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A manipulação histórica de um conceito jurídico que determina o futuro da democracia brasileira


Por Raul Silva para O estopim | 28 de setembro de 2025


Veja o episódio completo desse episódio no nosso Canal no YouTube

Em setembro de 2025, duas realidades políticas se confrontam no Brasil através da mesma palavra: anistia. De um lado, a memória histórica de mulheres corajosas que desafiaram a ditadura militar para libertar presos políticos torturados. Do outro, um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional que propõe perdoar os condenados pelos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. A distância temporal é de quase cinquenta anos, mas a estratégia de manipulação da linguagem permanece idêntica: usar palavras nobres para encobrir propósitos sombrios.


O manifesto que mudou a história


A história começou em setembro de 1975, quando Therezinha Zerbini, uma advogada católica e conservadora de São Paulo, fez algo que poucos tinham coragem de fazer durante a ditadura militar: escreveu um manifesto público pedindo anistia. Não qualquer anistia, mas perdão específico para as vítimas do regime autoritário - presos políticos, torturados, exilados e cassados.


Therezinha de Godoy Zerbini, São Paulo (SP), 16/04/1928 – São Paulo (SP), 14/03/2015. Assistente social
Therezinha de Godoy Zerbini, São Paulo (SP), 16/04/1928 – São Paulo (SP), 14/03/2015. Assistente social

O "Manifesto da Mulher Brasileira em favor da Anistia" era um documento simples, de apenas uma página, mas com um impacto político devastador.


"Nós, mulheres brasileiras, assumimos nossas responsabilidades de cidadãs no que se refere aos destinos da Pátria", declarava o texto, numa época em que mulheres eram excluídas da participação política.

Euryale de Jesus Zerbini - Fonte: Wikipédia
Euryale de Jesus Zerbini - Fonte: Wikipédia

Therezinha não era uma revolucionária de carteirinha. Esposa do general Euryale de Jesus Zerbini, cassado pelos próprios militares por criticar os excessos do regime, ela conhecia por experiência própria o que significava ser vítima do autoritarismo. Seu manifesto conseguiu algo extraordinário para a época: reuniu 16 mil assinaturas de mulheres em todo o país, num momento em que assinar um documento contra a ditadura poderia significar prisão, tortura ou morte.


"Era uma mulher conservadora, católica, que nunca havia participado de movimentos políticos, mas que entendeu que era preciso fazer alguma coisa", explica a historiadora Carla Rodeghero, especialista em movimentos pela anistia no Brasil.

O manifesto de Therezinha plantou a semente do Movimento Feminino pela Anistia, que depois se expandiu para os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs) em todo o país.


A trapaça dos "Crimes Conexos"


O movimento popular pela anistia crescia como uma avalanche. Em 1978, os CBAs estavam organizados em dezenas de cidades brasileiras, promovendo manifestações, colhendo assinaturas, pressionando deputados e senadores. A demanda era clara: anistia "ampla, geral e irrestrita" para todas as vítimas da ditadura.


Os militares perceberam que a pressão popular havia se tornado irresistível, mas tinham um problema: não podiam conceder anistia apenas às vítimas sem admitir que havia algozes a serem punidos. Foi então que criaram uma das maiores trapaças jurídicas da história brasileira.


 Crédito: Autoria desconhecida. Coleção Democracia Socialista. Acervo CSBH/FPA. Passeata de protesto contra a Lei de Segurança Nacional e pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita em São Paulo/SP, s/d.
Crédito: Autoria desconhecida. Coleção Democracia Socialista. Acervo CSBH/FPA. Passeata de protesto contra a Lei de Segurança Nacional e pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita em São Paulo/SP, s/d.

Quando o projeto de lei da anistia foi enviado ao Congresso em junho de 1979, ele incluía uma expressão aparentemente técnica que mudaria tudo: "crimes conexos". O artigo primeiro da Lei 6.683/79 estabelecia anistia para crimes políticos "ou conexo com estes", enquanto o parágrafo primeiro definia como conexos "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".


