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Educação

Slide de apresentação apresentando o desenvolvimento do conceito de performatividade de gênero de Michel Foucault a Judith Butler
Slide de apresentação apresentando o desenvolvimento do conceito de performatividade de gênero de Michel Foucault a Judith Butler 

Em novembro de 2017, uma cena surreal se desenrolou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Uma multidão gritava palavras de ódio contra uma senhora de 61 anos que acabara de desembarcar para participar de um seminário acadêmico sobre democracia. Judith Butler, uma das filósofas mais influentes do mundo contemporâneo, foi atacada fisicamente com um trolley metálico enquanto tentava deixar o terminal. Do lado de fora, manifestantes queimavam uma efígie representando a intelectual como uma bruxa, com um sutiã rosa anexado ao boneco. A cena, filmada e amplamente divulgada, marcou um dos episódios mais emblemáticos de como teorias acadêmicas sofisticadas podem ser distorcidas para alimentar campanhas de desinformação e pânico moral.


O que levou uma respeitada professora da Universidade da Califórnia, Berkeley, a se tornar o centro de uma controvérsia que mobilizou mais de 370 mil pessoas em uma petição online pedindo o cancelamento de sua palestra? A resposta não está em suas teorias filosóficas sobre gênero e identidade, mas na fabricação deliberada de um espantalho político conhecido como "ideologia de gênero" - uma expressão que não possui fundamentação científica e foi criada especificamente para desqualificar décadas de pesquisa acadêmica séria.


Butler, nascida em 1956, construiu sua carreira como uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo e dos estudos queer. Sua obra seminal, "Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity", publicada em 1990 e traduzida no Brasil como "Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade", revolucionou a compreensão acadêmica sobre gênero, sexualidade e identidade. Com formação sólida em filosofia - obteve seu PhD em Yale em 1984 - Butler desenvolveu conceitos que transformaram não apenas os estudos de gênero, mas influenciaram profundamente campos como a filosofia política, a teoria crítica e os estudos culturais.


O conceito central de seu trabalho é a performatividade de gênero, uma teoria complexa que vai muito além das interpretações simplistas que seus críticos fazem circular. Diferentemente do que alegam os detratores, Butler jamais defendeu que as pessoas podem "escolher" seu gênero livremente ou que as diferenças biológicas entre homens e mulheres não existem. Sua teoria da performatividade propõe que o gênero é um efeito de práticas reiterativas e citacionais, ou seja, é constituído através da repetição constante de atos, gestos e discursos que criam a ilusão de uma identidade de gênero natural e estável.


"A performatividade deve ser compreendida não como um 'ato' singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como uma prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia", explica Butler em seus escritos.

Esta definição esclarece que não se trata de uma escolha consciente ou voluntária, mas de um processo complexo de repetição de normas sociais anteriores que moldam nossa compreensão do que significa ser homem ou mulher.


Linha do tempo da controvérsia sobre "ideologia de gênero" no Brasil (1990-2019)
Linha do tempo da controvérsia sobre "ideologia de gênero" no Brasil (1990-2019)

A filósofa estabelece uma distinção crucial entre performance e performatividade. Enquanto performances pressupõem a existência anterior de um sujeito que atua seu gênero, a noção de performatividade sublinha que não há subjetividade que antecede sua atuação performativa. Como Butler explicita:


"A performatividade de gênero sexual não consiste em eleger de que gênero seremos hoje. Performatividade é reiterar ou repetir as normas mediante as quais nos constituímos".

Esta clarificação é fundamental para compreender por que as acusações de que Butler promove uma ideologia onde "qualquer um pode escolher ser qualquer gênero" são completamente infundadas.


Pessoas segurando cartazes defendendo a inclusão da educação de gênero nas escolas brasileiras durante uma reunião pública
Pessoas segurando cartazes defendendo a inclusão da educação de gênero nas escolas brasileiras durante uma reunião pública 

Outro aspecto frequentemente mal interpretado da teoria butleriana é sua crítica à tradicional distinção entre sexo biológico e gênero cultural. Butler não nega a existência de diferenças biológicas entre corpos, mas questiona como essas diferenças são interpretadas e utilizadas para justificar hierarquias sociais e exclusões. Quando afirma que


"talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula",

Butler não está negando a materialidade dos corpos, mas argumentando que nossa compreensão desses corpos sempre é mediada por interpretações culturais e discursivas.


No entanto, essas nuances filosóficas foram completamente ignoradas pelos criadores da campanha contra a suposta "ideologia de gênero". O termo, que não possui fundamentação científica, constitui-se como uma falácia construída por setores conservadores para desqualificar os estudos de gênero. Sua gênese remonta ao ambiente católico conservador, particularmente aos escritos do argentino Jorge Scala, a partir de 1997. Scala define ideologia como "um corpo fechado de ideias, que parte de um pressuposto básico falso - que por isto deve impor-se evitando toda análise racional". Em sua concepção distorcida, a "ideologia de gênero" teria como "fundamento principal e falso" a ideia de que "o sexo seria o aspecto biológico do ser humano, e o gênero seria a construção social ou cultural do sexo".


Esta definição revela uma compreensão superficial e deturpada dos estudos de gênero, ignorando décadas de produção científica rigorosa desenvolvida por pesquisadores em universidades do mundo inteiro. Como observa um especialista brasileiro, "utilizar o termo 'ideologia de gênero' é um completo equívoco do ponto de vista científico e revela o esforço de grupos em deturpar o conceito de gênero na tentativa de instaurar um pânico social".


A disseminação desta falácia utilizou várias táticas coordenadas: desonestidade intelectual através da formulação de argumentos sem fundamentos científicos replicados em mídias sociais; terrorismo moral com a atribuição do status de demônio às pessoas favoráveis à igualdade de gênero; intimidação profissional através de notificações extrajudiciais contra professores que abordassem temas de gênero; e manipulação emocional usando apelos emotivos sobre "proteção da infância" e "defesa da família". A estratégia foi particularmente eficaz porque articulou as "cruzadas antipedofilia e antigênero", criando um "artefato político e categoria de acusação" que produziu "efeitos decisivos na arena política brasileira contemporânea".


