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Literatura

Atualizado: há 4 dias

Na madrugada silenciosa de sábado, 30 de agosto de 2025, às 00h40, o Brasil perdeu uma de suas vozes literárias mais queridas e reconhecidas. Luis Fernando Veríssimo, o mestre da crônica brasileira, morreu aos 88 anos no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, vítima de complicações decorrentes de uma pneumonia. Estava internado na UTI desde 11 de agosto, travando sua última batalha contra uma doença que se iniciou como um simples princípio de pneumonia, mas que evoluiu gravemente devido às múltiplas fragilidades de saúde que enfrentava nos últimos anos.


Luis Fernando Verissimo é autor de mais de 70 livros publicados (Foto: TV Globo, Reprodução)
Luis Fernando Verissimo é autor de mais de 70 livros publicados (Foto: TV Globo, Reprodução)

O escritor partiu "tranquilo, como sempre viveu", segundo palavras de sua família, rodeado pelo amor incondicional de Lúcia Helena Massa, sua companheira por 61 anos de casamento, e dos três filhos: Pedro, Fernanda e Mariana Veríssimo. Sua partida marca o fim de uma era dourada da literatura nacional, deixando órfãos milhões de leitores que cresceram sorrindo e refletindo com suas crônicas geniais.


O menino que viveu entre dois mundos


Luis Fernando Lopes Veríssimo nasceu em 26 de setembro de 1936, em Porto Alegre, como herdeiro de um dos maiores legados literários do Brasil - era filho de Érico Veríssimo e Mafalda Halfen Volpe. Mas sua formação foi profundamente marcada por uma infância cosmopolita que moldaria para sempre sua visão de mundo e seu estilo único de escrever.


Entre 1941 e 1945, ainda criança, viveu nos Estados Unidos, onde seu pai lecionou literatura brasileira nas prestigiosas universidades de Berkeley e Oakland, na Califórnia. Ali, o pequeno Luis cursou o ensino primário em San Francisco e Los Angeles, absorvendo desde cedo a influência da cultura americana que deixaria marcas permanentes em sua personalidade e obra.


Em 1953, a família Veríssimo retornou à América quando Érico assumiu a direção do Departamento Cultural da União Pan-Americana, em Washington, só regressando definitivamente ao Brasil em 1956. Durante esses anos formativos nos Estados Unidos, Luis Fernando estudou no Roosevelt High School, em Washington, período crucial onde desenvolveu sua paixão inabalável pelo jazz e aprendeu a tocar saxofone - instrumento que se tornaria uma constante em sua vida, chegando a formar o grupo musical "Jazz 6" décadas depois.


Essa experiência bicultural foi fundamental para moldar sua sensibilidade literária única: Luis Fernando cresceu dominando perfeitamente o inglês - tanto que, ironicamente, nos seus últimos anos, após o AVC de 2021, as poucas palavras que conseguia pronunciar eram em inglês, como se a doença o tivesse reconectado com suas raízes americanas da juventude.


Os primeiros assos na literatura e no jornalismo


De volta a Porto Alegre, Luis Fernando inicialmente trabalhou na Editora Globo, no departamento de artes. Em 1960, revelando sua face musical, passou a integrar o conjunto "Renato e seu Sexteto", que se apresentava profissionalmente na capital gaúcha. Era um jovem em busca de sua identidade, dividido entre a música - sua verdadeira paixão - e a escrita, que parecia estar em seu DNA familiar.


Em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como tradutor e redator publicitário. Foi nesta fase que conheceu Lúcia Helena Massa, uma carioca por quem se apaixonou perdidamente e com quem se casou em 1963, construindo um dos relacionamentos mais sólidos e duradouros da literatura brasileira - união que duraria impressionantes 61 anos.


O ano de 1967 marcou um divisor de águas em sua carreira: retornou a Porto Alegre e ingressou no jornal Zero Hora como revisor de textos - função aparentemente modesta que se revelaria o pontapé inicial de uma trajetória extraordinária. A partir de 1969, conseguiu assinar sua própria coluna diária, inicialmente focada no Internacional, clube pelo qual nutria uma paixão fanática que duraria toda a vida.


Paralelamente, começou a trabalhar na agência de publicidade MPM Propaganda, desenvolvendo suas habilidades criativas em múltiplas frentes. Entre 1970 e 1975, expandiu sua atuação jornalística trabalhando no jornal Folha da Manhã, escrevendo sobre esporte, música, cinema, literatura e política - sempre com o humor bem-humorado que se tornaria sua marca registrada.


O nascimento de um fenômeno editorial


Em 1971, juntamente com um grupo de amigos da imprensa e da publicidade porto-alegrense, Luis Fernando criou o semanário alternativo "O Pato Macho", com textos de humor. Era uma publicação irreverente que já mostrava sinais do que viria a ser seu estilo inconfundível: crítica social envolvida em humor inteligente.


O ano de 1973 marcou oficialmente o nascimento do escritor Luis Fernando Veríssimo com a publicação de "O Popular", seu primeiro livro. A obra abriu caminho para uma produção literária consistente que se estenderia por mais de cinco décadas. Desde então, construiu uma marca literária indissociável do humor crítico e da ironia leve, características que sustentaram o interesse constante de editoras, jornais e do público leitor.


Sua capacidade de transformar o cotidiano banal em extraordinário logo se tornou evidente. Luis Fernando tinha o dom raro de fazer os leitores rirem de suas próprias fraquezas e absurdos, criando uma identificação profunda com a classe média brasileira. Suas crônicas publicadas no Zero Hora, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e na revista Veja transformaram-no no cronista mais lido do país.