Era uma fórmula jurídica genérica o suficiente para incluir tortura, assassinato, sequestro, desaparecimento forçado - todos os crimes cometidos pelos agentes da repressão. "A expressão 'crimes conexos' foi a chave que abriu a porta da impunidade para todos os torturadores da ditadura", afirma o jurista Fábio Konder Comparato, especialista em direitos humanos.


O deputado Djalma Marinho, relator da lei na Comissão Mista do Congresso, chegou a admitir publicamente que os "crimes conexos" incluíam os crimes praticados pelos agentes da repressão. Não havia dúvida sobre o que estava acontecendo. Todos sabiam que a lei estava anistiando torturadores, mas a maioria parlamentar, controlada pelos militares através do bipartidarismo forçado, aprovou mesmo assim.


A construção sistemática do esquecimento


A anistia de 1979 foi apenas o primeiro passo de uma operação muito mais ampla que os pesquisadores chamam de "políticas de esquecimento". A psicanalista Soraia Ansara, que estudou profundamente esse fenômeno, descobriu que o Estado brasileiro criou um sistema sofisticado para apagar da memória coletiva os crimes cometidos durante a ditadura.


Essas políticas funcionavam em várias frentes simultaneamente: destruição física de evidências através da queima de documentos, manipulação ideológica através dos meios de comunicação controlados, uso de grandes eventos para desviar a atenção popular (como a Copa do Mundo de 1970) e, principalmente, a criação de uma narrativa de "reconciliação nacional" que transformava o esquecimento em virtude cívica.


Prédio do Comando da Base Ádria de Salvador - Foto: Alexandre Dias
Prédio do Comando da Base Ádria de Salvador - Foto: Alexandre Dias

Em 2004, uma reportagem do programa Fantástico revelou que na Base Aérea de Salvador militares ainda estavam queimando documentos da ditadura no início dos anos 2000. Eram toneladas de papéis sendo destruídos sistematicamente para que nunca viessem à tona. O ex-ministro da Aeronáutica, brigadeiro Ivan de Souza Mendes, chegou a admitir publicamente que houve "queima de arquivo em série" durante a ditadura.


"Era uma operação coordenada para apagar da história oficial qualquer vestígio dos crimes cometidos pelos agentes do Estado", explica o historiador Carlos Fico, autor de diversos livros sobre o regime militar. Documentos foram destruídos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília, em dezenas de quartéis espalhados pelo país.


O caso emblemático de Rubens Paiva


As consequências dessa política de esquecimento podem ser medidas através de casos concretos como o do deputado federal Rubens Paiva. Pai de cinco filhos, respeitado parlamentar do MDB, Rubens foi sequestrado pelos órgãos de repressão em janeiro de 1971 e nunca mais voltou para casa.


Durante mais de 40 anos, a versão oficial dizia que ele havia "fugido" durante uma operação militar - uma mentira deslavada que constou dos documentos oficiais durante décadas. A viúva, Eunice Paiva, morreu sem saber como o marido havia sido assassinado. Os filhos cresceram sem entender por que o pai havia sumido de uma hora para outra.


Rubens Paiva, do PTB – Divulgação/Memórias da Ditadura
Rubens Paiva, do PTB – Divulgação/Memórias da Ditadura

Foi só com o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) que a família Paiva finalmente conseguiu saber a verdade. O relatório da CNV revelou os nomes dos torturadores que mataram Rubens Paiva: major Antonio Fernando Hughes de Carvalho, capitão Freddie Perdigão Pereira, major Carlos Alberto Augusto e outros.


O mais revoltante: Antonio Fernando Hughes de Carvalho, que torturou e matou um deputado federal, recebeu uma medalha do Exército por "combater a subversão". Ele foi condecorado pelo crime que cometeu. Era a inversão completa de valores: o criminoso virava herói, a vítima virava terrorista.