No contexto brasileiro, a reação conservadora aos estudos de gênero ganhou força a partir de 2011, impulsionada por eventos como a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre união homoafetiva e a discussão sobre materiais educativos de combate à homofobia. A primeira menção conjunta de "ideologia" e "gênero" em proposições parlamentares ocorreu em 2012, evoluindo para a primeira referência explícita à "ideologia de gênero" em 2014. O fenômeno articulou "múltiplos atores, em sua maioria conservadores católicos e pentecostais", convergindo em torno de dois temas principais: educação sexual e identidade de gênero.


COMPARAÇÕES ENTRE GÊNERO E 'IDEOLOGIA DE GÊNERO'

Aspecto

Estudos Científicos de Gênero

Narrativa da "Ideologia de Gênero"

Definição de Gênero

Construção social e cultural dos papéis, comportamentos e relações entre sexos

Suposta imposição de que cada pessoa pode escolher livremente seu gênero

Base Científica

Décadas de pesquisa interdisciplinar em sociologia, antropologia, psicologia, filosofia

Rejeitada como ""pseudociência"" ou ""doutrinação marxista""

Relação Sexo/Gênero

Sexo biológico existe, mas papéis de gênero são socialmente construídos

Nega diferenças biológicas entre homens e mulheres

Objetivo dos Estudos

Compreender e reduzir desigualdades, promover equidade e direitos humanos

Supostamente destruir a família tradicional e promover libertinagem

Abordagem Metodológica

Pesquisa empírica, análise crítica, estudos comparativos transculturais

Baseada em panfletos, redes sociais e discursos religiosos/políticos

Perspectiva sobre Identidade

Identidades são complexas, multifacetadas e contextualmente situadas

Identidades são fixas, determinadas biologicamente e imutáveis

Proposta Educacional

Educação para igualdade, combate à discriminação e violência de gênero

Educação como ""sexualização precoce"" e ""doutrinação ideológica""

Visão sobre Família

Reconhece diversidade de arranjos familiares e suas transformações históricas

Defende modelo único de família heterossexual tradicional

Tratamento da Diversidade

Valoriza e protégé a diversidade humana como direito fundamental

Vê diversidade como ameaça à ordem natural e moral

Fundamentação Teórica

Judith Butler, Joan Scott, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, entre outros

Jorge Scala, setores conservadores católicos, fundamentalistas religiosos


Um glossário e uma ilustração de nuvem de palavras destacando diversos conceitos e terminologia de gênero em português, enfatizando a complexidade das discussões de gênero
Um glossário e uma ilustração de nuvem de palavras destacando diversos conceitos e terminologia de gênero em português, enfatizando a complexidade das discussões de gênero 

O episódio mais emblemático dessa mobilização foi precisamente o ataque dirigido contra Judith Butler durante sua visita ao Brasil em novembro de 2017. A filósofa havia sido convidada pelo SESC-SP para participar do seminário "Os Fins da Democracia", focado nos perigos que a democracia enfrenta globalmente. Mesmo antes de sua chegada, Butler foi alvo de uma campanha coordenada que incluiu uma petição online com mais de 370 mil assinaturas pedindo o cancelamento de sua palestra, acusações infundadas de que promovia "corrupção e fragmentação da sociedade", o protesto violento com a queima de efígie representando Butler como bruxa, e a agressão física com trolley metálico no aeroporto.


O protesto revelou a distorção completa das ideias de Butler. Como ela própria observou, os manifestantes "pareciam erroneamente interpretar sua 'teoria performativa de gênero'" como "promovendo a ideia de que alguém pode se tornar qualquer gênero que quiser". Butler esclareceu que sua teoria nunca negou "a existência de limitações" e sempre buscou "criar uma vida mais vivível para todas as pessoas que atravessam o espectro de gênero". A filósofa observou sobre o ataque:


"Não parece haver qualquer evidência de que aqueles que se mobilizaram nesta ocasião tivessem qualquer familiaridade com meu texto 'Problemas de Gênero'".

A estratégia de pânico moral atingiu seu ápice nas eleições presidenciais de 2018, com a reativação do controverso "kit gay". Este material educativo, que nunca foi efetivamente distribuído, foi transformado em símbolo da suposta ameaça da "ideologia de gênero" às crianças. A análise da circulação desses materiais no Twitter revelou como "a disseminação do 'kit gay' como artefato político continua a gerar pânico moral e acusações contra os adversários". Jair Bolsonaro foi repreendido pelo Tribunal Superior Eleitoral por espalhar fake news sobre o conteúdo do material, mas a estratégia foi eficaz eleitoralmente, contribuindo para sua vitória.


Convite para participar de um projeto de pesquisa de estudos feministas com foco em questões de gênero e sexualidade, oferecendo certificados e realizado online 
Convite para participar de um projeto de pesquisa de estudos feministas com foco em questões de gênero e sexualidade, oferecendo certificados e realizado online 

A discussão sobre "ideologia de gênero" deve ser compreendida no contexto mais amplo da "pós-verdade" e da "guerra contra os fatos" através de fake news e teorias conspiratórias. Pesquisadores identificaram que o combate à "ideologia de gênero" encontrou "novos arranjos" considerando "a discussão epistemológica acerca da pós-verdade". A estratégia conservadora passou a valorizar "muito mais a forma dramática e o apelo emocional do que o conteúdo e fontes legítimas". Este fenômeno se caracteriza pela "incessante produção de materiais que valorizam muito mais a forma do que o conteúdo, tal qual como memes, fake news e teorias conspiratórias difundidas nas mídias digitais".


