- Raul Silva
- há 4 dias
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Em novembro de 2017, uma cena surreal se desenrolou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Uma multidão gritava palavras de ódio contra uma senhora de 61 anos que acabara de desembarcar para participar de um seminário acadêmico sobre democracia. Judith Butler, uma das filósofas mais influentes do mundo contemporâneo, foi atacada fisicamente com um trolley metálico enquanto tentava deixar o terminal. Do lado de fora, manifestantes queimavam uma efígie representando a intelectual como uma bruxa, com um sutiã rosa anexado ao boneco. A cena, filmada e amplamente divulgada, marcou um dos episódios mais emblemáticos de como teorias acadêmicas sofisticadas podem ser distorcidas para alimentar campanhas de desinformação e pânico moral.
O que levou uma respeitada professora da Universidade da Califórnia, Berkeley, a se tornar o centro de uma controvérsia que mobilizou mais de 370 mil pessoas em uma petição online pedindo o cancelamento de sua palestra? A resposta não está em suas teorias filosóficas sobre gênero e identidade, mas na fabricação deliberada de um espantalho político conhecido como "ideologia de gênero" - uma expressão que não possui fundamentação científica e foi criada especificamente para desqualificar décadas de pesquisa acadêmica séria.
Butler, nascida em 1956, construiu sua carreira como uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo e dos estudos queer. Sua obra seminal, "Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity", publicada em 1990 e traduzida no Brasil como "Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade", revolucionou a compreensão acadêmica sobre gênero, sexualidade e identidade. Com formação sólida em filosofia - obteve seu PhD em Yale em 1984 - Butler desenvolveu conceitos que transformaram não apenas os estudos de gênero, mas influenciaram profundamente campos como a filosofia política, a teoria crítica e os estudos culturais.
O conceito central de seu trabalho é a performatividade de gênero, uma teoria complexa que vai muito além das interpretações simplistas que seus críticos fazem circular. Diferentemente do que alegam os detratores, Butler jamais defendeu que as pessoas podem "escolher" seu gênero livremente ou que as diferenças biológicas entre homens e mulheres não existem. Sua teoria da performatividade propõe que o gênero é um efeito de práticas reiterativas e citacionais, ou seja, é constituído através da repetição constante de atos, gestos e discursos que criam a ilusão de uma identidade de gênero natural e estável.
"A performatividade deve ser compreendida não como um 'ato' singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como uma prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia", explica Butler em seus escritos.
Esta definição esclarece que não se trata de uma escolha consciente ou voluntária, mas de um processo complexo de repetição de normas sociais anteriores que moldam nossa compreensão do que significa ser homem ou mulher.

A filósofa estabelece uma distinção crucial entre performance e performatividade. Enquanto performances pressupõem a existência anterior de um sujeito que atua seu gênero, a noção de performatividade sublinha que não há subjetividade que antecede sua atuação performativa. Como Butler explicita:
"A performatividade de gênero sexual não consiste em eleger de que gênero seremos hoje. Performatividade é reiterar ou repetir as normas mediante as quais nos constituímos".
Esta clarificação é fundamental para compreender por que as acusações de que Butler promove uma ideologia onde "qualquer um pode escolher ser qualquer gênero" são completamente infundadas.

Outro aspecto frequentemente mal interpretado da teoria butleriana é sua crítica à tradicional distinção entre sexo biológico e gênero cultural. Butler não nega a existência de diferenças biológicas entre corpos, mas questiona como essas diferenças são interpretadas e utilizadas para justificar hierarquias sociais e exclusões. Quando afirma que
"talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula",
Butler não está negando a materialidade dos corpos, mas argumentando que nossa compreensão desses corpos sempre é mediada por interpretações culturais e discursivas.
No entanto, essas nuances filosóficas foram completamente ignoradas pelos criadores da campanha contra a suposta "ideologia de gênero". O termo, que não possui fundamentação científica, constitui-se como uma falácia construída por setores conservadores para desqualificar os estudos de gênero. Sua gênese remonta ao ambiente católico conservador, particularmente aos escritos do argentino Jorge Scala, a partir de 1997. Scala define ideologia como "um corpo fechado de ideias, que parte de um pressuposto básico falso - que por isto deve impor-se evitando toda análise racional". Em sua concepção distorcida, a "ideologia de gênero" teria como "fundamento principal e falso" a ideia de que "o sexo seria o aspecto biológico do ser humano, e o gênero seria a construção social ou cultural do sexo".