A CNV conseguiu identificar 377 pessoas com indícios de autoria de crimes contra a humanidade durante a ditadura, mas esbarrou na Lei da Anistia para conseguir qualquer responsabilização penal. Os torturadores identificados continuaram livres, continuaram recebendo aposentadorias do Estado, continuaram sendo tratados como heróis pelos seus pares.


A história se repete como farsa


Em 2025, quase meio século depois da anistia de 1979, o Brasil vive uma situação que Karl Marx descreveria como a história se repetindo "primeiro como tragédia, depois como farsa". Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe anistia para os condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023, quando milhares de pessoas invadiram e depredaram os três poderes da República tentando forçar uma intervenção militar.


Hamilton Mourão - Foto: Suamy Beydoun/AGIF/AFP
Hamilton Mourão - Foto: Suamy Beydoun/AGIF/AFP

O projeto do senador Hamilton Mourão é uma obra-prima de manipulação linguística. Fala em "manifestações ocorridas em Brasília" para se referir à tentativa de golpe de Estado. Usa a mesma técnica dos militares em 1979: chamam invasão de "manifestação", depredação de "protesto", tentativa de golpe de "ato patriótico".


A proposta ainda tem o cuidado de excluir alguns crimes mais graves, como "dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa". A lógica perversa é clara: quebrar uma janela do Palácio do Planalto não pode ser anistiado porque é crime contra o patrimônio, mas tentar quebrar a democracia pode ser perdoado porque é apenas "manifestação política".


A máquina de desinformação


A principal diferença entre 1979 e 2025 está no papel das redes sociais como amplificadoras da desinformação política. A campanha pela anistia atual não se sustenta em argumentos racionais, mas em narrativas falsas espalhadas principalmente por plataformas digitais.


Uma dessas narrativas transforma os presos do 8 de janeiro em "presos políticos" - uma distorção grotesca que se aproveita da ignorância histórica da população. Preso político é quem é preso por suas ideias, como foram os verdadeiros presos políticos durante a ditadura. Quem invade e depreda os três poderes não está sendo preso por suas ideias, mas por crimes concretos contra o Estado democrático de direito.


O Senado Federal chegou a criar um serviço específico para combater a desinformação sobre o projeto de anistia, tamanha a quantidade de informações falsas circulando nas redes sociais. Vídeos manipulados, dados falsos sobre pesquisas de opinião, teorias conspiratórias sobre "perseguição ideológica" - tudo sendo usado para confundir a opinião pública e criar pressão política pela aprovação da anistia.


O precedente perigoso


As pesquisas de opinião mostram que a maioria dos brasileiros rejeita a anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Uma pesquisa Atlas/Bloomberg de agosto de 2025 apontou que 51,2% dos entrevistados são contra o perdão aos condenados. O instituto Datafolha registrou em setembro que 54% rejeitam anistia específica para Bolsonaro.


Mas a questão transcende a opinião pública. O que está em jogo é o precedente que seria criado para o futuro da democracia brasileira. Se quem invadiu e depredou os três poderes da República pode ser anistiado, que mensagem isso manda para futuros grupos antidemocráticos? Se tentar dar golpe de Estado pode ser perdoado em nome da "reconciliação nacional", que estímulo existe para respeitar as regras democráticas?


"A anistia de 1979 já criou uma cultura de impunidade política no Brasil que perdura até hoje", analisa a cientista política Vera Chaia, da PUC-SP. "Aprovar anistia para crimes contra a democracia seria consolidar definitivamente a ideia de que, no país, crime político compensa."

As lições não aprendidas


O Brasil é um dos poucos países do mundo onde a transição da ditadura para a democracia foi feita com base na impunidade total dos crimes do passado. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, houve responsabilização penal dos torturadores. Na África do Sul, uma Comissão da Verdade que, mesmo concedendo anistia, exigiu confissão pública dos crimes.


