contra uma doença que se iniciou como um simples princípio de pneumonia, mas que evoluiu gravemente devido às múltiplas fragilidades de saúde que enfrentava nos últimos anos.
Luis Fernando Verissimo é autor de mais de 70 livros publicados (Foto: TV Globo, Reprodução)
O escritor partiu "tranquilo, como sempre viveu", segundo palavras de sua família, rodeado pelo amor incondicional de Lúcia Helena Massa, sua companheira por 61 anos de casamento, e dos três filhos: Pedro, Fernanda e Mariana Veríssimo. Sua partida marca o fim de uma era dourada da literatura nacional, deixando órfãos milhões de leitores que cresceram sorrindo e refletindo com suas crônicas geniais.
O menino que viveu entre dois mundos
Luis Fernando Lopes Veríssimo nasceu em 26 de setembro de 1936, em Porto Alegre, como herdeiro de um dos maiores legados literários do Brasil - era filho de Érico Veríssimo e Mafalda Halfen Volpe. Mas sua formação foi profundamente marcada por uma infância cosmopolita que moldaria para sempre sua visão de mundo e seu estilo único de escrever.
Entre 1941 e 1945, ainda criança, viveu nos Estados Unidos, onde seu pai lecionou literatura brasileira nas prestigiosas universidades de Berkeley e Oakland, na Califórnia. Ali, o pequeno Luis cursou o ensino primário em San Francisco e Los Angeles, absorvendo desde cedo a influência da cultura americana que deixaria marcas permanentes em sua personalidade e obra.
Em 1953, a família Veríssimo retornou à América quando Érico assumiu a direção do Departamento Cultural da União Pan-Americana, em Washington, só regressando definitivamente ao Brasil em 1956. Durante esses anos formativos nos Estados Unidos, Luis Fernando estudou no Roosevelt High School, em Washington, período crucial onde desenvolveu sua paixão inabalável pelo jazz e aprendeu a tocar saxofone - instrumento que se tornaria uma constante em sua vida, chegando a formar o grupo musical "Jazz 6" décadas depois.
Essa experiência bicultural foi fundamental para moldar sua sensibilidade literária única: Luis Fernando cresceu dominando perfeitamente o inglês - tanto que, ironicamente, nos seus últimos anos, após o AVC de 2021, as poucas palavras que conseguia pronunciar eram em inglês, como se a doença o tivesse reconectado com suas raízes americanas da juventude.
Os primeiros assos na literatura e no jornalismo
De volta a Porto Alegre, Luis Fernando inicialmente trabalhou na Editora Globo, no departamento de artes. Em 1960, revelando sua face musical, passou a integrar o conjunto "Renato e seu Sexteto", que se apresentava profissionalmente na capital gaúcha. Era um jovem em busca de sua identidade, dividido entre a música - sua verdadeira paixão - e a escrita, que parecia estar em seu DNA familiar.
Em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como tradutor e redator publicitário. Foi nesta fase que conheceu Lúcia Helena Massa, uma carioca por quem se apaixonou perdidamente e com quem se casou em 1963, construindo um dos relacionamentos mais sólidos e duradouros da literatura brasileira - união que duraria impressionantes 61 anos.
O ano de 1967 marcou um divisor de águas em sua carreira: retornou a Porto Alegre e ingressou no jornal Zero Hora como revisor de textos - função aparentemente modesta que se revelaria o pontapé inicial de uma trajetória extraordinária. A partir de 1969, conseguiu assinar sua própria coluna diária, inicialmente focada no Internacional, clube pelo qual nutria uma paixão fanática que duraria toda a vida.
Paralelamente, começou a trabalhar na agência de publicidade MPM Propaganda, desenvolvendo suas habilidades criativas em múltiplas frentes. Entre 1970 e 1975, expandiu sua atuação jornalística trabalhando no jornal Folha da Manhã, escrevendo sobre esporte, música, cinema, literatura e política - sempre com o humor bem-humorado que se tornaria sua marca registrada.
O nascimento de um fenômeno editorial
Em 1971, juntamente com um grupo de amigos da imprensa e da publicidade porto-alegrense, Luis Fernando criou o semanário alternativo "O Pato Macho", com textos de humor. Era uma publicação irreverente que já mostrava sinais do que viria a ser seu estilo inconfundível: crítica social envolvida em humor inteligente.