Esta definição revela uma compreensão superficial e deturpada dos estudos de gênero, ignorando décadas de produção científica rigorosa desenvolvida por pesquisadores em universidades do mundo inteiro. Como observa um especialista brasileiro, "utilizar o termo 'ideologia de gênero' é um completo equívoco do ponto de vista científico e revela o esforço de grupos em deturpar o conceito de gênero na tentativa de instaurar um pânico social".
A disseminação desta falácia utilizou várias táticas coordenadas: desonestidade intelectual através da formulação de argumentos sem fundamentos científicos replicados em mídias sociais; terrorismo moral com a atribuição do status de demônio às pessoas favoráveis à igualdade de gênero; intimidação profissional através de notificações extrajudiciais contra professores que abordassem temas de gênero; e manipulação emocional usando apelos emotivos sobre "proteção da infância" e "defesa da família". A estratégia foi particularmente eficaz porque articulou as "cruzadas antipedofilia e antigênero", criando um "artefato político e categoria de acusação" que produziu "efeitos decisivos na arena política brasileira contemporânea".
No contexto brasileiro, a reação conservadora aos estudos de gênero ganhou força a partir de 2011, impulsionada por eventos como a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre união homoafetiva e a discussão sobre materiais educativos de combate à homofobia. A primeira menção conjunta de "ideologia" e "gênero" em proposições parlamentares ocorreu em 2012, evoluindo para a primeira referência explícita à "ideologia de gênero" em 2014. O fenômeno articulou "múltiplos atores, em sua maioria conservadores católicos e pentecostais", convergindo em torno de dois temas principais: educação sexual e identidade de gênero.
COMPARAÇÕES ENTRE GÊNERO E 'IDEOLOGIA DE GÊNERO'
Aspecto | Estudos Científicos de Gênero | Narrativa da "Ideologia de Gênero" |
Definição de Gênero | Construção social e cultural dos papéis, comportamentos e relações entre sexos | Suposta imposição de que cada pessoa pode escolher livremente seu gênero |
Base Científica | Décadas de pesquisa interdisciplinar em sociologia, antropologia, psicologia, filosofia | Rejeitada como ""pseudociência"" ou ""doutrinação marxista"" |
Relação Sexo/Gênero | Sexo biológico existe, mas papéis de gênero são socialmente construídos | Nega diferenças biológicas entre homens e mulheres |
Objetivo dos Estudos | Compreender e reduzir desigualdades, promover equidade e direitos humanos | Supostamente destruir a família tradicional e promover libertinagem |
Abordagem Metodológica | Pesquisa empírica, análise crítica, estudos comparativos transculturais | Baseada em panfletos, redes sociais e discursos religiosos/políticos |
Perspectiva sobre Identidade | Identidades são complexas, multifacetadas e contextualmente situadas | Identidades são fixas, determinadas biologicamente e imutáveis |
Proposta Educacional | Educação para igualdade, combate à discriminação e violência de gênero | Educação como ""sexualização precoce"" e ""doutrinação ideológica"" |
Visão sobre Família | Reconhece diversidade de arranjos familiares e suas transformações históricas | Defende modelo único de família heterossexual tradicional |
Tratamento da Diversidade | Valoriza e protégé a diversidade humana como direito fundamental | Vê diversidade como ameaça à ordem natural e moral |
Fundamentação Teórica | Judith Butler, Joan Scott, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, entre outros | Jorge Scala, setores conservadores católicos, fundamentalistas religiosos |

O episódio mais emblemático dessa mobilização foi precisamente o ataque dirigido contra Judith Butler durante sua visita ao Brasil em novembro de 2017. A filósofa havia sido convidada pelo SESC-SP para participar do seminário "Os Fins da Democracia", focado nos perigos que a democracia enfrenta globalmente. Mesmo antes de sua chegada, Butler foi alvo de uma campanha coordenada que incluiu uma petição online com mais de 370 mil assinaturas pedindo o cancelamento de sua palestra, acusações infundadas de que promovia "corrupção e fragmentação da sociedade", o protesto violento com a queima de efígie representando Butler como bruxa, e a agressão física com trolley metálico no aeroporto.