No Brasil, houve apenas esquecimento institucionalizado. E as consequências dessa escolha se estendem até hoje: uma polícia que mata milhares de jovens pobres e negros anualmente usando métodos herdados da repressão política, um sistema de justiça que funciona de forma diferenciada para ricos e pobres, uma cultura política que ainda não aprendeu a valorizar a responsabilização acima da conveniência.


"Quando uma sociedade aceita que crimes graves fiquem impunes em nome da reconciliação, ela não constrói reconciliação verdadeira", observa o procurador da República Pedro Dallari, que integrou a Comissão Nacional da Verdade. "Constrói apenas uma paz falsa, baseada no silêncio das vítimas e na proteção dos algozes."

A proposta de anistia para os crimes de 8 de janeiro representa a consolidação definitiva dessa lógica perversa. Seria transformar em regra o que deveria ser exceção: a impunidade para crimes políticos graves. Seria ensinar para as futuras gerações que atacar a democracia não tem consequências sérias, desde que se consiga mobilizar pressão política suficiente.


A escolha do Brasil


O país está diante de uma escolha histórica. Pode repetir os erros de 1979, aceitando mais uma vez que crimes graves fiquem impunes em nome de uma falsa reconciliação. Ou pode escolher um caminho diferente, onde conhecer a história nos ajuda a construir um futuro melhor, onde a justiça vale mais que a conveniência política, onde a democracia é defendida através de ações concretas.


A diferença é que agora sabemos o que acontece quando crimes políticos ficam impunes. Sabemos que a impunidade não traz reconciliação, traz mais violência. Sabemos que o esquecimento não traz paz, traz repetição. Sabemos que proteger criminosos não fortalece a democracia, a enfraquece.


OUÇA/VEJA O EPIS]ODO COMPLETONO SPOTIFY


Therezinha Zerbini morreu em 2015, aos 88 anos, tendo visto seu país construir uma democracia sobre o alicerce da impunidade que ela involuntariamente ajudou a criar. A anistia pela qual ela lutou corajosamente em 1975 foi sequestrada pelos militares em 1979 e transformada numa ferramenta de proteção aos torturadores.


Agora, meio século depois, a mesma palavra volta a ser campo de batalha política. A diferença é que desta vez conhecemos a história. E conhecer a história deveria ser suficiente para não permitir que ela se repita, nem como tragédia, nem como farsa.


A democracia brasileira sobreviverá se conseguir aprender com seus próprios erros. A resposta sobre o futuro do país está nas mãos de uma sociedade que precisa decidir se quer ser lembrada como aquela que finalmente escolheu a justiça acima da impunidade, ou como aquela que preferiu repetir para sempre os mesmos equívocos do passado.


 
 
 
  • Foto do escritor: Radar Literário
    Radar Literário
  • 26 de set.
  • 5 min de leitura

Por Raul Silva para Radar Literário d'O estopim | 26 de setembro de 2025


Publicado em 2015, "Ainda Estou Aqui", de Marcelo Rubens Paiva, subverte a definição de um simples livro de memórias para se firmar como um artefato cultural de rara potência. É, na verdade, uma obra híbrida e multifacetada que se tece com os fios da biografia íntima, do testemunho histórico, do jornalismo investigativo e do ensaio filosófico. A genialidade de Paiva está em fundir esses gêneros de forma orgânica, criando um texto que é ao mesmo tempo documento e desabafo.


Confira nossa resenha em áudio

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Justiça, memória e a luta de Eunice Paiva contra a Ditadura e o AlzheimerRadar Literário

Capa do livro - Editora Alfaguara
Capa do livro - Editora Alfaguara

No seu cerne, o livro é um poderoso e comovente tratado sobre a memória e a luta desesperada contra o seu apagamento em duas frentes simultâneas e igualmente trágicas: a batalha de uma família contra o esquecimento deliberadamente imposto por um Estado autoritário e a batalha de um filho contra a dissolução da identidade de sua mãe pela névoa impiedosa do Alzheimer. Essas duas batalhas não correm em paralelo; elas se entrelaçam, dialogam e se espelham, mostrando que o esquecimento, seja ele forçado pela violência política ou pela falha da biologia, é sempre uma forma de aniquilamento.