O ano de 1973 marcou oficialmente o nascimento do escritor Luis Fernando Veríssimo com a publicação de "O Popular", seu primeiro livro. A obra abriu caminho para uma produção literária consistente que se estenderia por mais de cinco décadas. Desde então, construiu uma marca literária indissociável do humor crítico e da ironia leve, características que sustentaram o interesse constante de editoras, jornais e do público leitor.
Sua capacidade de transformar o cotidiano banal em extraordinário logo se tornou evidente. Luis Fernando tinha o dom raro de fazer os leitores rirem de suas próprias fraquezas e absurdos, criando uma identificação profunda com a classe média brasileira. Suas crônicas publicadas no Zero Hora, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e na revista Veja transformaram-no no cronista mais lido do país.
Os personagens que conquistaram o brasil
O universo criativo de Veríssimo deu vida a personagens que transcenderam as páginas dos livros para se tornarem patrimônio cultural nacional. O Analista de Bagé, criado em 1981, foi um fenômeno editorial e cultural sem precedentes - um psicanalista de formação freudiana ortodoxa, mas com sotaque, linguajar e costumes típicos da fronteira gaúcha. O livro teve a primeira edição esgotada em apenas uma semana, revelando a fome do público por aquele tipo de humor inteligente.
O personagem inspirou histórias em quadrinhos desenhadas por Edgar Vasques e chegou até mesmo ao cinema, consolidando Veríssimo como um criador de personagens memoráveis. O Analista representava a genialidade do autor em combinar o erudito com o popular, o universal com o regional, criando algo genuinamente brasileiro e ao mesmo tempo universalmente compreensível.
A Velhinha de Taubaté, lançada em 1983, era "a única pessoa que ainda acreditava no governo" durante os estertores da ditadura militar. Com essa criação, Veríssimo demonstrou sua capacidade excepcional de usar o humor como instrumento de crítica social e política, sempre de forma sutil e inteligente, nunca panfletária ou agressiva.
Ed Mort, o detetive criado em 1979, tornou-se protagonista de tiras em quadrinhos e ganhou adaptação cinematográfica com Paulo Betti no papel-título. O personagem representava a versão brasileira e bem-humorada dos detetives noir americanos, mais uma demonstração da habilidade de Veríssimo em antropofagiar influências estrangeiras e criar algo genuinamente nacional.
A Família Brasil, criada em 1988 e publicada no Estadão por quase três décadas, tornou-se um retrato definitivo da classe média brasileira. Composta por personagens arquetípicos - o pai de profissão desconhecida, a mãe dona de casa, o filho adolescente, a filha e o namorado Boca - a tirinha acompanhou e comentou as transformações do país por quase 30 anos, até ser encerrada pelo próprio autor em agosto de 2017.
O império literário de um Mestre
Ao longo de sua carreira, Luis Fernando Veríssimo construiu um verdadeiro império editorial, publicando mais de 80 livros que somaram impressionantes 5,6 milhões de exemplares vendidos. Suas obras foram traduzidas para mais de 15 idiomas, levando o humor brasileiro para o mundo inteiro.
Entre suas obras mais significativas estão "Comédias da Vida Privada" (1994), que se tornou um marco da literatura brasileira e foi adaptada para a televisão pela Rede Globo entre 1995 e 1997. A série, com roteiros de Jorge Furtado e direção de Guel Arraes, foi um marco na televisão nacional, provando que era possível fazer entretenimento inteligente e de qualidade. O sucesso foi tão grande que gerou uma sequência: "Novas Comédias da Vida Privada" (1996).
Outras obras fundamentais incluem "O Gigolô das Palavras" (1982), "Peças Íntimas" (1990), "Ed Mort, Todas as Histórias" (1997), "Borges e os Orangotangos Eternos" (2000), "O Clube dos Anjos" (1998) e "Comédias para se Ler na Escola" (2000) - esta última particularmente importante por democratizar a literatura, introduzindo gerações de jovens ao prazer da leitura.
O reconhecimento de uma carreira brilhante
Luis Fernando Veríssimo acumulou ao longo da vida diversos prêmios e reconhecimentos que atestavam sua importância na cultura brasileira. Em 1989, recebeu o Prêmio Direitos Humanos da OAB. Em 1995, foi eleito "Homem de Ideias do ano" pelo caderno "Ideias" do Jornal do Brasil.