A popularização das mídias sociais a partir de 2010 foi crucial para a disseminação da narrativa antigênero. Os "movimentos de direita conseguem captar de melhor forma esse acontecimento", utilizando plataformas digitais para amplificar suas mensagens. Figuras como "Bernardo Küster, Nando Moura e a grande referência de ambos, Olavo de Carvalho" emergiram como "empreendedores morais" na cruzada contra a suposta "ideologia de gênero". Estes atores utilizaram estratégias de marketing político neoconservador para legitimizar "o combate aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das minorias".


Os efeitos da desinformação foram particularmente devastadores na educação. Levantamento realizado em 2016 mostrou que, dos 22 Planos Estaduais de Educação aprovados, "9 não fazem qualquer referência à palavra 'gênero' e 15 não explicitam o termo 'gênero' nos Princípios ou Diretrizes". Este resultado contraria décadas de construção democrática de políticas educacionais baseadas em documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), e os Princípios de Yogyakarta (2007), que estabeleceram marcos internacionais para a promoção da equidade de gênero na educação.


A comunidade acadêmica brasileira respondeu energicamente às distorções sobre os estudos de gênero. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) publicou o "Manifesto pela Igualdade de Gênero na Educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras", assinado por 113 pesquisadores e grupos de estudos. O Conselho Nacional de Educação também se manifestou, afirmando que "a ausência ou insuficiência de tratamento das referidas singularidades fazem com que os planos de educação que assim as trataram sejam tidos como incompletos". Diversas universidades e associações científicas emitiram declarações em defesa dos estudos de gênero.


Judith Butler falando em um painel de conferência acadêmica com microfone e placa de identificação
Judith Butler falando em um painel de conferência acadêmica com microfone e placa de identificação 

Contrariando as narrativas conservadoras, os estudos de gênero no Brasil consolidaram-se como campo científico respeitável e produtivo. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) emerge como protagonista nacional, estando "entre as 10 instituições, dentre 236, com maior número de grupos e linhas de pesquisa formais sobre estudos de gênero no Brasil". Pesquisas cientométricas mostram que a UFRGS também está "entre as três universidades nacionais com o maior número de artigos na área publicados até 2019". A Universidade Federal da Bahia (UFBA) criou pioneiramente o Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, formando "profissionais aptas(os) a formular, analisar e gerir políticas públicas com perspectiva de gênero e diversidade".


Especialistas brasileiros enfatizam consistentemente a legitimidade científica dos estudos de gênero em contraposição à falácia da "ideologia de gênero". O antropólogo Bernardo Fonseca Machado observa que "essa expressão desqualifica gênero como um conceito e desconsidera seu caráter analítico e científico". Pesquisadores destacam que os estudos de gênero "fazem parte de uma área inter e transdisciplinar que visa refletir a respeito de marcadores de subjetividade, identidade e marcadores sociais" e estão presentes em "21 das 29 Unidades Regionais e Acadêmicas da UFRGS", demonstrando sua transversalidade disciplinar.


O pânico moral criado em torno da "ideologia de gênero" teve consequências concretas e devastadoras. O Brasil mantém estatísticas alarmantes de violência de gênero: entre 1980 e 2013, foram assassinadas 106.093 mulheres no país. Desde 2008, mais de 4 mil mulheres são assassinadas anualmente, com tendência crescente. Relativamente à população LGBTQ+, o Relatório sobre Violência Homofóbica de 2012 registrou 9.982 denúncias de violações dos direitos humanos e pelo menos 310 homicídios de pessoas LGBT. A organização Transgender Europe documentou que, entre 2008 e 2014, o Brasil liderou o ranking mundial de assassinatos de travestis e transexuais, com mais de 600 mortes.


Pessoas segurando cartazes em um protesto público contra a ideologia de gênero, defendendo valores familiares tradicionais e se opondo à ideologia de gênero na educação
Pessoas segurando cartazes em um protesto público contra a ideologia de gênero, defendendo valores familiares tradicionais e se opondo à ideologia de gênero na educação

A mobilização conservadora provocou retrocessos significativos nas políticas públicas. Em setembro de 2015, o Ministério da Educação instituiu o Comitê de Gênero, mas "mediante pressão da Câmara dos Deputados", em apenas 12 dias o comitê foi extinto e substituído por um "Comitê de Combate à Discriminação", eliminando a palavra gênero. Este episódio exemplifica como "as pressões políticas por parte dos grupos de parlamentares fundamentalistas" fizeram com que "o governo federal apenas recue". A estratégia de intimidação chegou ao ponto de circular "modelo de notificação extrajudicial" para professores se absterem de abordar temas de gênero.


A atmosfera de intimidação afetou profundamente a formação e atuação docente. Pesquisas nacionais revelaram que "o nível de atitudes preconceituosas foi de 93,5% em relação a gênero e 87,3% em relação à orientação sexual" nos estabelecimentos educacionais. O "grau de conhecimento de práticas discriminatórias sofridas por estudantes foi de 10,9% por ser mulher e 17,4% por ser homossexual". Estes dados demonstram a urgência de políticas educacionais que promovam a equidade de gênero, contrariando a narrativa conservadora que vê tais iniciativas como ameaça.


A reação conservadora aos estudos de gênero não se limitou ao Brasil, constituindo-se como fenômeno global. Pesquisadores identificam que "as ofensivas antigênero se assentaram, basicamente, sobre redes mais antigas, sobretudo católicas, de oposição ao direito ao aborto". Estas formações são descritas como "muito heterogêneas, como hidras de muitas cabeças que se alimentam de fontes ideológicas heteróclitas ou mesmo contraditórias". O Brasil tornou-se "um dos poucos países do mundo onde a ideologia antigênero está decididamente enraizada no aparelho estatal", junto com Hungria e Polônia.