O protesto revelou a distorção completa das ideias de Butler. Como ela própria observou, os manifestantes "pareciam erroneamente interpretar sua 'teoria performativa de gênero'" como "promovendo a ideia de que alguém pode se tornar qualquer gênero que quiser". Butler esclareceu que sua teoria nunca negou "a existência de limitações" e sempre buscou "criar uma vida mais vivível para todas as pessoas que atravessam o espectro de gênero". A filósofa observou sobre o ataque:
"Não parece haver qualquer evidência de que aqueles que se mobilizaram nesta ocasião tivessem qualquer familiaridade com meu texto 'Problemas de Gênero'".
A estratégia de pânico moral atingiu seu ápice nas eleições presidenciais de 2018, com a reativação do controverso "kit gay". Este material educativo, que nunca foi efetivamente distribuído, foi transformado em símbolo da suposta ameaça da "ideologia de gênero" às crianças. A análise da circulação desses materiais no Twitter revelou como "a disseminação do 'kit gay' como artefato político continua a gerar pânico moral e acusações contra os adversários". Jair Bolsonaro foi repreendido pelo Tribunal Superior Eleitoral por espalhar fake news sobre o conteúdo do material, mas a estratégia foi eficaz eleitoralmente, contribuindo para sua vitória.

A discussão sobre "ideologia de gênero" deve ser compreendida no contexto mais amplo da "pós-verdade" e da "guerra contra os fatos" através de fake news e teorias conspiratórias. Pesquisadores identificaram que o combate à "ideologia de gênero" encontrou "novos arranjos" considerando "a discussão epistemológica acerca da pós-verdade". A estratégia conservadora passou a valorizar "muito mais a forma dramática e o apelo emocional do que o conteúdo e fontes legítimas". Este fenômeno se caracteriza pela "incessante produção de materiais que valorizam muito mais a forma do que o conteúdo, tal qual como memes, fake news e teorias conspiratórias difundidas nas mídias digitais".
A popularização das mídias sociais a partir de 2010 foi crucial para a disseminação da narrativa antigênero. Os "movimentos de direita conseguem captar de melhor forma esse acontecimento", utilizando plataformas digitais para amplificar suas mensagens. Figuras como "Bernardo Küster, Nando Moura e a grande referência de ambos, Olavo de Carvalho" emergiram como "empreendedores morais" na cruzada contra a suposta "ideologia de gênero". Estes atores utilizaram estratégias de marketing político neoconservador para legitimizar "o combate aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das minorias".
Os efeitos da desinformação foram particularmente devastadores na educação. Levantamento realizado em 2016 mostrou que, dos 22 Planos Estaduais de Educação aprovados, "9 não fazem qualquer referência à palavra 'gênero' e 15 não explicitam o termo 'gênero' nos Princípios ou Diretrizes". Este resultado contraria décadas de construção democrática de políticas educacionais baseadas em documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), e os Princípios de Yogyakarta (2007), que estabeleceram marcos internacionais para a promoção da equidade de gênero na educação.
A comunidade acadêmica brasileira respondeu energicamente às distorções sobre os estudos de gênero. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) publicou o "Manifesto pela Igualdade de Gênero na Educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras", assinado por 113 pesquisadores e grupos de estudos. O Conselho Nacional de Educação também se manifestou, afirmando que "a ausência ou insuficiência de tratamento das referidas singularidades fazem com que os planos de educação que assim as trataram sejam tidos como incompletos". Diversas universidades e associações científicas emitiram declarações em defesa dos estudos de gênero.

Contrariando as narrativas conservadoras, os estudos de gênero no Brasil consolidaram-se como campo científico respeitável e produtivo. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) emerge como protagonista nacional, estando "entre as 10 instituições, dentre 236, com maior número de grupos e linhas de pesquisa formais sobre estudos de gênero no Brasil". Pesquisas cientométricas mostram que a UFRGS também está "entre as três universidades nacionais com o maior número de artigos na área publicados até 2019". A Universidade Federal da Bahia (UFBA) criou pioneiramente o Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, formando "profissionais aptas(os) a formular, analisar e gerir políticas públicas com perspectiva de gênero e diversidade".