Os personagens que conquistaram o brasil


O universo criativo de Veríssimo deu vida a personagens que transcenderam as páginas dos livros para se tornarem patrimônio cultural nacional. O Analista de Bagé, criado em 1981, foi um fenômeno editorial e cultural sem precedentes - um psicanalista de formação freudiana ortodoxa, mas com sotaque, linguajar e costumes típicos da fronteira gaúcha. O livro teve a primeira edição esgotada em apenas uma semana, revelando a fome do público por aquele tipo de humor inteligente.


O personagem inspirou histórias em quadrinhos desenhadas por Edgar Vasques e chegou até mesmo ao cinema, consolidando Veríssimo como um criador de personagens memoráveis. O Analista representava a genialidade do autor em combinar o erudito com o popular, o universal com o regional, criando algo genuinamente brasileiro e ao mesmo tempo universalmente compreensível.


A Velhinha de Taubaté, lançada em 1983, era "a única pessoa que ainda acreditava no governo" durante os estertores da ditadura militar. Com essa criação, Veríssimo demonstrou sua capacidade excepcional de usar o humor como instrumento de crítica social e política, sempre de forma sutil e inteligente, nunca panfletária ou agressiva.


Ed Mort, o detetive criado em 1979, tornou-se protagonista de tiras em quadrinhos e ganhou adaptação cinematográfica com Paulo Betti no papel-título. O personagem representava a versão brasileira e bem-humorada dos detetives noir americanos, mais uma demonstração da habilidade de Veríssimo em antropofagiar influências estrangeiras e criar algo genuinamente nacional.


A Família Brasil, criada em 1988 e publicada no Estadão por quase três décadas, tornou-se um retrato definitivo da classe média brasileira. Composta por personagens arquetípicos - o pai de profissão desconhecida, a mãe dona de casa, o filho adolescente, a filha e o namorado Boca - a tirinha acompanhou e comentou as transformações do país por quase 30 anos, até ser encerrada pelo próprio autor em agosto de 2017.


O império literário de um Mestre


Ao longo de sua carreira, Luis Fernando Veríssimo construiu um verdadeiro império editorial, publicando mais de 80 livros que somaram impressionantes 5,6 milhões de exemplares vendidos. Suas obras foram traduzidas para mais de 15 idiomas, levando o humor brasileiro para o mundo inteiro.


Entre suas obras mais significativas estão "Comédias da Vida Privada" (1994), que se tornou um marco da literatura brasileira e foi adaptada para a televisão pela Rede Globo entre 1995 e 1997. A série, com roteiros de Jorge Furtado e direção de Guel Arraes, foi um marco na televisão nacional, provando que era possível fazer entretenimento inteligente e de qualidade. O sucesso foi tão grande que gerou uma sequência: "Novas Comédias da Vida Privada" (1996).


Outras obras fundamentais incluem "O Gigolô das Palavras" (1982), "Peças Íntimas" (1990), "Ed Mort, Todas as Histórias" (1997), "Borges e os Orangotangos Eternos" (2000), "O Clube dos Anjos" (1998) e "Comédias para se Ler na Escola" (2000) - esta última particularmente importante por democratizar a literatura, introduzindo gerações de jovens ao prazer da leitura.


O reconhecimento de uma carreira brilhante


Luis Fernando Veríssimo acumulou ao longo da vida diversos prêmios e reconhecimentos que atestavam sua importância na cultura brasileira. Em 1989, recebeu o Prêmio Direitos Humanos da OAB. Em 1995, foi eleito "Homem de Ideias do ano" pelo caderno "Ideias" do Jornal do Brasil.


O ano de 1996 foi especialmente pródigo em homenagens: recebeu a "Medalha de Resistência Chico Mendes" da ONG Tortura Nunca Mais, a "Medalha do Mérito Pedro Ernesto" da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e o "Prêmio Formador de Opinião" da Associação Brasileira de Empresas de Relações Públicas.


Em 1997, coroou essa sequência de reconhecimentos com o "Prêmio Juca Pato" da União Brasileira de Escritores como Intelectual do ano. Em 1999, recebeu ainda o Prêmio Multicultural Estadão. O ápice veio em 2013, quando conquistou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Ficção com "Diálogos Impossíveis", o mais prestigioso reconhecimento da literatura nacional.


A paixão musical que nunca se apagou


Paralelamente à carreira literária, Luis Fernando Veríssimo manteve sempre acesa sua paixão pela música, especialmente o jazz. Em 1995, por iniciativa do contrabaixista Jorge Gerhardt, foi criado o grupo "Jazz 6" - ironicamente "o menor sexteto do mundo", com apenas 5 integrantes. Além de Veríssimo no saxofone e Gerhardt no contrabaixo, faziam parte do grupo Luiz Fernando Rocha (trompete e flugelhorn), Adão Pinheiro (piano) e Gilberto Lima (bateria).


O grupo lançou quatro CDs: "Agora é a Hora" (1997), "Speak Low" (2000), "A Bossa do Jazz" (2003) e "Four" (2006). Como os demais membros eram "músicos em tempo integral", o grupo dependia da agenda de Veríssimo para se apresentar, mas manteve-se ativo por anos, revelando a face musical de um homem que sempre sonhou secretamente em viver apenas da música.


Em 2015, gravou um CD especial com a dupla Kleiton & Kledir, demonstrando que mesmo na velhice mantinha vivo seu amor pelos sons. O saxofone, que aprendeu aos 16 anos quando morava nos Estados Unidos, foi seu companheiro fiel por décadas, só sendo abandonado nos últimos anos devido às limitações impostas pela doença de Parkinson.


O homem por trás do escritor


Luis Fernando Veríssimo era conhecido por sua personalidade extremamente reservada e lacônica. "Nunca fui muito íntimo de mim mesmo, nunca examinei o que eu fiz, o que eu deixo de fazer", declarou quando completou 80 anos. Era um homem de poucas palavras na vida real, contrastando com a verborragia criativa de seus textos.