O governo brasileiro estabeleceu "sólidas parcerias" com outros países conservadores em "várias iniciativas intergovernamentais", incluindo a "Declaração do (chamado) 'Consenso de Genebra sobre Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família'". Estas alianças demonstram a coordenação internacional das ofensivas antigênero. A participação brasileira em "seminários voltados para o debate de 'políticas familiares' e o enfrentamento à 'ideologia de gênero'" revela como a narrativa conservadora se articulou globalmente, utilizando estratégias similares de desinformação e mobilização em diferentes contextos nacionais.


Contrariamente às caricaturas conservadoras, o pensamento de Butler evoluiu significativamente desde "Gender Trouble". Suas reflexões expandiram-se para campos como teoria política, ética da não-violência, e estudos sobre precariedade. Em obras posteriores como "Bodies That Matter" (1993) e trabalhos recentes, Butler aprofundou suas reflexões sobre materialidade corporal e vulnerabilidade. A filósofa desenvolve hoje o conceito de precariedade, propondo "uma crítica da dependência não reconhecida como ponto de partida para uma nova política do corpo". Esta expansão teórica demonstra a contínua relevância e sofisticação de seu pensamento, contrastando com as simplificações conservadoras.


Butler permanece como uma das intelectuais mais citadas mundialmente. Recebeu o prestigioso Prêmio Theodor W. Adorno em 2012 por suas contribuições filosóficas, apesar das controvérsias políticas. Suas palestras acadêmicas são "standing room only", evidenciando o reconhecimento científico de seu trabalho. A influência de Butler transcende a academia, "influindo profundamente em movimentos sociais, políticas de identidade e debates culturais em todo o mundo". Sua obra "não solo ha replanteado el género como una construcción social performativa, sino que también ha cuestionado las categorías binarias y la norma heterosexual".


Apesar do reconhecimento acadêmico, Butler continua enfrentando distorções de suas ideias. Como ela observou sobre o ataque no Brasil: "Não parece haver nenhuma evidência de que aqueles que se mobilizaram nesta ocasião tivessem alguma familiaridade com meu texto Problemas de Gênero". A filósofa reconhece que:


"como opositores da teoria crítica de gênero e raça, esses grupos também se opõem às universidades não pelo dogma ostensivo que ensinam, mas pela mente aberta que correm o risco de produzir".

Butler mantém uma postura reflexiva sobre essas controvérsias, observando que:


"quando fui queimado em efígie no Brasil em 2017, pude ver pessoas gritando sobre gênero, e elas entenderam 'gênero' como 'pedofilia'".

Esta distorção exemplifica como suas teorias são sistematicamente mal representadas para fins políticos.


O caso Butler/ideologia de gênero oferece lições cruciais sobre a importância da educação científica e do letramento crítico. Como observa um especialista, "é importante ter essa discussão dentro e fora da academia e trazê-la para os projetos de pesquisa, extensão e divulgação científica". A resistência acadêmica brasileira demonstrou a vitalidade dos estudos de gênero. Iniciativas como a campanha "Fato Certo Não Tem Erro" foram desenvolvidas com o objetivo de "conscientizar famílias, profissionais da educação e a sociedade em geral e dar subsídios teóricos e jurídicos para o debate sobre as identidades de gênero".


A controvérsia revela desafios mais amplos para a democracia brasileira. Como observa um pesquisador, o fenômeno "desafia os direitos das mulheres e da população LGBTQ+, a laicidade do Estado e a própria democracia". A articulação entre fundamentalismo religioso e extremismo político representa uma ameaça às instituições democráticas. A experiência brasileira tornou-se caso de estudo internacional sobre como movimentos antigênero podem capturar aparelhos estatais. A necessidade de "desenvolver a capacidade de dialogar de forma civilizada com quem pensa diferente" permanece urgente para a "superação das diferenças".


Apesar dos retrocessos, a resistência acadêmica e social mantém viva a esperança de reversão deste quadro. O crescimento dos estudos de gênero nas universidades brasileiras, a produção científica robusta na área, e a mobilização de organizações da sociedade civil demonstram a resiliência do conhecimento científico. Como Butler afirma, sua teoria sempre buscou:


"oferecer mais linguagem e reconhecimento àqueles que se viram condenados ao ostracismo por não confirmarem as ideias restritivas do que significa ser homem ou mulher".

Este objetivo humanitário e científico permanece relevante diante dos desafios contemporâneos.


A história de Judith Butler e da fabricação da "ideologia de gênero" no Brasil constitui um episódio exemplar de como teorias acadêmicas sofisticadas podem ser distorcidas para fins políticos, gerando pânico moral e retrocessos nas políticas públicas. Também demonstra, no entanto, a capacidade de resistência da comunidade científica e a importância de defender o conhecimento rigoroso contra a desinformação organizada. O legado de Butler permanece como contribuição fundamental para a compreensão da complexidade humana e para a construção de sociedades mais justas e inclusivas, independentemente das tempestades políticas que possam se formar ao seu redor.

 
 
 

Atualizado: há 7 dias

Uma análise crítica das "Reformas Educacionais" no Brasil


O Brasil testemunha uma transformação significativa em suas políticas educacionais, marcada pela implementação de mecanismos neoliberais que priorizam a lógica de mercado em detrimento da educação como direito social.


O Programa de Reconhecimento da Educação Gaúcha, anunciado pelo governador Eduardo Leite em agosto de 2025, representa um exemplo paradigmático desta tendência, reproduzindo modelos de estímulos pedagógicos baseados em metas quantitativas e premiações individuais que, segundo críticos, configuram uma "política do pior". O problema é que esse tipo de política educacional vêm se espalhando como um vírus no país inteiro e os impactos nacionais destas políticas já podem ser sentidos nas salas de aula.