Especialistas brasileiros enfatizam consistentemente a legitimidade científica dos estudos de gênero em contraposição à falácia da "ideologia de gênero". O antropólogo Bernardo Fonseca Machado observa que "essa expressão desqualifica gênero como um conceito e desconsidera seu caráter analítico e científico". Pesquisadores destacam que os estudos de gênero "fazem parte de uma área inter e transdisciplinar que visa refletir a respeito de marcadores de subjetividade, identidade e marcadores sociais" e estão presentes em "21 das 29 Unidades Regionais e Acadêmicas da UFRGS", demonstrando sua transversalidade disciplinar.
O pânico moral criado em torno da "ideologia de gênero" teve consequências concretas e devastadoras. O Brasil mantém estatísticas alarmantes de violência de gênero: entre 1980 e 2013, foram assassinadas 106.093 mulheres no país. Desde 2008, mais de 4 mil mulheres são assassinadas anualmente, com tendência crescente. Relativamente à população LGBTQ+, o Relatório sobre Violência Homofóbica de 2012 registrou 9.982 denúncias de violações dos direitos humanos e pelo menos 310 homicídios de pessoas LGBT. A organização Transgender Europe documentou que, entre 2008 e 2014, o Brasil liderou o ranking mundial de assassinatos de travestis e transexuais, com mais de 600 mortes.

A mobilização conservadora provocou retrocessos significativos nas políticas públicas. Em setembro de 2015, o Ministério da Educação instituiu o Comitê de Gênero, mas "mediante pressão da Câmara dos Deputados", em apenas 12 dias o comitê foi extinto e substituído por um "Comitê de Combate à Discriminação", eliminando a palavra gênero. Este episódio exemplifica como "as pressões políticas por parte dos grupos de parlamentares fundamentalistas" fizeram com que "o governo federal apenas recue". A estratégia de intimidação chegou ao ponto de circular "modelo de notificação extrajudicial" para professores se absterem de abordar temas de gênero.
A atmosfera de intimidação afetou profundamente a formação e atuação docente. Pesquisas nacionais revelaram que "o nível de atitudes preconceituosas foi de 93,5% em relação a gênero e 87,3% em relação à orientação sexual" nos estabelecimentos educacionais. O "grau de conhecimento de práticas discriminatórias sofridas por estudantes foi de 10,9% por ser mulher e 17,4% por ser homossexual". Estes dados demonstram a urgência de políticas educacionais que promovam a equidade de gênero, contrariando a narrativa conservadora que vê tais iniciativas como ameaça.
A reação conservadora aos estudos de gênero não se limitou ao Brasil, constituindo-se como fenômeno global. Pesquisadores identificam que "as ofensivas antigênero se assentaram, basicamente, sobre redes mais antigas, sobretudo católicas, de oposição ao direito ao aborto". Estas formações são descritas como "muito heterogêneas, como hidras de muitas cabeças que se alimentam de fontes ideológicas heteróclitas ou mesmo contraditórias". O Brasil tornou-se "um dos poucos países do mundo onde a ideologia antigênero está decididamente enraizada no aparelho estatal", junto com Hungria e Polônia.
O governo brasileiro estabeleceu "sólidas parcerias" com outros países conservadores em "várias iniciativas intergovernamentais", incluindo a "Declaração do (chamado) 'Consenso de Genebra sobre Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família'". Estas alianças demonstram a coordenação internacional das ofensivas antigênero. A participação brasileira em "seminários voltados para o debate de 'políticas familiares' e o enfrentamento à 'ideologia de gênero'" revela como a narrativa conservadora se articulou globalmente, utilizando estratégias similares de desinformação e mobilização em diferentes contextos nacionais.