Lúcia Helena Massa, sua esposa, foi descrita como "sua voz" - ela "fazia as coisas da vida para ele": resolvia problemas, ia aos bancos, entregava as colunas nos jornais nos tempos pré-internet. Era "sua razão de fazer a vida andar com calma e amor", o alicerce que permitia que o gênio criativo de Luis Fernando florescesse sem as preocupações cotidianas.


O casal teve três filhos: Fernanda, a mais velha, que mora perto dos pais e se dedica atualmente à memória do avô Érico Veríssimo no ano em que se comemoram 120 anos de seu nascimento e 50 de sua morte. Fernanda deu ao casal a neta Lucinda, hoje com 17 anos. Mariana mora em São Paulo e presenteou-os com o neto Davi, de 12 anos. Pedro, o caçula, era publicitário e hoje canta e compõe, seguindo as inclinações musicais do pai.


Durante toda a vida, Luis Fernando viveu na mesma casa do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, adquirida por seu pai Érico Veríssimo em 1941. A casa familiar foi o refúgio onde ele criou suas obras mais importantes e onde passou os últimos anos cercado pelo carinho da família.

As convicções políticas e sociais


Politicamente, Luis Fernando nunca escondeu suas convicções de esquerda, chegando a se definir como "um esquerdista desiludido". "Em um país com tanta desigualdade social, ser de esquerda não é uma opção, é decorrência", declarou, resumindo sua visão sobre o papel do intelectual na sociedade brasileira.


Durante a ditadura militar, usou seu humor como forma de resistência sutil mas efetiva. Personagens como A Velhinha de Taubaté eram claras críticas ao regime, mas apresentadas de forma tão inteligente e bem-humorada que escapavam da censura. Era um mestre da crítica social indireta, capaz de denunciar absurdos sem jamais cair no panfleto ou na agressividade gratuita.


Nos últimos anos, no entanto, desinteressou-se pelas questões políticas.


"Nos últimos tempos se desinteressou. Um sábio", comentou Lúcia, "certamente olhando o quadro caótico que vivemos nesta área".

Era como se, na sabedoria da velhice, tivesse compreendido que sua contribuição para o país já estava dada através de sua obra literária.


Os últimos anos: A luta contra as adversidades


Os anos finais da vida de Luis Fernando Veríssimo foram marcados por uma sucessão de problemas de saúde que gradualmente limitaram suas capacidades. Em 2016, foi necessário implantar um marca-passo após complicações cardíacas. Desenvolveu também a doença de Parkinson, que afetou progressivamente seus movimentos.


O golpe mais devastador veio em janeiro de 2021, quando sofreu um grave acidente vascular cerebral (AVC) que afetou sua capacidade cognitiva de ordenar pensamentos, forçando-o a se afastar definitivamente da escrita - atividade que exercera por mais de cinco décadas. "O escritor já não consegue mais escrever e tem dificuldades para falar", informou a família.


Paradoxalmente, uma das sequelas mais curiosas do AVC foi que Luis Fernando mantinha maior facilidade para se comunicar em inglês do que em português - como se a doença o tivesse reconectado com os anos de formação nos Estados Unidos.


"As poucas palavras que conseguia pronunciar eram em inglês", relatou Lúcia à Folha de S. Paulo.

Nos últimos anos, enfrentou ainda outros problemas: câncer na mandíbula (com cirurgia em novembro de 2020), câncer de pele, herpes zoster e diversas infecções. Em 2013, já havia passado por uma grave internação na UTI devido a uma gripe que evoluiu para infecção generalizada.


"Para quem passou a vida escrevendo, fazendo humor através das palavras, sendo escritor, cartunista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista, os últimos tempos de LFV foram difíceis, complicados e de sofrimento, embora ele nunca se queixasse", relatou o jornal Brasil de Fato.

Os últimos dias: A pneumonia fatal


Em 11 de agosto de 2025, Luis Fernando Veríssimo deu entrada no Hospital Moinhos de Vento com o que inicialmente parecia ser um "princípio de pneumonia leve". Segundo informações divulgadas pela família em 17 de agosto, ele estava internado "desde a semana anterior por conta de uma pneumonia leve que foi piorando".


O quadro, que inicialmente não parecia grave, foi se complicando progressivamente. O boletim médico de 17 de agosto já classificava seu estado como "grave", informando que o paciente "encontra-se internado no Centro de Terapia Intensiva Adulto da instituição, em estado grave, recebendo todas as medidas de suporte necessárias".


Durante os 19 dias de internação, Luis Fernando lutou contra as complicações da pneumonia, agravadas por suas múltiplas comorbidades: Parkinson, problemas cardíacos, sequelas do AVC de 2021 e a idade avançada de 88 anos. Era uma batalha desigual contra um organismo já debilitado por anos de luta contra diversas enfermidades.


Na madrugada de sábado, 30 de agosto de 2025, às 00h40, o coração do grande cronista parou de bater.


"O Hospital Moinhos de Vento comunica o falecimento do escritor e cronista Luis Fernando Verissimo, às 00h40 deste sábado (30), devido a complicações decorrentes de uma pneumonia", informou a nota oficial da instituição.

A filosofia diante da morte


Ao longo de sua vida, Luis Fernando Veríssimo sempre encarou a morte com a mesma mistura de melancolia e ironia que caracterizava toda sua obra. Em 2011, declarou à Folha de S. Paulo:


"A morte é uma injustiça, essa é a melhor descrição. Mas temos que viver com ela". "Estamos nos tornando mais lentos de pensamento. Nesse aspecto, sinto a velhice. Mas o que resta é tentar aproveitar a vida da melhor forma. Enquanto eu puder aproveitar minha janela, ir ao cinema, viajar, vou levando".