O ano de 1996 foi especialmente pródigo em homenagens: recebeu a "Medalha de Resistência Chico Mendes" da ONG Tortura Nunca Mais, a "Medalha do Mérito Pedro Ernesto" da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e o "Prêmio Formador de Opinião" da Associação Brasileira de Empresas de Relações Públicas.
Em 1997, coroou essa sequência de reconhecimentos com o "Prêmio Juca Pato" da União Brasileira de Escritores como Intelectual do ano. Em 1999, recebeu ainda o Prêmio Multicultural Estadão. O ápice veio em 2013, quando conquistou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Ficção com "Diálogos Impossíveis", o mais prestigioso reconhecimento da literatura nacional.
A paixão musical que nunca se apagou
Paralelamente à carreira literária, Luis Fernando Veríssimo manteve sempre acesa sua paixão pela música, especialmente o jazz. Em 1995, por iniciativa do contrabaixista Jorge Gerhardt, foi criado o grupo "Jazz 6" - ironicamente "o menor sexteto do mundo", com apenas 5 integrantes. Além de Veríssimo no saxofone e Gerhardt no contrabaixo, faziam parte do grupo Luiz Fernando Rocha (trompete e flugelhorn), Adão Pinheiro (piano) e Gilberto Lima (bateria).
O grupo lançou quatro CDs: "Agora é a Hora" (1997), "Speak Low" (2000), "A Bossa do Jazz" (2003) e "Four" (2006). Como os demais membros eram "músicos em tempo integral", o grupo dependia da agenda de Veríssimo para se apresentar, mas manteve-se ativo por anos, revelando a face musical de um homem que sempre sonhou secretamente em viver apenas da música.
Em 2015, gravou um CD especial com a dupla Kleiton & Kledir, demonstrando que mesmo na velhice mantinha vivo seu amor pelos sons. O saxofone, que aprendeu aos 16 anos quando morava nos Estados Unidos, foi seu companheiro fiel por décadas, só sendo abandonado nos últimos anos devido às limitações impostas pela doença de Parkinson.
O homem por trás do escritor
Luis Fernando Veríssimo era conhecido por sua personalidade extremamente reservada e lacônica. "Nunca fui muito íntimo de mim mesmo, nunca examinei o que eu fiz, o que eu deixo de fazer", declarou quando completou 80 anos. Era um homem de poucas palavras na vida real, contrastando com a verborragia criativa de seus textos.
Lúcia Helena Massa, sua esposa, foi descrita como "sua voz" - ela "fazia as coisas da vida para ele": resolvia problemas, ia aos bancos, entregava as colunas nos jornais nos tempos pré-internet. Era "sua razão de fazer a vida andar com calma e amor", o alicerce que permitia que o gênio criativo de Luis Fernando florescesse sem as preocupações cotidianas.
O casal teve três filhos: Fernanda, a mais velha, que mora perto dos pais e se dedica atualmente à memória do avô Érico Veríssimo no ano em que se comemoram 120 anos de seu nascimento e 50 de sua morte. Fernanda deu ao casal a neta Lucinda, hoje com 17 anos. Mariana mora em São Paulo e presenteou-os com o neto Davi, de 12 anos. Pedro, o caçula, era publicitário e hoje canta e compõe, seguindo as inclinações musicais do pai.
Durante toda a vida, Luis Fernando viveu na mesma casa do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, adquirida por seu pai Érico Veríssimo em 1941. A casa familiar foi o refúgio onde ele criou suas obras mais importantes e onde passou os últimos anos cercado pelo carinho da família.
As convicções políticas e sociais
Politicamente, Luis Fernando nunca escondeu suas convicções de esquerda, chegando a se definir como "um esquerdista desiludido". "Em um país com tanta desigualdade social, ser de esquerda não é uma opção, é decorrência", declarou, resumindo sua visão sobre o papel do intelectual na sociedade brasileira.
Durante a ditadura militar, usou seu humor como forma de resistência sutil mas efetiva. Personagens como A Velhinha de Taubaté eram claras críticas ao regime, mas apresentadas de forma tão inteligente e bem-humorada que escapavam da censura. Era um mestre da crítica social indireta, capaz de denunciar absurdos sem jamais cair no panfleto ou na agressividade gratuita.