A narrativa se constrói sobre um pilar duplo de perdas, erguendo um monumento à resiliência humana. De um lado, acompanhamos a saga incansável de Eunice Paiva, mãe do autor, em busca da verdade sobre o destino de seu marido, o deputado Rubens Paiva. Figura política proeminente e cassada pelo regime, ele foi sequestrado, torturado e assassinado por agentes da ditadura militar brasileira em 1971, tornando-se um dos mais emblemáticos "desaparecidos políticos" do país.


Por mais de quatro décadas, Eunice enfrentou a burocracia kafkiana, o silêncio cúmplice e a negação sistemática das Forças Armadas. Ela transformou seu luto pessoal em uma bandeira política, convertendo a dor da ausência em ação incessante pela memória e pela justiça. Sua luta não era apenas por um corpo para enterrar, mas pelo direito à verdade, tornando-se a personificação da resistência contra o projeto de esquecimento histórico que, sob o pretexto de uma "reconciliação", tentou varrer para debaixo do tapete os crimes e as feridas abertas do regime.


Em um espelhamento cruel e paradoxal do destino, enquanto Eunice luta para que a memória de seu marido não seja apagada da história do Brasil, seu filho, Marcelo, trava uma batalha inversa e igualmente dolorosa: ele luta para preservar as memórias de sua mãe, que começam a ser implacavelmente roubadas pelo Mal de Alzheimer.


Eunice Paiva e Rubens Paiva - Foto: Acervo pessoal da família Paiva
Eunice Paiva e Rubens Paiva - Foto: Acervo pessoal da família Paiva

A sobreposição dessas duas jornadas é o que confere ao livro sua força avassaladora e seu impacto universal. Paiva narra com uma honestidade brutal, que não poupa o leitor dos detalhes mais crus da degenerescência, e, ao mesmo tempo, com uma ternura infinita, o processo de desintegração cognitiva de Eunice. Ele descreve a perda progressiva das palavras, dos nomes dos filhos, dos rostos familiares e, por fim, da própria noção de si. Ele documenta não a morte física de sua mãe, mas a dolorosa metamorfose de uma das mentes mais brilhantes e ativas de sua geração — uma advogada combativa, uma mãe presente — em uma sombra de si mesma, presa em um labririnto interior. A crueza dessa descrição serve a um propósito maior: o de mostrar que a perda da memória é uma forma de desaparecimento em vida.


A genialidade da estrutura narrativa de Paiva reside em sua recusa a uma cronologia linear, optando por uma abordagem que reflete a própria desordem da memória. O livro é um mosaico, uma colagem de fragmentos que espelha a natureza caótica do trauma e do esquecimento. Capítulos que funcionam como um diário íntimo sobre o avanço da doença e os desafios práticos e emocionais do cuidado são intercalados com flashbacks vívidos da infância do autor, transcrições de documentos oficiais da Comissão da Verdade, cartas pessoais, reportagens da época e trechos da minuciosa investigação sobre o sequestro e assassinato de Rubens Paiva.


Essa polifonia de vozes e textos cria uma experiência de leitura imersiva e, por vezes, sufocante. Ao saltar de um laudo pericial frio para uma lembrança afetuosa, Paiva coloca o leitor diretamente no centro do caos emocional e histórico vivido pela família. Essa desorientação temporal, portanto, é uma escolha estética e política: ela não apenas espelha a mente fragmentada de Eunice, mas emula a própria memória fraturada de uma nação que ainda luta para montar o quebra-cabeça de seu passado.