Contrariamente às caricaturas conservadoras, o pensamento de Butler evoluiu significativamente desde "Gender Trouble". Suas reflexões expandiram-se para campos como teoria política, ética da não-violência, e estudos sobre precariedade. Em obras posteriores como "Bodies That Matter" (1993) e trabalhos recentes, Butler aprofundou suas reflexões sobre materialidade corporal e vulnerabilidade. A filósofa desenvolve hoje o conceito de precariedade, propondo "uma crítica da dependência não reconhecida como ponto de partida para uma nova política do corpo". Esta expansão teórica demonstra a contínua relevância e sofisticação de seu pensamento, contrastando com as simplificações conservadoras.
Butler permanece como uma das intelectuais mais citadas mundialmente. Recebeu o prestigioso Prêmio Theodor W. Adorno em 2012 por suas contribuições filosóficas, apesar das controvérsias políticas. Suas palestras acadêmicas são "standing room only", evidenciando o reconhecimento científico de seu trabalho. A influência de Butler transcende a academia, "influindo profundamente em movimentos sociais, políticas de identidade e debates culturais em todo o mundo". Sua obra "não solo ha replanteado el género como una construcción social performativa, sino que también ha cuestionado las categorías binarias y la norma heterosexual".
Apesar do reconhecimento acadêmico, Butler continua enfrentando distorções de suas ideias. Como ela observou sobre o ataque no Brasil: "Não parece haver nenhuma evidência de que aqueles que se mobilizaram nesta ocasião tivessem alguma familiaridade com meu texto Problemas de Gênero". A filósofa reconhece que:
"como opositores da teoria crítica de gênero e raça, esses grupos também se opõem às universidades não pelo dogma ostensivo que ensinam, mas pela mente aberta que correm o risco de produzir".
Butler mantém uma postura reflexiva sobre essas controvérsias, observando que:
"quando fui queimado em efígie no Brasil em 2017, pude ver pessoas gritando sobre gênero, e elas entenderam 'gênero' como 'pedofilia'".
Esta distorção exemplifica como suas teorias são sistematicamente mal representadas para fins políticos.
O caso Butler/ideologia de gênero oferece lições cruciais sobre a importância da educação científica e do letramento crítico. Como observa um especialista, "é importante ter essa discussão dentro e fora da academia e trazê-la para os projetos de pesquisa, extensão e divulgação científica". A resistência acadêmica brasileira demonstrou a vitalidade dos estudos de gênero. Iniciativas como a campanha "Fato Certo Não Tem Erro" foram desenvolvidas com o objetivo de "conscientizar famílias, profissionais da educação e a sociedade em geral e dar subsídios teóricos e jurídicos para o debate sobre as identidades de gênero".
A controvérsia revela desafios mais amplos para a democracia brasileira. Como observa um pesquisador, o fenômeno "desafia os direitos das mulheres e da população LGBTQ+, a laicidade do Estado e a própria democracia". A articulação entre fundamentalismo religioso e extremismo político representa uma ameaça às instituições democráticas. A experiência brasileira tornou-se caso de estudo internacional sobre como movimentos antigênero podem capturar aparelhos estatais. A necessidade de "desenvolver a capacidade de dialogar de forma civilizada com quem pensa diferente" permanece urgente para a "superação das diferenças".
Apesar dos retrocessos, a resistência acadêmica e social mantém viva a esperança de reversão deste quadro. O crescimento dos estudos de gênero nas universidades brasileiras, a produção científica robusta na área, e a mobilização de organizações da sociedade civil demonstram a resiliência do conhecimento científico. Como Butler afirma, sua teoria sempre buscou:
"oferecer mais linguagem e reconhecimento àqueles que se viram condenados ao ostracismo por não confirmarem as ideias restritivas do que significa ser homem ou mulher".
Este objetivo humanitário e científico permanece relevante diante dos desafios contemporâneos.
A história de Judith Butler e da fabricação da "ideologia de gênero" no Brasil constitui um episódio exemplar de como teorias acadêmicas sofisticadas podem ser distorcidas para fins políticos, gerando pânico moral e retrocessos nas políticas públicas. Também demonstra, no entanto, a capacidade de resistência da comunidade científica e a importância de defender o conhecimento rigoroso contra a desinformação organizada. O legado de Butler permanece como contribuição fundamental para a compreensão da complexidade humana e para a construção de sociedades mais justas e inclusivas, independentemente das tempestades políticas que possam se formar ao seu redor.