Dois anos depois, em 2013, após uma grave internação na UTI, foi ainda mais contundente: "A morte é uma sacanagem. Estou cada vez mais contra". Era uma declaração típica de seu humor: transformar o drama existencial em uma frase ao mesmo tempo profunda e engraçada.


Em outra ocasião, demonstrou sua visão filosófica da existência:


"Uma vez me perguntaram o que eu achava da passagem do tempo, e eu disse: sou contra. Mas, no fim, é o tempo que nos controla".

E completava com sua sabedoria melancólica:


"No fim, pensando bem, a vida é uma grande piada. Acontece tudo isso com a gente, e a gente morre... que piada, né? Que piada de mau gosto. Mas acho que temos que encarar isso com uma certa resignação, uma certa bonomia [bondade]".

O legado imortal de um gênio


Luis Fernando Veríssimo deixa um legado literário inestimável: mais de 80 livros publicados, 5,6 milhões de exemplares vendidos, obras traduzidas para mais de 15 idiomas e uma influência que marca gerações de escritores brasileiros. Mais do que números, deixa a certeza de que a literatura pode ser, simultaneamente, profunda e acessível, crítica e amorosa, universal e intimamente brasileira.


Suas crônicas democratizaram o ato de ler no Brasil, especialmente através de livros como "Comédias Para Se Ler na Escola", que introduziram milhares de jovens ao prazer da literatura. Sua escrita fluida, despojada de preciosismos, conseguia abordar temas complexos - desde relacionamentos amorosos até críticas sociais - com uma leveza que nunca comprometia a profundidade.


Era capaz de fazer o leitor refletir enquanto sorria - uma combinação rara e preciosa na literatura mundial. Seus personagens - O Analista de Bagé, Ed Mort, A Velhinha de Taubaté, A Família Brasil - tornaram-se patrimônio cultural brasileiro, povoando o imaginário coletivo com a mesma força de personagens clássicos da literatura universal.


"Sábio é quem conhece os limites da própria ignorância... e ainda assim se arrisca" - uma de suas frases que resume perfeitamente a trajetória de quem nunca deixou de se surpreender com a vida e de nos surpreender com suas palavras.


A despedida de uma nação agradecida


A morte de Luis Fernando Veríssimo provocou uma comoção nacional raramente vista pela perda de um escritor. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou pesar pela perda de quem classificou como "dono de múltiplos talentos" e criador de "personagens inesquecíveis".


O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, decretou três dias de luto oficial no estado e declarou que "o Rio Grande do Sul se despede de um gênio da escrita, mas suas histórias seguirão entre nós, pois são imortais". O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, afirmou que "a cultura do Rio Grande do Sul e do Brasil tem um lugar reservado para Veríssimo".


O Sport Club Internacional, clube pelo qual Veríssimo declarou paixão durante toda a vida, relembrou um trecho da crônica "Não me acordem", sobre o título do Mundial de Clubes de 2006, chamando-o de "um dos maiores nomes da literatura nacional".


A escritora Martha Medeiros resumiu o sentimento de uma geração inteira:


"Obrigada, mestre, por todas as linhas, reflexões, epifanias, risadas, por toda a sua absoluta e inquestionável genialidade".

A eternidade do verbo


Luis Fernando Veríssimo morreu, mas sua palavra permanece viva e vibrante. Em cada página que escreveu, em cada personagem que criou, em cada sorriso que provocou, em cada reflexão que despertou, ele conquistou a única imortalidade possível para um escritor: viver eternamente na memória e no coração de seus leitores.


Hoje, quando se cala para sempre a voz que nos ensinou a rir de nós mesmos e a encontrar poesia no cotidiano mais prosaico, o Brasil perde não apenas um escritor, mas um intérprete sagaz de sua própria alma. Partiu o homem que transformou o ordinário em extraordinário, que fez do riso uma forma de resistência e da crônica uma arte maior.


Nas palavras que ele mesmo poderia ter escrito: partiu o cronista que soube, como poucos, capturar a essência do que significa ser brasileiro. Seu nome permanecerá eternamente ligado àqueles que compreenderam que a literatura não é um ornamento da cultura, mas sua própria essência.


Luis Fernando Veríssimo: 26 de setembro de 1936 - 30 de agosto de 2025.


O cronista da vida privada brasileira que se tornou patrimônio público de uma nação inteira. O gigante das letras que nos fez gigantes no riso e na reflexão. O mestre que nos ensinou que, mesmo diante dos absurdos da vida, sempre é possível encontrar uma razão para sorrir.


Descanse em paz, mestre. Suas palavras são eternas.

 
 
 

O banimento permanente do perfil de Jeferson Tenório no Instagram representa mais que uma simples "moderação de conteúdo". É o ápice de uma perseguição sistemática de quatro anos contra um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos, cujo único "crime" foi escrever sobre racismo estrutural e violência policial no Brasil.


Capa do livro 'O Avesso da Pele', de Jefferson Tenório, retratando um homem negro se preparando para mergulhar, simbolizando temas explorados no romance
Capa do livro 'O Avesso da Pele', de Jefferson Tenório, retratando um homem negro se preparando para mergulhar, simbolizando temas explorados no romance

A perseguição a Jeferson Tenório começou em 2021, quando "O Avesso da Pele" ganhou o prestigioso Prêmio Jabuti na categoria romance literário. O reconhecimento, longe de protegê-lo, o transformou em alvo prioritário da extrema direita brasileira. As primeiras ameaças chegaram após ele escrever sobre Paulo Freire em sua coluna no jornal Zero Hora. Mas foi em 2022 que a violência digital escalou dramaticamente. Após anunciar uma palestra em uma escola de Salvador, Tenório recebeu ameaças de morte explícitas através do Instagram. O usuário anônimo @estudante_anonimo123 enviou mensagens dizendo que ele teria seu "CPF cancelado" caso comparecesse ao evento. "Eh mlhr vc meter o pé e sair do país. Se nn vc tá fudido irmão", dizia a mensagem. As ameaças foram tão específicas e credíveis que a escola optou por realizar o encontro virtualmente, reconhecendo sua incapacidade de garantir a segurança física do escritor. Tenório registrou boletins de ocorrência, mas as ameaças continuaram após a palestra.