Eunice Paiva, acompanhada do filho Marcelo Rubens Paiva, recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva, seu marido desaparecido desde 1971 - Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress
Eunice Paiva, acompanhada do filho Marcelo Rubens Paiva, recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva, seu marido desaparecido desde 1971 - Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

No centro de tudo, e a cada página, emerge a figura monumental de Eunice Paiva. O livro é, antes de mais nada, uma eloquente carta de amor e uma homenagem à sua força inabalável. Longe de ser retratada apenas como vítima passiva da história ou da doença, ela é a protagonista resiliente, uma mulher que, mesmo diante das maiores dores que um ser humano pode suportar — a perda do marido e a perda de si mesma —, se recusou a ser silenciada.


Advogada, mãe de cinco filhos, ela se tornou um símbolo de dignidade e coragem, não só para sua família, mas para inúmeras outras que passaram pela mesma tragédia do desaparecimento forçado. Ao registrar meticulosamente a história de sua mãe, da sua lucidez combativa à sua vulnerabilidade final, Marcelo cumpre a promessa contida no título: "Ainda Estou Aqui". Ele se torna a memória viva dela, o guardião de sua história e de sua luta, garantindo que nem a brutalidade da ditadura nem a crueldade da doença tenham a palavra final sobre quem foi Eunice Paiva.


"Ainda Estou Aqui" é, portanto, uma obra de importância capital, cuja relevância só cresce com o tempo. É um documento de denúncia que humaniza as estatísticas da ditadura, dando nome, rosto, história e uma complexidade de sentimentos a uma de suas vítimas e à família que foi permanentemente marcada pela violência de Estado. Mais do que isso, é uma reflexão universal sobre o amor filial, o luto, a identidade e a própria essência do que nos torna humanos.


Ao justapor a perda da memória coletiva e da memória individual, Marcelo Rubens Paiva nos força a confrontar o quão essencial e ativo é o ato de lembrar — para uma pessoa, para uma família e para uma nação inteira. Não é um livro fácil, mas profundamente necessário. É um testamento inesquecível que afirma, com clareza cortante, que o antídoto contra o desaparecimento — seja ele imposto por um regime ou por uma doença — é o ato de contar a história.


"Ainda estou aqui" tem sido destaque na imprensa nacional e estrangeira. Foto: reprodução.
"Ainda estou aqui" tem sido destaque na imprensa nacional e estrangeira. Foto: reprodução.

O eco dessa verdade literária encontrou sua mais potente caixa de ressonância na adaptação cinematográfica homônima dirigida por Walter Salles. O filme não apenas traduziu com maestria a complexidade da obra para as telas, mas amplificou sua mensagem a uma escala global, um fenômeno coroado com o histórico Oscar de Melhor Filme Internacional em março de 2025. Sete meses depois, o impacto do filme não diminuiu; pelo contrário, ele continua a acumular prêmios nos mais prestigiados festivais ao redor do mundo, de Cannes a Veneza.


Essa aclamação contínua demonstra que a história de Eunice Paiva transcendeu seu contexto brasileiro para se tornar um símbolo universal da luta por justiça e memória. O sucesso duradouro do filme potencializa a força da narrativa original, provando que a luta contra o esquecimento é uma pauta urgente e global. Cada novo prêmio não é apenas um reconhecimento artístico para Salles e sua equipe, mas uma vitória para a memória histórica, um lembrete contundente de que, enquanto houver quem conte essas histórias, as vozes silenciadas continuarão a ecoar.


Recentemente Raul Silva fez uma resenha especial para o quadro Literatura de Primeira na Rádio Itapuama FM confiram aqui:


 
 
 
Deputado Leur Lomanto Júnior (União-BA) será o responsável por analisar a representação por quebra de decoro parlamentar. O processo, que pode levar à cassação do mandato do filho do ex-presidente, entra agora em sua fase inicial.