Capa de livro ilustrando o impacto do neoliberalismo na crise educacional e nas ocupações de escolas no Brasil
Capa de livro ilustrando o impacto do neoliberalismo na crise educacional e nas ocupações de escolas no Brasil

A arquitetura do estímulo pedagógico Neoliberal

Fundamentos conceituais e implementação prática


O estímulo pedagógico neoliberal fundamenta-se na aplicação da psicologia comportamental transportada para o espaço escolar, funcionando como "máquina de aniquilar cidadania e de ampliar a acumulação de capital". O programa gaúcho exemplifica esta lógica ao estabelecer um sistema de premiações que reproduz "a lógica dos programas televisivos de domingo que, no afã de aumentar a audiência, espetacularizam a desgraça dos pobres com a competição de todos contra todos".


A estrutura do programa prevê o 14º salário completo como prêmio máximo aos docentes e funcionários que alcançarem 100% das metas estabelecidas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), além de premiação aos três alunos de melhor rendimento por sala de aula. Esta configuração transforma as escolas em espaços de "desempenho e gamificação", adotando uma "pedagogia da resiliência" onde os mais aptos são premiados individualmente enquanto o restante é contemplado apenas com "a liberação de dopamina do jogo".


O Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS) manifestou forte oposição ao programa, classificando-o como lógica meritocrática discriminatória e excludente. A entidade argumenta que "não é admissível remuneração diferenciada, como se sucesso ou insucesso fossem resultado apenas de qualidades e ações individuais", denunciando que esta política "não apenas ignora as condições reais de trabalho, como também tenta dividir a categoria".


A resistência sindical evidencia-se na crítica de que o programa desconsidera a realidade das escolas e impõe "uma pressão desmedida" sobre professores e funcionários, ignorando que "a melhoria da educação exige investimentos estruturais, condições dignas de trabalho, redução da sobrecarga e apoio efetivo no ensino-aprendizagem".


Desenho animado ilustrando a abordagem mecanizada e meritocrática da educação moderna, criticando as políticas neoliberais que tratam os alunos como produtos
Desenho animado ilustrando a abordagem mecanizada e meritocrática da educação moderna, criticando as políticas neoliberais que tratam os alunos como produtos 

Expansão nacional das Políticas Neoliberais na Educação

Mapeamento das iniciativas por Estado


A análise das políticas implementadas em diferentes estados brasileiros revela um padrão sistemático de neoliberalização da educação pública. São Paulo, sob o governo de Tarcísio de Freitas, implementou o "Programa Novas Escolas", uma parceria público-privada que transfere a gestão de 33 unidades educacionais para empresas privadas por 25 anos. Embora o Tribunal de Justiça tenha suspenso parcialmente o projeto em março de 2025, a iniciativa demonstra a persistência governamental em aplicar modelos de terceirização.


O Paraná, governado por Ratinho Jr., sancionou em junho de 2024 o programa "Parceiro da Escola", prevendo a terceirização da gestão administrativa de 204 escolas estaduais. O projeto enfrentou forte oposição sindical, mas foi aprovado após tramitação em regime de urgência, demonstrando a priorização política destas reformas.


Mapa das políticas neoliberais na educação por estado brasileiro (2024-2025)
Mapa das políticas neoliberais na educação por estado brasileiro (2024-2025)

A implementação destas políticas tem gerado significativa resistência social, manifestando-se em protestos, ocupações de escolas e mobilizações sindicais. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) aprovou moção em sua 77ª Reunião Anual, realizada em Pernambuco, repudiando "as iniciativas em curso no Estado do Paraná que visam à privatização da gestão das escolas públicas".


A moção da SBPC destaca que "privatizar escolas significa transformar um direito social em mercadoria, submetendo o acesso à educação à lógica do lucro", alertando que isto "inevitavelmente aprofundará desigualdades, excluindo os mais vulneráveis". A entidade também critica a "imposição de plataformas digitais privadas" que "desumaniza a educação substituindo o vínculo pedagógico entre professor e aluno por algoritmos".


Manifestantes dentro de um prédio do governo exibem faixas contra a privatização e venda de escolas públicas no Brasil
Manifestantes dentro de um prédio do governo exibem faixas contra a privatização e venda de escolas públicas no Brasil

O caso paradigmático de Pernambuco

Contexto político e antecedentes na Saúde


O estado de Pernambuco apresenta um caso particularmente relevante para compreender a lógica da terceirização de serviços públicos. Durante o governo de Paulo Câmara (PSB, 2015-2022), o estado implementou extensivamente a terceirização na área da saúde, estabelecendo contratos com organizações sociais para gestão de hospitais e UPAs. Esta experiência criou precedentes e know-how administrativo que podem ser replicados na educação.


A transição para o governo de Raquel Lyra (PSD, 2023-atual) trouxe continuidade na abordagem neoliberal, com sinais claros de intenção de terceirizar a educação. Documentos da Secretaria de Educação já incluem conteúdos curriculares sobre "Privatização, Concessão e Parcerias Público-Privadas" para estudantes do 3º ano do Ensino Médio, sugerindo uma preparação conceitual para futuras implementações.


A experiência pernambucana com terceirização revela os problemas estruturais deste modelo. Já no início do governo Raquel Lyra, cerca de 20 mil trabalhadores terceirizados da educação ficaram sem receber salários por dois meses, incluindo merendeiras, porteiros, vigilantes e auxiliares de serviços gerais. Esta situação forçou os trabalhadores "à situação de penúria", demonstrando como a terceirização precariza as condições laborais.


O Sindicato dos Terceirizados chegou a pedir reunião com a governadora devido aos atrasos salariais sistemáticos, evidenciando que o modelo de terceirização, longe de trazer eficiência, gera instabilidade e vulnerabilidade para os trabalhadores. A situação é agravada pelo fato de que:


"os valores pagos com essas terceirizadas são uma máfia porque os donos dessas empresas recebem do governo duas ou três vezes mais pelo custo da mão de obra e pagam salários muito menores às terceirizadas".