O ano de 2024 marcou uma escalada qualitativa na perseguição quando múltiplas secretarias estaduais de educação - Paraná, Goiás, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul - coordenaram ações para remover "O Avesso da Pele" das bibliotecas escolares. A justificativa oficial era sempre a mesma: "expressões impróprias para menores de 18 anos". Mas a hipocrisia era gritante. Como observou sarcasticamente o próprio Tenório: "O mais curioso é que as palavras de 'baixo calão' e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras". A diretora Janaina Venzon, da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira (RS), foi particularmente explícita em seu racismo estrutural. Em vídeo que depois apagou, ela declarou: "Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível".


O banimento definitivo do perfil de Tenório no Instagram, ocorrido no início de junho de 2025, seguiu um padrão familiar: censura silenciosa, sem justificativa específica, sem direito de defesa. O escritor, que havia construído um diálogo direto com 80 mil seguidores, descobriu-se digitalmente aniquilado da noite para o dia. "No primeiro momento, achei que a minha conta havia sido hackeado, mas depois veio a confirmação de que o meu perfil foi banido pela empresa Meta sob a alegação de que não se enquadrava nas diretrizes da plataforma", relatou Tenório. Nenhuma explicação adicional foi fornecida.


A recusa sistemática da Meta em responder questionamentos sobre o banimento revela uma estratégia deliberada de censura por desgaste. Múltiplos veículos de imprensa - UOL, Estadão, G1, CNN Brasil - contataram a empresa. Nenhum recebeu resposta. Este silêncio não é passividade; é política ativa. Ao recusar-se a justificar suas decisões, a Meta transforma cada banimento em um ato de soberania corporativa absoluta, onde não há instância de recurso, transparência ou prestação de contas. A coincidência temporal entre o banimento de Tenório e casos similares - Jones Manoel, Manuela d'Ávila, diversos perfis progressistas - expõe o caráter sistêmico e coordenado desta operação de limpeza ideológica. Particularmente revelador é o timing: faltando pouco mais de um ano para as eleições de 2026, quando o debate sobre racismo, educação e violência policial - temas centrais da obra de Tenório - tende a se intensificar. Como ele próprio observou: "faltando um ano para as eleições no Brasil, uma eleição que promete ser bastante difícil, acho que tem um envolvimento político também".


Tenório revelou um detalhe crucial: dias antes do banimento, ele havia publicado uma crítica comparando Bolsonaro a Trump. Pouco depois, sua conta sofreu o que ele suspeita ter sido um "ataque em massa" - técnica onde grupos organizados reportam simultaneamente um perfil para forçar sua suspensão automática. Esta weaponização dos próprios mecanismos de moderação da Meta representa uma sofisticação táctica da extrema direita digital. Eles não apenas produzem ameaças diretas, mas manipulam os algoritmos para que a própria plataforma execute a censura, criando uma aparência de neutralidade técnica. "Se for isso que aconteceu comigo mostra que há uma grande falha na Meta de não conseguir fazer esse tipo de avaliação", observou Tenório. Mas esta "falha" pode ser, na verdade, uma feature funcionando perfeitamente conforme o design corporativo.


A obra de Tenório não é atacada por acaso. "O Avesso da Pele" narra a história de Pedro, jovem negro cujo pai professor foi assassinado por policiais que o confundiram com um bandido. É uma denúncia literária do genocídio da população negra brasileira através da violência estatal. O romance expõe três pilares do projeto político da extrema direita brasileira: o racismo estrutural, a brutalidade policial e a precariedade educacional como instrumentos de controle social. Por isso, atacar Tenório é atacar uma cosmovisão antirracista que ameaça as bases ideológicas do conservadorismo brasileiro. A capitulação das secretarias estaduais em 2024 revelou como instituições públicas podem ser instrumentalizadas para executar a agenda censória da extrema direita. O fato de que "O Avesso da Pele" faz parte do PNLD - programa federal que aprovou a obra após rigorosa avaliação técnica - não impediu governadores de desautorizar unilateralmente decisões pedagógicas. Esta hierarquização política sobre critérios técnicos representa um golpe na autonomia educacional e um precedente autoritário perigoso.


A campanha de solidariedade a Tenório conseguiu mobilizar personalidades como Chico Buarque e Drauzio Varela, além de mais de 6.400 assinaturas em um abaixo-assinado contra a censura. A Companhia das Letras, sua editora, emitiu notas de repúdio e acionou a Justiça contra as tentativas de censura. Contudo, esta resistência liberal tem limitações estruturais. Enquanto se concentra na defesa da liberdade de expressão em abstrato, evita confrontar diretamente o caráter racial e classista da censura. A branquitude intelectual progressista solidariza-se com Tenório, mas evita radicalizar o debate sobre como racismo e censura são fenômenos indissociáveis.


O banimento de Tenório no Instagram representa prejuízo econômico direto e mensurável. Como escritor contemporâneo, ele dependia da plataforma para divulgar agenda de palestras, lançamentos de livros e interação com leitores. A redução drástica de alcance - de 80 mil para 3,2 mil seguidores - equivale a uma amputação digital de sua capacidade de subsistência profissional. Seus advogados do escritório FFM são explícitos: "a exclusão arbitrária reduz drasticamente o alcance do trabalho de Tenório, prejudicando sua atuação como escritor, educador e figura pública". Esta é a violência econômica da censura digital: destruir meios de subsistência de intelectuais dissidentes.