Nos últimos anos, no entanto, desinteressou-se pelas questões políticas.
"Nos últimos tempos se desinteressou. Um sábio", comentou Lúcia, "certamente olhando o quadro caótico que vivemos nesta área".
Era como se, na sabedoria da velhice, tivesse compreendido que sua contribuição para o país já estava dada através de sua obra literária.
Os últimos anos: A luta contra as adversidades
Os anos finais da vida de Luis Fernando Veríssimo foram marcados por uma sucessão de problemas de saúde que gradualmente limitaram suas capacidades. Em 2016, foi necessário implantar um marca-passo após complicações cardíacas. Desenvolveu também a doença de Parkinson, que afetou progressivamente seus movimentos.
O golpe mais devastador veio em janeiro de 2021, quando sofreu um grave acidente vascular cerebral (AVC) que afetou sua capacidade cognitiva de ordenar pensamentos, forçando-o a se afastar definitivamente da escrita - atividade que exercera por mais de cinco décadas. "O escritor já não consegue mais escrever e tem dificuldades para falar", informou a família.
Paradoxalmente, uma das sequelas mais curiosas do AVC foi que Luis Fernando mantinha maior facilidade para se comunicar em inglês do que em português - como se a doença o tivesse reconectado com os anos de formação nos Estados Unidos.
"As poucas palavras que conseguia pronunciar eram em inglês", relatou Lúcia à Folha de S. Paulo.
Nos últimos anos, enfrentou ainda outros problemas: câncer na mandíbula (com cirurgia em novembro de 2020), câncer de pele, herpes zoster e diversas infecções. Em 2013, já havia passado por uma grave internação na UTI devido a uma gripe que evoluiu para infecção generalizada.
"Para quem passou a vida escrevendo, fazendo humor através das palavras, sendo escritor, cartunista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista, os últimos tempos de LFV foram difíceis, complicados e de sofrimento, embora ele nunca se queixasse", relatou o jornal Brasil de Fato.
Os últimos dias: A pneumonia fatal
Em 11 de agosto de 2025, Luis Fernando Veríssimo deu entrada no Hospital Moinhos de Vento com o que inicialmente parecia ser um "princípio de pneumonia leve". Segundo informações divulgadas pela família em 17 de agosto, ele estava internado "desde a semana anterior por conta de uma pneumonia leve que foi piorando".
O quadro, que inicialmente não parecia grave, foi se complicando progressivamente. O boletim médico de 17 de agosto já classificava seu estado como "grave", informando que o paciente "encontra-se internado no Centro de Terapia Intensiva Adulto da instituição, em estado grave, recebendo todas as medidas de suporte necessárias".
Durante os 19 dias de internação, Luis Fernando lutou contra as complicações da pneumonia, agravadas por suas múltiplas comorbidades: Parkinson, problemas cardíacos, sequelas do AVC de 2021 e a idade avançada de 88 anos. Era uma batalha desigual contra um organismo já debilitado por anos de luta contra diversas enfermidades.
Na madrugada de sábado, 30 de agosto de 2025, às 00h40, o coração do grande cronista parou de bater.
"O Hospital Moinhos de Vento comunica o falecimento do escritor e cronista Luis Fernando Verissimo, às 00h40 deste sábado (30), devido a complicações decorrentes de uma pneumonia", informou a nota oficial da instituição.
A filosofia diante da morte
Ao longo de sua vida, Luis Fernando Veríssimo sempre encarou a morte com a mesma mistura de melancolia e ironia que caracterizava toda sua obra. Em 2011, declarou à Folha de S. Paulo:
"A morte é uma injustiça, essa é a melhor descrição. Mas temos que viver com ela". "Estamos nos tornando mais lentos de pensamento. Nesse aspecto, sinto a velhice. Mas o que resta é tentar aproveitar a vida da melhor forma. Enquanto eu puder aproveitar minha janela, ir ao cinema, viajar, vou levando".
Dois anos depois, em 2013, após uma grave internação na UTI, foi ainda mais contundente: "A morte é uma sacanagem. Estou cada vez mais contra". Era uma declaração típica de seu humor: transformar o drama existencial em uma frase ao mesmo tempo profunda e engraçada.