Investigações e corrupção no Modelo Terceirizado


A Polícia Federal deflagrou em 2024 a Operação Clã, investigando desvios de recursos públicos e irregularidades nos contratos entre a Secretaria Estadual de Saúde e organizações sociais durante o governo Paulo Câmara. Os crimes investigados incluem "superfaturamento, ocultação de valores, execução fictícia de serviços e contratação direcionada de prestadores de serviços", com contratos superiores a R$ 89 milhões.


Estas investigações revelam que o modelo de terceirização, apresentado como mais eficiente e transparente, na prática pode facilitar esquemas de corrupção e má gestão de recursos públicos. A opacidade dos contratos e a complexidade das relações entre entes públicos e privados criam condições propícias para irregularidades.


Raquel Lyra, governadora de Pernambuco, durante evento de oratória relacionado a políticas educacionais
Raquel Lyra, governadora de Pernambuco, durante evento de oratória relacionado a políticas educacionais 

Impactos nacionais e tendências de expansão

Fragmentação do Sistema Educacional


A implementação de políticas neoliberais na educação tem gerado uma crescente fragmentação do sistema educacional brasileiro. Estados como Goiás, embora tenham descartado oficialmente a terceirização de escolas, já implementaram organizações sociais na saúde, criando precedentes institucionais que podem ser expandidos. O Ceará, sob governo petista, também desenvolve "regime de colaboração" com elementos de incentivos por reultados.


Esta fragmentação manifesta-se na diversidade de modelos aplicados simultaneamente: enquanto o Rio Grande do Sul foca em estímulos monetários individuais, São Paulo e Paraná privilegiam a terceirização da gestão, e outros estados experimentam parcerias público-privadas em setores correlatos. Esta variedade dificulta a construção de resistências nacionais coordenadas e permite que experiências "bem-sucedidas" sejam replicadas em outros contextos.


O impacto nacional mais significativo reside na sistemática precarização do trabalho docente. As políticas de meritocracia criam divisões internas nas categorias profissionais, estabelecendo remunerações diferenciadas que fragmentam a solidariedade coletiva. Professores são submetidos a pressões por resultados quantitativos que desconsideram as condições materiais e sociais de trabalho.


A terceirização amplia esta precarização ao transferir a gestão de recursos humanos para empresas privadas que, motivadas pelo lucro, tendem a reduzir custos trabalhistas. A experiência pernambucana demonstra como este modelo gera atrasos salariais, redução de benefícios e instabilidade contratual.


Manifestantes no Brasil marcham com uma faixa exigindo o fim da injustiça contra professores convocados e defendendo a igualdade salarial
Manifestantes no Brasil marcham com uma faixa exigindo o fim da injustiça contra professores convocados e defendendo a igualdade salarial 

As reformas neoliberais transformam gradualmente a educação de direito social em mercadoria. O estímulo pedagógico baseado em premiações individuais reproduz lógicas empresariais de produtividade que são inadequadas ao processo educativo. Esta mercantilização manifesta-se na imposição de metas padronizadas que desconsideram diversidades regionais, culturais e socioeconômicas.


A transferência de recursos públicos para o setor privado através de contratos de terceirização e parcerias público-privadas representa uma forma indireta de privatização que mantém o discurso de educação pública enquanto direciona fundos para a acumulação privada de capital. Esta dinâmica é particularmente problemática em um país com enormes desigualdades educacionais que demandam investimento público massivo e direcionado.


A lógica da Política do Pior

Contradições Sistêmicas


A análise crítica revela que as políticas neoliberais na educação operam segundo uma lógica paradoxal onde:


"o que envenena correntemente a sociedade gaúcha se compõe, de igual modo, como o remédio para a cura das feridas abertas por sua própria ação nefasta".

Esta dinâmica corresponde ao que Nancy Fraser denomina "capitalismo canibal", um sistema que:


"devora a sociedade civil como uma cobra comendo o próprio rabo".

O estímulo pedagógico neoliberal configura-se como política de gerenciamento do caos resultante de décadas de desinvestimento na educação pública. Em vez de atacar as causas estruturais dos problemas educacionais - subfinanciamento, infraestrutura precária, desvalorização profissional -, estas políticas oferecem soluções cosméticas que individualizam responsabilidades e naturalizam desigualdades.


A implementação de lógicas empresariais no espaço escolar tem consequências profundas na formação cidadã dos estudantes. A gamificação e as premiações seletivas reproduzem desde a infância a naturalização da competição e da desigualdade como elementos normais da vida social. Este processo contraria os objetivos constitucionais da educação de formar cidadãos críticos e participativos.


A "pedagogia da resiliência" promovida por estas políticas responsabiliza individualmente estudantes e professores por resultados que dependem de fatores estruturais amplos. Esta abordagem obscurece as determinações sociais do processo educativo e promove conformidade com condições precárias apresentadas como desafios a serem superados através de esforço individual.


Um grande protesto no Brasil contra as políticas neoliberais de educação e terceirização, com manifestantes sob um balão dizendo "Eu tô na luta!"
Um grande protesto no Brasil contra as políticas neoliberais de educação e terceirização, com manifestantes sob um balão dizendo "Eu tô na luta!"

Perspectivas e Resistências

Alternativas Democráticas


A construção de alternativas democráticas às políticas neoliberais demanda investimento estrutural massivo na educação pública. Isto inclui valorização salarial integral dos profissionais, melhoria da infraestrutura escolar, redução do número de alunos por turma e criação de condições adequadas de trabalho pedagógico.


A resistência organizada pelos sindicatos docentes, movimentos sociais e entidades científicas como a SBPC demonstra que existem forças sociais mobilizadas contra estas reformas. A efetividade desta resistência depende da capacidade de articulação nacional e da construção de propostas alternativas que reconectem a educação com seu papel transformador.