O silêncio sistemático da Meta diante das ameaças de morte que Tenório recebeu através de sua própria plataforma revela uma cumplicidade ativa com a violência racista. A empresa que censurou imediatamente uma conta que denuncia racismo foi a mesma que protegeu contas que promovem racismo. Esta seletividade não é acidental, mas estrutural. A Meta opera como um mecanismo de apartheid digital, onde vozes negras críticas são sistematicamente silenciadas enquanto discursos supremacistas circulam livremente. A recente guinada explícita da Meta - encerrando a checagem de fatos, afrouxando regras contra discursos de ódio, nomeando republicanos para cargos-chave - institucionaliza o que já era prática clandestina. O caso Tenório demonstra que essa virada à direita não começou em 2025, mas vinha sendo testada e refinada há anos através de experimentos de censura seletiva.


O caso Jeferson Tenório expõe a brutal realidade do apartheid digital brasileiro: escritores negros que denunciam o racismo são sistematicamente perseguidos, censurados e economicamente estrangulados por uma aliança entre extrema direita política, instituições públicas cooptadas e corporações tecnológicas globais. Não se trata de um caso isolado, mas de uma operação coordenada de silenciamento que combina ameaças físicas, censura institucional e aniquilação digital. O sucesso desta perseguição - Tenório permanece banido enquanto seus perseguidores operam livremente - demonstra a eficácia desta nova forma de controle social. A luta pela reativação do perfil de Tenório é, portanto, muito mais que uma questão de liberdade de expressão. É uma batalha antirracista contra um sistema de dominação que usa a tecnologia para perpetuar estruturas de opressão racial sob uma fachada de neutralidade corporativa. A democracia brasileira será testada por sua capacidade de proteger intelectuais negros que ousam narrar as violências que estruturam nossa sociedade. Por enquanto, este teste está sendo reprovado com nota zero.

 
 
 

Uma investigação sobre a apropriação política de uma das obras mais influentes da literatura moderna revela as tensões entre legado artístico e instrumentalização ideológica


J. R. R. Tolkien. Crédito: Tolkien Estate
J. R. R. Tolkien. Crédito: Tolkien Estate

Quando Giorgia Meloni subiu ao poder na Itália em 2022, uma de suas primeiras iniciativas culturais foi patrocinar uma dispendiosa exposição sobre J.R.R. Tolkien em Roma.


"Nesta saga encontramos os valores eternos que formam heróis autênticos", declarou a primeira-ministra durante a inauguração, referindo-se ao Senhor dos Anéis.

Para quem conhece a trajetória política de Meloni – formada nos "Campos Hobbit" organizados por grupos neofascistas italianos nos anos 1990 –, a homenagem soa menos como celebração literária e mais como manifesto político disfarçado.


Retrato oficial, 2024
Giorgia Meloni - Primeira-ministra da Itália - Retrato oficial, 2024

A apropriação da obra de Tolkien por movimentos de extrema-direita representa um dos casos mais complexos e perturbadores de como clássicos literários podem ser instrumentalizados para fins que contradizem frontalmente as convicções pessoais de seus autores. Uma investigação baseada em mais de quarenta fontes acadêmicas, documentos históricos e análises especializadas revela como uma obra sobre união na diversidade foi sistematicamente distorcida para promover exatamente o contrário: exclusão racial e nacionalismo étnico.


A transformação de hobbits em símbolos fascistas começou em 1977, nas colinas da Toscana. O Movimento Social Italiano (MSI), partido que congregava os herdeiros políticos do regime de Mussolini, criou os primeiros "Campos Hobbit" – acampamentos temáticos onde jovens militantes eram doutrinados usando O Senhor dos Anéis como base ideológica.


"A genialidade diabólica estava na reinterpretação", explica Helen Young, da Universidade Deakin e autora de Race and Popular Fantasy Literature. "Eles pegaram uma narrativa sobre resistência ao mal e cooperação entre diferentes povos, e a transformaram numa metáfora para pureza racial e resistência à 'invasão' cultural."

"Campos Hobbit"- Fonte: I Ligiornali Off
"Campos Hobbit"- Fonte: I Ligiornali Off

Os organizadores reinterpretaram sistematicamente os elementos centrais da narrativa tolkieniana: os "povos livres do Oeste" representavam a Europa branca e cristã; Sauron e suas hordas simbolizavam invasões de povos não-europeus; a missão de destruir o Anel se tornava um chamado para preservar a homogeneidade cultural ocidental. O método funcionou com eficácia impressionante. Os acampamentos continuaram por décadas, formando gerações de quadros políticos que cresceram vendo Frodo e Aragorn como heróis de uma causa nacionalista. Entre os participantes estava Giorgia Meloni, então adolescente, que hoje ocupa o cargo mais alto do governo italiano.


J. D. Vance - Vice-presidente dos EUA - Retrato oficial, 2025
J. D. Vance - Vice-presidente dos EUA - Retrato oficial, 2025

Nos anos 2000, essa interpretação política da obra tolkieniana atravessou oceanos, encontrando terreno fértil nos Estados Unidos. Peter Thiel, co-fundador do PayPal e bilionário do Vale do Silício, nomeou sistematicamente suas empresas com referências ao universo de Tolkien: Palantir Technologies, Mithril Capital, Valar Ventures, Anduril Industries. A escolha dos nomes não foi coincidental. Palantir, as pedras de visão que na narrativa tolkieniana representam os perigos da vigilância autoritária, tornou-se o nome de uma empresa especializada em tecnologias de espionagem para governos. Anduril, a espada reforjada de Aragorn, denomina uma companhia de armamentos autônomos. A ironia é perturbadora: símbolos criados por Tolkien para alertar sobre os perigos do poder absoluto sendo usados por empresas que lucram com controle e guerra.