Em outra ocasião, demonstrou sua visão filosófica da existência:
"Uma vez me perguntaram o que eu achava da passagem do tempo, e eu disse: sou contra. Mas, no fim, é o tempo que nos controla".
E completava com sua sabedoria melancólica:
"No fim, pensando bem, a vida é uma grande piada. Acontece tudo isso com a gente, e a gente morre... que piada, né? Que piada de mau gosto. Mas acho que temos que encarar isso com uma certa resignação, uma certa bonomia [bondade]".
O legado imortal de um gênio
Luis Fernando Veríssimo deixa um legado literário inestimável: mais de 80 livros publicados, 5,6 milhões de exemplares vendidos, obras traduzidas para mais de 15 idiomas e uma influência que marca gerações de escritores brasileiros. Mais do que números, deixa a certeza de que a literatura pode ser, simultaneamente, profunda e acessível, crítica e amorosa, universal e intimamente brasileira.
Suas crônicas democratizaram o ato de ler no Brasil, especialmente através de livros como "Comédias Para Se Ler na Escola", que introduziram milhares de jovens ao prazer da literatura. Sua escrita fluida, despojada de preciosismos, conseguia abordar temas complexos - desde relacionamentos amorosos até críticas sociais - com uma leveza que nunca comprometia a profundidade.
Era capaz de fazer o leitor refletir enquanto sorria - uma combinação rara e preciosa na literatura mundial. Seus personagens - O Analista de Bagé, Ed Mort, A Velhinha de Taubaté, A Família Brasil - tornaram-se patrimônio cultural brasileiro, povoando o imaginário coletivo com a mesma força de personagens clássicos da literatura universal.
"Sábio é quem conhece os limites da própria ignorância... e ainda assim se arrisca" - uma de suas frases que resume perfeitamente a trajetória de quem nunca deixou de se surpreender com a vida e de nos surpreender com suas palavras.
A despedida de uma nação agradecida
A morte de Luis Fernando Veríssimo provocou uma comoção nacional raramente vista pela perda de um escritor. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou pesar pela perda de quem classificou como "dono de múltiplos talentos" e criador de "personagens inesquecíveis".
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, decretou três dias de luto oficial no estado e declarou que "o Rio Grande do Sul se despede de um gênio da escrita, mas suas histórias seguirão entre nós, pois são imortais". O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, afirmou que "a cultura do Rio Grande do Sul e do Brasil tem um lugar reservado para Veríssimo".
O Sport Club Internacional, clube pelo qual Veríssimo declarou paixão durante toda a vida, relembrou um trecho da crônica "Não me acordem", sobre o título do Mundial de Clubes de 2006, chamando-o de "um dos maiores nomes da literatura nacional".
A escritora Martha Medeiros resumiu o sentimento de uma geração inteira:
"Obrigada, mestre, por todas as linhas, reflexões, epifanias, risadas, por toda a sua absoluta e inquestionável genialidade".
A eternidade do verbo
Luis Fernando Veríssimo morreu, mas sua palavra permanece viva e vibrante. Em cada página que escreveu, em cada personagem que criou, em cada sorriso que provocou, em cada reflexão que despertou, ele conquistou a única imortalidade possível para um escritor: viver eternamente na memória e no coração de seus leitores.
Hoje, quando se cala para sempre a voz que nos ensinou a rir de nós mesmos e a encontrar poesia no cotidiano mais prosaico, o Brasil perde não apenas um escritor, mas um intérprete sagaz de sua própria alma. Partiu o homem que transformou o ordinário em extraordinário, que fez do riso uma forma de resistência e da crônica uma arte maior.
Nas palavras que ele mesmo poderia ter escrito: partiu o cronista que soube, como poucos, capturar a essência do que significa ser brasileiro. Seu nome permanecerá eternamente ligado àqueles que compreenderam que a literatura não é um ornamento da cultura, mas sua própria essência.
Luis Fernando Veríssimo: 26 de setembro de 1936 - 30 de agosto de 2025.
O cronista da vida privada brasileira que se tornou patrimônio público de uma nação inteira. O gigante das letras que nos fez gigantes no riso e na reflexão. O mestre que nos ensinou que, mesmo diante dos absurdos da vida, sempre é possível encontrar uma razão para sorrir.
Descanse em paz, mestre. Suas palavras são eternas.