- Raul Silva
- 25 de ago.
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Na manhã de 25 de agosto de 2025, o Exército de Israel atingiu o Complexo Médico Nasser, em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza, em dois ataques sucessivos que deixaram pelo menos 20 mortos, entre eles cinco jornalistas que cobriam a primeira explosão. Imagens e relatos confirmam o padrão conhecido como double tap: o segundo disparo veio minutos depois, quando equipes médicas, resgatistas e repórteres já estavam no local. Em um dos andares do hospital, uma transmissão ao vivo foi interrompida no ato. Esta não foi “uma tragédia sem autor”: foi uma ação militar previsível, repetida e documentada — e, por isso mesmo, exigindo responsabilização no mais alto nível de comando político.
O Nasser não é um alvo qualquer. Desde meses anteriores, organismos internacionais alertavam que o sistema de saúde de Gaza colapsou; o Nasser era o principal hospital de referência restante no enclave e, no sul, era descrito por veículos internacionais como o último efetivamente em operação — o que agrava o caráter de devastação humanitária do ataque. Mesmo antes do bombardeio, a OMS vinha advertindo que Nasser e Al-Amal corriam risco de se tornarem inoperantes, enquanto não havia hospitais funcionais no norte, e a OCHA registrava que apenas uma fração das estruturas de saúde trabalhava de forma parcial. O local era, portanto, um dos derradeiros fios de atendimento a feridos e doentes.
Quem morreu tem nome — e profissão. Entre as vítimas, estavam Hussam al-Masri (contratado da Reuters), Mohammed Salama (Al Jazeera), Mariam Abu Dagga (freelancer que colaborava com AP), Moaz Abu Taha (freelancer) e Ahmed Abu Aziz (freelancer). Outro fotógrafo da Reuters, Hatem Khaled, ficou ferido. A lista não é uma abstração estatística; é a crônica de uma imprensa palestina que vem sendo dizimada no exercício do ofício. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) confirmou as mortes e voltou a apontar a necessidade de responsabilização internacional.

A resposta oficial de Benjamin Netanyahu — “lamentamos profundamente” um “incidente trágico” — não muda a substância dos fatos, tampouco o padrão. O governo anunciou uma investigação, e o Exército repetiu o mantra de que “não tem jornalistas como alvo”. A fórmula é conhecida: um ciclo de bombardeio, lamento, inquérito interno e impunidade. Diante de um hospital alvo de duas pancadas em sequência, com jornalistas e socorristas deliberadamente expostos na escadaria e nos corredores, a tese do “mishap” perde aderência à realidade e fere a inteligência de qualquer observador honesto.
Não se trata de um episódio isolado, mas de uma política de guerra que transformou Gaza no lugar mais letal do mundo para a imprensa. Desde outubro de 2023, pelo menos 190–200 profissionais de mídia foram mortos na região do conflito, uma marca sem precedentes desde que o CPJ iniciou sua série histórica em 1992. A RSF, por sua vez, já apresentou ao Tribunal Penal Internacional (TPI) quatro queixas por crimes de guerra contra jornalistas, pedindo inclusive a participação das vítimas palestinas como parte interessada nos processos. Não é possível falar em “colaterais” quando o acervo probatório público desenha um padrão.
Há, ainda, a dimensão jurídica que o próprio Netanyahu não pode contornar. Em 21 de novembro de 2024, a Câmara de Pré-Julgamento do TPI expediu mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel por crimes de guerra e contra a humanidade na Palestina — um passo que não equivale a condenação, mas que reconhece gravidade e plausibilidade suficientes para processá-lo. O mandado reforça o óbvio: decisões que produzem destruição sistemática de civis e de infraestrutura indispensável — como hospitais — têm cadeia de comando e têm autor político.

No campo humanitário, a cronologia é implacável. A OMS já havia informado, em maio e junho, que o Nasser, o Al-Amal e o Al-Aqsa viviam à beira do colapso e que o Hospital Europeu de Gaza estava fora de serviço desde um ataque de maio, interrompendo tratamentos de câncer e cardiologia indisponíveis em qualquer outro ponto do enclave. Bombardear um complexo hospitalar nessas condições não apenas maximiza o número de mortos imediatos; também destrói a capacidade de salvar os sobreviventes. É a técnica da asfixia: mata-se no impacto e, depois, na ausência de atendimento.
No plano do direito internacional, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) já indicou medidas cautelares para que Israel previna atos enquadráveis na Convenção do Genocídio e combata a incitação ao genocídio — reconhecimento de risco plausível, que exige contenção imediata e efetiva. O ataque a um hospital que ainda funcionava, com um segundo disparo que atinge os que socorrem, converge com a literatura de crimes de guerra e com elementos de uma política estatal de destruição de um povo como povo. A palavra “genocídio” não é um slogan; é o nome jurídico do risco que a CIJ já viu — e que atos como o do Nasser tornam cada vez menos “plausível” e cada vez mais “patente”.
Há também a guerra contra a própria possibilidade de testemunho. Israel restringe fortemente o acesso de jornalistas estrangeiros a Gaza, o que, somado ao assassinato em massa de repórteres locais, tenta calar as últimas vozes capazes de narrar o horror. Quando uma força militar ataca duas vezes o mesmo prédio, sabendo que repórteres e equipes médicas correrão para lá, atinge-se, simultaneamente, um serviço essencial e a própria imprensa — isto é, o direito que o mundo tem de saber. É por isso que organizações de imprensa e líderes internacionais reagiram com veemência ao ataque ao Nasser, exigindo proteção a civis, responsabilização e o fim da impunidade.
Dizer, portanto, que Benjamim Netanyahu é “genocida e assassino de jornalistas” não é uma hipérbole panfletária. É uma avaliação política — fundamentada em fatos verificados, na escalada de um padrão de ataques contra infraestrutura médica e contra a imprensa, e no reconhecimento, por cortes e organismos internacionais, de risco de genocídio e de base suficiente para processá-lo por crimes internacionais. Chamar o ataque ao Nasser de “mishap” é um eufemismo indecente que tenta transformar o previsível em acidente, o sistemático em desvio, o crime em azar. Não é. É método. É comando. É responsabilidade.

O que fazer diante disso? Primeiro, recusar a normalização de investigações internas que terminam em nada; exigir uma investigação independente, com cadeia de custódia preservada e participação das vítimas. Segundo, suspender apoio militar e comercial que alimente a máquina de destruição — armas que atravessam fronteiras para chegar a Gaza retornam, simbolicamente, na forma de imagens de câmeras ensanguentadas. Terceiro, garantir corredores humanitários reais, proteção reforçada a instalações de saúde e salvaguardas concretas ao trabalho da imprensa. E, sobretudo, cumprir a lei: executar os mandados do TPI, dar curso às medidas da CIJ e aceitar que a razão de Estado não absolve crimes contra a humanidade.
O ataque ao Hospital Nasser é um divisor de águas. Não por ser o pior — a contabilidade do horror parece sempre superável —, mas por expor, de forma inescapável, a anatomia de uma política. Quando o chefe de governo que a conduz escolhe o eufemismo em vez da responsabilidade, reafirma que o alvo nunca foi apenas o Hamas: foi, e é, a possibilidade de cuidado, de sobrevivência e de testemunho. É por isso que este texto afirma, sem subterfúgios: Benjamim Netanyahu é genocida porque promove — apesar de alertas formais da jurisdição internacional — atos que caminham para a destruição de um povo; e é assassino de jornalistas porque suas ordens e sua estratégia criaram o ambiente em que reportar virou sentença. Que a justiça internacional, enfim, desfaça o eufemismo e chame as coisas pelo nome.