J.D. Vance, candidato republicano à vice-presidência dos Estados Unidos em 2024, declarou publicamente que


"muito da minha visão política conservadora foi profundamente influenciada pela obra de J.R.R. Tolkien".

Em suas formulações, a resistência do Condado aos "modernizadores" de Saruman espelha a resistência das comunidades tradicionais americanas às mudanças sociais contemporâneas. Robert Stuart, autor de Tolkien, Race, and Racism in Middle-earth, documenta como essa rede de apropriação se expandiu:


"Não estamos falando de fãs casuais. Estamos falando de uma rede internacional de políticos, empresários e intelectuais que desenvolveram, ao longo de cinco décadas, uma interpretação sistemática da obra como manifesto político".

A instrumentalização extremista da obra tolkieniana enfrenta, no entanto, um obstáculo histórico intransponível: as próprias convicções e ações de J.R.R. Tolkien. Em 1938, quando editores alemães solicitaram comprovação de sua "descendência ariana" para publicar O Hobbit na Alemanha nazista, a resposta de Tolkien foi devastadora para qualquer tentativa de alinhá-lo com doutrinas racistas.


"Não considero a (provável) ausência de todo sangue judeu como necessariamente honrosa", escreveu Tolkien, "e tenho muitos amigos judeus, e lamentaria dar qualquer aparência à noção de que subscrevo à doutrina racial totalmente perniciosa e não científica".

A carta, enviada em julho de 1938, causou o cancelamento imediato da publicação alemã. Mais que uma recusa diplomática, representou uma tomada de posição moral explícita contra a ideologia que hoje tenta cooptá-lo. Tolkien chamou Hitler de "aquele ignaro sanguinário" e expressou "rancor particular" contra o ditador alemão. Dimitra Fimi, da Universidade de Cardiff e especialista em medievalismo tolkieniano, argumenta que essa posição foi consistente ao longo da vida do autor:


"Em 1967, quase trinta anos depois da carta original, Tolkien rejeitou explicitamente o termo 'nórdico' devido às suas 'associações lamentáveis com as teorias raciais'".

Durante a Segunda Guerra Mundial, Tolkien não apenas se opôs ao nazismo politicamente, mas tomou atitudes práticas contra o racismo, oferecendo aulas gratuitas para refugiados judeus em Oxford e mantendo correspondência acadêmica com intelectuais perseguidos pelo regime hitlerista.


A questão se torna verdadeiramente complexa quando acadêmicos identificam elementos genuinamente problemáticos nos textos de Tolkien que, inadvertidamente, facilitam apropriações racistas. A passagem mais controversa aparece em uma carta de 1958, onde Tolkien descreveu os Orcs como:


"atarracados, largos, de nariz achatado, pele amarelenta, com bocas largas e olhos oblíquos: de fato, versões degradadas e repulsivas dos tipos mongóis (para europeus) menos atraentes".

James Mendez Hodes, especialista em estudos asiático-americanos, considera essa descrição uma forma de "lavagem de ódio" – a transferência de preconceitos do mundo real para contextos fantásticos.


Rebecca Brackmann documenta como os Anões em O Hobbit incorporaram estereótipos antissemitas da literatura europeia: obsessão com ouro, comportamento argumentativo, insulamento cultural. O próprio Tolkien reconheceu:


"Penso nos Anões como judeus: ao mesmo tempo nativos e estrangeiros em suas habitações".

No entanto, estudiosos como Tom Shippey argumentam que muitos elementos aparentemente racistas refletem convenções da literatura medieval que Tolkien estava imitando, não endossos pessoais a doutrinas raciais. Fimi demonstra como as representações evoluíram ao longo da obra: enquanto os Anões de O Hobbit (1937) reproduzem tropos problemáticos, Gimli em O Senhor dos Anéis (1954-55) é retratado como nobre e heroico, sugerindo evolução consciente nas ideias do autor.


Patrick Curry aponta momentos onde Tolkien explicitamente quebra caracterizações simplistas, como quando Sam contempla um soldado morto de Harad:


"Ele se perguntava como se chamava o homem e de onde ele vinha; e se ele era realmente mau de coração, ou que mentiras ou ameaças o levaram na longa marcha de sua casa".

É um momento de profunda humanização do "inimigo" que contradiz leituras supremacistas.


Capa oficial da Séria - Divulgação Amazon Prime
Capa oficial da Séria - Divulgação Amazon Prime

O debate explodiu novamente em 2022 com o lançamento de Os Anéis de Poder, da Amazon, que incluiu atores negros interpretando elfos, anões e hobbits. A reação foi imediata e virulenta: campanhas organizadas de assédio racista, ataques sistemáticos nas redes sociais, e argumentos aparentemente sofisticados sobre "fidelidade ao material original". A resposta da comunidade acadêmica foi inequívoca. Mais de duzentos especialistas em Tolkien assinaram uma carta defendendo o direito de adaptações incluírem diversidade racial. O elenco original dos filmes de Peter Jackson se posicionou publicamente, com Sean Astin declarando:


"A Terra Média não pertence a supremacistas brancos. Essa obra fala sobre diferentes povos superando suas diferenças para combater o mal".

Robin Reid, do Journal of Tolkien Research, documentou como grupos organizados de extrema-direita atacaram não apenas adaptações diversas, mas os próprios acadêmicos que estudam questões raciais na obra. O seminário da Tolkien Society sobre diversidade em 2021 recebeu mais de 700 inscrições legítimas, mas também ataques coordenados de supremacistas tentando sabotar as apresentações.