Por Redação d'O estopim | 26 de setembro de 2025


Brasília – O presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, Julio Arcoverde (PP-PI), definiu nesta sexta-feira (26) o relator do processo disciplinar movido contra o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O escolhido para conduzir a análise inicial do caso foi o deputado Leur Lomanto Júnior (União-BA), um político experiente e membro de um partido que recentemente adotou uma postura de independência em relação ao governo.


Confira nossa análise em áudio

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Leur Lomanto Júnior, e os próximos passos rumo à possível cassaçãoO estopim

Leur Lomanto Júnior (União-BA) - Fonte: Portal da Câmara dos Deputados
Leur Lomanto Júnior (União-BA) - Fonte: Portal da Câmara dos Deputados

A definição do relator é um passo crucial e dá início formal à tramitação de um dos processos mais politicamente sensíveis da atual legislatura. A representação, protocolada em conjunto pelos partidos PSOL e Rede Sustentabilidade, acusa o parlamentar de quebra de decoro por supostamente ter feito ameaças a outros congressistas e por discursos que, segundo os autores, atentariam contra as instituições democráticas e o Estado de Direito.


Quem é o relator?


Leur Lomanto Júnior pertence ao União Brasil, partido que acaba de formalizar sua saída da base de apoio do governo Lula. Essa posição de "independência" coloca o relator em uma posição-chave, teoricamente menos suscetível às pressões diretas tanto do Palácio do Planalto quanto da oposição bolsonarista.


Membro de uma família com longa tradição na política baiana, Lomanto Júnior é visto como um parlamentar de perfil moderado, filiado ao chamado Centrão. Sua atuação será fundamental para ditar o ritmo e a direção do processo. A escolha de um nome do União Brasil para a relatoria é, por si só, um elemento de imprevisibilidade no desfecho do caso.


Quais os próximos passos?


Com a designação oficial, o rito processual começa a correr. Leur Lomanto Júnior terá agora um prazo de 10 dias úteis para apresentar um parecer preliminar. Neste documento, ele deverá decidir por uma de três vias:


  1. Arquivamento: Caso entenda que a denúncia não tem fundamento ou não constitui quebra de decoro, pode recomendar o arquivamento imediato do processo.

  2. Continuidade: Se considerar que há indícios de infração ética, ele recomendará a continuidade das investigações.

  3. Diligências: O relator pode ainda solicitar a realização de diligências para coletar mais informações antes de tomar sua decisão.


Se o parecer for pela continuidade, ele será votado pela maioria simples dos membros do Conselho de Ética. Aprovado, o processo entra na fase de instrução, na qual Eduardo Bolsonaro será notificado para apresentar sua defesa por escrito e arrolar até oito testemunhas. O relator, por sua vez, poderá ouvir as testemunhas de acusação e defesa, coletar provas e, ao final, elaborar um parecer de mérito, que também será submetido à votação no colegiado.


As possíveis punições e o cenário político


O processo no Conselho de Ética pode resultar em um leque de penalidades, que variam em gravidade, desde uma censura verbal ou escrita, passando pela suspensão temporária do mandato por até seis meses, até a punição máxima: a cassação do mandato parlamentar.


A instauração do processo e a escolha do relator elevam a temperatura política em Brasília. Para a base governista e partidos de oposição a Bolsonaro, o caso é um teste para a capacidade do Conselho de Ética de punir o que consideram "excessos" e reafirmar os limites da imunidade parlamentar. Já para os aliados do ex-presidente, o processo é visto como mais um capítulo de uma suposta "perseguição política" contra a família Bolsonaro e seus apoiadores.


A definição do relator marca o início de uma batalha jurídica e política que deve se estender pelos próximos meses no Congresso Nacional. O parecer de Leur Lomanto Júnior será o primeiro termômetro crucial sobre a força da representação e as chances reais de uma punição efetiva a um dos principais nomes e influenciadores do bolsonarismo no país.

 
 
 
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