O enfrentamento das políticas neoliberais na educação requer mobilização social que transcenda os limites corporativos e conecte a luta educacional com outras lutas sociais. A experiência de ocupações de escolas, protestos de rua e campanhas de conscientização pública demonstra potencial de resistência que precisa ser ampliado e sistematizado.


A articulação entre diferentes estados que enfrentam processos similares pode criar massa crítica suficiente para reverter estas tendências. O intercâmbio de experiências de resistência e a construção de estratégias comuns fortalecem as possibilidades de sucesso na defesa da educação pública, gratuita e de qualidade.


IMPACTOS DO NEOLIBERALISMO NA EDUCAÇÃO

Aspecto

Impacto Neoliberal

Consequências

Estados Afetados

Professores

Pressão por metas individuais, competição

Adoecimento, divisão da categoria

RS, PR, SP principalmente

Estudantes

Gamificação, premiações seletivas

Desigualdade, exclusão dos ""não premiados""

Todos com sistema de metas

Infraestrutura

Responsabilidade transferida ao privado

Redução investimento público direto

SP, PR, PE (planejado)

Gestão Pedagógica

Autonomia reduzida, padronização

Perda de diversidade curricular

RS, SP, PR

Financiamento

Recursos públicos para lucro privado

Menor transparência, superfaturamento

VAI, PE, RS, SP, PR

Sindicalização

Fragmentação, enfraquecimento coletivo

Redução poder de negociação

Todos os estados citados


Neoliberalismo: Uma ameaça ao ensino público no Brasil


O estímulo pedagógico neoliberal representa uma ameaça sistêmica à educação pública brasileira, promovendo a mercantilização de um direito fundamental e a precarização das condições de trabalho e aprendizagem. A experiência de estados como Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná e as tendências observadas em Pernambuco demonstram que estas políticas não são episódios isolados, mas parte de um projeto nacional de reestruturação do Estado segundo princípios neoliberais.


A "política do pior" manifesta-se na responsabilização individual por problemas estruturais, na fragmentação das categorias profissionais através da meritocracia e na transferência de recursos públicos para o setor privado sob o discurso da eficiência. Esta lógica contraria fundamentalmente os princípios constitucionais da educação como direito social e instrumento de transformação social.


A resistência organizada por sindicatos, movimentos sociais e entidades científicas demonstra que alternativas democráticas são possíveis e necessárias. O fortalecimento da educação pública demanda investimento estrutural, valorização profissional e reconhecimento da educação como bem comum indispensável para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. O futuro da educação brasileira depende da capacidade social de resistir a estas reformas e construir alternativas que priorizem o direito à educação sobre os interesses do mercado.

 
 
 

O mais recente embate entre o governo Raquel Lyra (PSD) e o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) revela não apenas uma tentativa sistemática de burlar determinações judiciais, mas expõe um modus operandi governamental que coloca em xeque a transparência e a legalidade na gestão da educação pernambucana. A análise técnica do processo TCE-PE nº 24101002-0 é demolidora: a Secretaria de Educação e Esportes (SEE/PE) descumpriu deliberadamente as determinações dos Acórdãos nº 1514/2024 e nº 1605/2024, numa clara demonstração de desrespeito às instituições de controle.


Gilson Monteiro Filho é o terceiro secretário de Educação de Pernambuco na gestão de Raquel Lyra - Filipe Jordão/SEE
Gilson Monteiro Filho é o terceiro secretário de Educação de Pernambuco na gestão de Raquel Lyra - Filipe Jordão/SEE

O Plano de Ação que virou farsa: 4.951 professores reféns da má-fé governamental


A primeira grande mentira desmascarada pelo TCE-PE diz respeito ao cumprimento do plano de ação para nomeação de professores aprovados em concurso público. Enquanto a SEE/PE se comprometeu solenemente a nomear 4.951 professores aprovados até novembro de 2024, a realidade brutal é que 73 nomeações simplesmente não foram realizadas, além da Secretaria não ter respeitado os prazos estabelecidos.


A defesa apresentada pela SEE/PE alegou que o número não foi atingido por causa do "esgotamento do cadastro de reserva" em algumas disciplinas e por supostas inconsistências no levantamento do próprio TCE. O Tribunal foi categórico na refutação: afirmou que o plano de ação foi elaborado pela própria SEE/PE e que a Secretaria não comunicou, em tempo hábil, o suposto esgotamento do cadastro. Mais grave ainda, os auditores concluíram que os motivos apresentados não justificavam o descumprimento sistemático das determinações.


O cronograma do descaso


O cronograma original previa um escalonamento gradual das nomeações: 100 em julho, 250 em agosto, 350 em setembro, 1.300 em outubro, 1.500 em novembro e 1.451 em dezembro de 2024. Este não era um calendário sugestivo, mas uma obrigação legal estabelecida por decisão judicial.


Contratos Temporários: A renovação proibida que continuou acontecendo


O segundo pilar da estratégia de resistência do governo Raquel Lyra foi tentar renovar contratos temporários mesmo com a expressa proibição do TCE-PE. A Secretaria solicitou e teve autorização para renovar contratos temporários, mas sob uma condição cristalina: a conclusão de todas as nomeações previstas no plano de ação até 30 de novembro de 2024.


A justificativa governamental beirou o absurdo: alegou que a renovação foi necessária pela "falta de profissionais efetivos" e que o descumprimento do plano se deu por "fatores alheios" ao controle da Secretaria. O TCE foi implacável na resposta: reforçou que a condição para renovação não foi cumprida e que os argumentos da SEE/PE não afastam a responsabilidade da gestão, que deveria ter se planejado adequadamente para essas situações.


O histórico de temporários: Um problema estrutural


Os dados revelam a dimensão do problema: Pernambuco possui apenas 36,35% de professores efetivos em sua rede estadual, ocupando a 8ª posição nacional entre os estados com maior porcentagem de contratos temporários. Mesmo com as nomeações realizadas pela gestão Raquel Lyra, que reduziu o número de temporários de 19.000 para 15.000, o estado continua funcionando com base em contratos precários.