Charles Mills, filósofo político da Northwestern University, ofereceu uma das análises mais sofisticadas em seu ensaio The Wretched of Middle-Earth. Mills argumenta que a obra de Tolkien opera simultaneamente em dois níveis morais: celebra explicitamente valores universais como amizade e resistência à tirania, mas implicitamente normaliza hierarquias raciais através de sua estrutura cosmológica. Helen Young vai além, identificando o que ela chama de "hábitos de branquitude" no gênero fantástico como um todo – padrões estabelecidos historicamente que facilitam apropriações problemáticas.


"O problema não é que Tolkien era um nazista disfarçado", ela explica. "O problema é que ele criou um mundo onde certas formas de desigualdade parecem naturais, mesmo quando a narrativa superficial prega valores igualitários."

A disputa pelo legado de Tolkien revela tensões mais amplas sobre como sociedades contemporâneas lidam com obras culturais influentes criadas em contextos históricos diferentes. Como observa a especialista em apropriação cultural Yuniya Kawamura,


"a transformação de símbolos culturais é sempre um processo político, onde diferentes grupos competem para estabelecer significados dominantes".

A apropriação de Tolkien insere-se num fenômeno mais amplo que historiadores chamam de "medievalismo weaponizado". Desde o ataque em Charlottesville (2017) até a invasão do Capitólio americano (2021), supremacistas brancos têm usado sistematicamente símbolos medievais – cruzes templários, runas nórdicas, brasões europeus – para promover fantasias de pureza racial.


Dorothy Kim, medievalista da Universidade Brandeis, alerta:


"O passado europeu cristão medieval está sendo weaponizado por grupos extremistas que frequentemente são estudantes universitários". Mary Rambaran-Olm adiciona que "grupos identitários de extrema-direita buscam provar sua ancestralidade superior retratando os anglo-saxões de formas que promovem identidade inglesa e progresso nacional".

O fenômeno não se limita ao mundo anglófono. Estudos documentam apropriações similares de simbologias medievais por movimentos ultranacionalistas em toda a Europa, sempre baseadas numa compreensão historicamente incorreta da Idade Média como período de homogeneidade racial.


A comunidade acadêmica tolkieniana desenvolveu o que Robin Reid chama de "engajamento crítico informado" – uma abordagem que reconhece problemas sem descartar valores, contextualiza limitações históricas sem usá-las como desculpas, e defende ativamente interpretações inclusivas. Emerge uma nova geração de pesquisadores, incluindo muitos estudiosos racializados, que não têm medo de abordar essas questões frontalmente. Helen Young não apenas identifica elementos problemáticos, mas analisa como eles podem ser contextualizados e criticados sem descartar o valor literário do conjunto. Dimitra Fimi oferece uma síntese equilibrada:


"Tolkien era um homem do seu tempo, e seu tempo tinha problemas. Mas ele também transcendeu muitas limitações de sua época e demonstrou capacidade de crescimento".

Sua pesquisa mostra como é possível amar profundamente uma obra reconhecendo simultaneamente suas limitações históricas.


A disputa sobre Tolkien oferece lições cruciais sobre como sociedades democráticas devem lidar com legados culturais complexos numa era de polarização extrema. Primeiro, demonstra que a resposta à apropriação extremista não pode ser nem condenação total nem defesa acrítica, mas engajamento nuançado baseado em evidências históricas. Segundo, revela como grupos organizados podem sistematicamente distorcer obras culturais para fins políticos, processo que exige vigilância e resposta ativa de acadêmicos, educadores e instituições culturais. Como observa a pesquisadora em apropriação cultural Abraham Oshotse:


"a determinação do que constitui apropriação cultural é um processo contextual, moldado pelo ato, pelas pessoas envolvidas e pela identidade dos observadores".

Terceiro, mostra a importância de vozes diversas nos estudos culturais. Como documenta Helen Young, a predominância histórica de perspectivas brancas nos estudos medievais facilitou apropriações problemáticas. A inclusão de estudiosos racializados está produzindo análises mais sofisticadas e resistentes a cooptações extremistas.


Livros Tolkien - Fonte: Reprodução
Livros Tolkien - Fonte: Reprodução

Quando J.R.R. Tolkien escreveu que "mesmo a menor pessoa pode alterar o curso da história", dificilmente imaginava que suas palavras se tornariam relevantes numa batalha cultural sobre o próprio significado de sua obra. A tentativa de transformar símbolos de cooperação em emblemas de exclusão representa uma das mais perversas formas de apropriação cultural contemporânea. As evidências históricas são inequívocas: Tolkien pessoalmente rejeitava doutrinas raciais e defendia valores antitéticos ao supremacismo branco. Sua obra, apesar de limitações históricas específicas, promove fundamentalmente a união na diversidade contra forças de divisão e ódio – precisamente o oposto da mensagem extremista.


A resposta adequada não é abandonar esses símbolos aos extremistas, mas reclamá-los ativamente. Como argumenta Sean Astin, "You Are All Welcome Here" – "Vocês São Todos Bem-vindos Aqui" – captura o espírito real da obra muito melhor que qualquer campo político excludente. No final, a disputa pelo legado de Tolkien é uma disputa sobre que tipo de mundo queremos construir: um onde diferenças são motivos para divisão, ou um onde povos diferentes podem trabalhar juntos contra ameaças comuns. Nessa disputa, tanto a biografia quanto a obra de J.R.R. Tolkien oferecem muito mais munição para o segundo tipo de mundo. A batalha pela Terra Média continua. E dessa vez, os verdadeiros defensores de Tolkien são aqueles que defendem inclusão contra exclusão, cooperação contra supremacia, luz contra escuridão.



 
 
 
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