Desvio de Função: A prova trrefutável da Má Gestão


O terceiro e talvez mais escandaloso aspecto identificado pelo TCE-PE foi o desvio de função generalizado. O Tribunal determinou que a SEE/PE fizesse um levantamento e readequação do quadro de professores para corrigir possíveis desvios de função, onde professores de uma disciplina atuam em outra.


A Secretaria, no entanto, não apresentou qualquer documentação que comprovasse o cumprimento da determinação. Mais grave: a equipe de auditoria realizou visitas in loco a escolas e constatou que, de uma amostra de 122 professores, 59 lecionavam pelo menos uma disciplina diferente daquela para a qual foram nomeados ou contratados.


O caos na formação específica


O problema é ainda mais grave nas áreas de Ciências Humanas. Dados revelam que 95% dos professores de Sociologia e Filosofia estão fora de suas áreas de formação, assim como 97% dos professores de Artes. "Tem professor de Filosofia lecionando História", revelou o conselheiro relator Ranilson Ramos, sendo aplaudido ao informar sobre as determinações relacionadas aos desvios de função.


A tentativa de "ENGANAR": Estratégia política ou incompetência administrativa?


O comportamento do governo Raquel Lyra diante das determinações do TCE-PE revela um padrão preocupante de resistência institucional e desrespeito ao controle externo. Não se trata apenas de dificuldades operacionais ou limitações orçamentárias, mas de uma estratégia deliberada de postergar e protelar o cumprimento de obrigações legais claras.


O Modus Operandi do descumprimento


  1. Criação de planos de ação irrealistas: A SEE/PE elaborou cronogramas que não tinha condições ou intenção real de cumprir;

  2. Apresentação de justificativas inconsistentes: Alegou "fatores alheios" e "esgotamento de cadastro" sem documentar adequadamente essas situações;

  3. Resistência às auditorias: Não forneceu documentação comprobatória e tentou questionar os métodos de verificação do próprio TCE;

  4. Estratégia de renovação irregular: Tentou manter contratos temporários mesmo com concursados disponíveis.


As consequências da má gestão: Quem paga a conta?


Os professores aprovados: Vítimas do sistema


Mais de 7.200 professores aprovados em concurso público permanecem no cadastro de reserva, aguardando uma nomeação que deveria ser automática. Estes profissionais, que se prepararam, estudaram e foram aprovados em processo seletivo legítimo, são as principais vítimas de um sistema que privilegia a precariedade em detrimento da meritocracia.


Os alunos da Rede Estadual: Educação comprometida


Com 59 professores em desvio de função apenas na amostra verificada pelo TCE-PE, quantos milhares de estudantes estão recebendo aulas de profissionais sem formação específica? No Enem do ano passado, 50% da prova de Ciências Humanas foi baseada em conhecimentos de Sociologia. Como podem os estudantes pernambucanos competir em igualdade de condições se não têm professores especializados?


O Erário Público: Custos da precarização


A manutenção de 15.000 contratos temporários representa não apenas um custo financeiro significativo, mas também uma sangria de recursos que poderiam ser direcionados para melhorias estruturais na educação. Contratos temporários são, por natureza, mais caros e menos eficientes que vínculos efetivos.


Representação conceitual de irregularidades administrativas na gestão pública
Representação conceitual de irregularidades administrativas na gestão pública

TCE-PE: A resposta institucional necessária


A atuação do TCE-PE, sob a relatoria do conselheiro Ranilson Ramos, representa um marco na defesa da legalidade e do interesse público. A análise técnica que refutou ponto por ponto os argumentos da defesa da SEE/PE demonstra que as instituições de controle estão funcionando, mesmo diante de governos que insistem em desrespeitá-las.


As determinações Claras e Objetivas


O Tribunal foi preciso em suas determinações:

  1. Cumprimento imediato das nomeações pendentes;

  2. Suspensão de renovações de contratos temporários;

  3. Levantamento e correção dos desvios de função;

  4. Readequação do quadro de professores em 45 dias.


A estratégia de comunicação: Entre a propaganda e a realidade


Enquanto o governo Raquel Lyra divulga números inflados sobre nomeações realizadas - alegando ter nomeado mais de 11.000 profissionais desde 2023 - a realidade técnica apurada pelo TCE-PE mostra descumprimento sistemático de obrigações específicas. É a velha tática de misturar dados gerais com obrigações pontuais para confundir a opinião pública.


Paradoxalmente, mesmo com as determinações judiciais pendentes, o governo autorizou em julho de 2025 a contratação de mais 1.027 professores temporários, numa clara demonstração de que a estratégia é manter a precarização em detrimento do concurso público.


O preço da Resistência Institucional


O caso do processo TCE-PE nº 24101002-0 não é apenas mais um embate técnico entre órgãos públicos. É um retrato fiel de como funciona uma gestão que coloca interesses políticos acima da legalidade, da eficiência e do interesse público. O governo Raquel Lyra não apenas tentou "passar a perna" no TCE-PE, mas foi desmascarado em cada uma de suas tentativas.


A falta de comprovação, os resultados das visitas in loco e os argumentos inconsistentes reforçam que as determinações do Tribunal não foram cumpridas, como concludente afirmou a análise técnica. Esta não é uma questão de interpretação jurídica, mas de fatos objetivos que demonstram o desrespeito sistemático às instituições de controle.


O que está em jogo é muito mais do que a nomeação de professores ou a regularização de contratos. Está em questão o respeito à legalidade, à meritocracia e à qualidade da educação pública pernambucana. O TCE-PE cumpriu seu papel. Agora, cabe à sociedade cobrar que o governo Raquel Lyra faça o mesmo.


A tentativa de passar a perna fracassou. A conta está na mesa. É hora de pagar.

 
 
 
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