- Raul Silva

- 1 de out.
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Por Raul Silva para O estopim | 01 de outubro de 2025

Bem-vindos ao nosso primeiro Diário de Leitura, uma nova seção que irá compor a parte literária do site O Estopim.
Neste espaço, vamos mergulhar em obras que nos ajudem a decifrar o complexo quebra-cabeça do nosso tempo. E para inaugurar este projeto, nada mais apropriado do que a leitura do livro Modernidade Líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. A motivação para começar com este livro é clara: a necessidade urgente de tentar entender a sociedade atual e o mundo em que vivemos, especialmente em uma era marcada pela pós-verdade, pela desinformação e por uma sensação de instabilidade constante.
Vamos, juntos, refletir sobre o que Bauman nos diz e como suas palavras, escritas na virada do milênio, parecem descrever perfeitamente o nosso presente.
A metáfora central: o Mundo se tornou Líquido
Bauman inicia sua reflexão com uma metáfora poderosa e que guiará todo o seu pensamento: a "fluidez" ou "liquidez" como o estado que define a nossa fase da modernidade. Ele recorre a uma definição quase de enciclopédia para nos lembrar das qualidades dos fluidos: eles não mantêm a forma, mudam constantemente sob pressão e, para eles, o que realmente importa é o fluxo do tempo, não o espaço que ocupam momentaneamente.
Ao contrário dos sólidos, que são estáveis, resistentes e neutralizam a passagem do tempo, os líquidos são móveis, leves e inconstantes. Pense nisso por um instante. Quantas áreas da nossa vida hoje não parecem se encaixar nessa descrição? Os empregos que já não são para a vida toda, os relacionamentos que se formam e dissolvem com a rapidez de um "match", as informações que nos inundam e desaparecem na mesma velocidade, as identidades que precisamos constantemente reconstruir nas redes sociais. Tudo parece ter perdido a solidez de outrora. A estabilidade virou sinônimo de estagnação, e a capacidade de se mover rápido, de viajar leve, tornou-se o maior dos trunfos.

Bauman, de forma brilhante, resgata a famosa frase de Karl Marx sobre a modernidade ter como principal tarefa "derreter tudo o que é sólido". No entanto, ele argumenta que essa tarefa mudou radicalmente de propósito.
Na primeira fase da modernidade, que podemos chamar de "sólida", o objetivo era derreter as velhas estruturas – como as tradições, as lealdades familiares e os costumes – para substituí-las por sólidos novos e melhores: o Estado-nação, a burocracia, as fábricas, as classes sociais bem definidas. Era preciso demolir a velha ordem para construir uma nova, que se pretendia mais racional, previsível e duradoura.
O que vivemos agora, na modernidade líquida, é um segundo momento desse derretimento. O alvo não é mais as velhas tradições, mas sim os próprios alicerces que a modernidade sólida construiu. Agora, o que derrete são "os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas". Derretem-se os laços de solidariedade, a confiança nas instituições, a capacidade de ação política conjunta. O derretimento tornou-se um fim em si mesmo, uma condição permanente.
O Poder na Era Líquida: da vigilância à fuga
Talvez a análise mais impactante deste prefácio seja sobre a transformação do poder. Na modernidade sólida, o poder era pesado, territorial e se exercia através do controle e da vigilância. Bauman usa o modelo do Panóptico de Foucault como a metáfora perfeita: os chefes precisavam estar presentes para vigiar e gerenciar os subordinados, que, por sua vez, estavam presos a um lugar (a fábrica, a prisão, a escola). Havia um engajamento mútuo, ainda que conflituoso, entre capital e trabalho, entre governantes e governados.

Hoje, o poder tornou-se extraterritorial. A principal técnica de poder não é mais o confronto direto ou a administração, mas "a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação". O poder flui. A elite global contemporânea é nômade; ela governa à distância, sem precisar se responsabilizar pelo território ou pelo bem-estar das populações assentadas.
Isso se manifesta de formas muito concretas no nosso mundo:
No Brasil e no Mundo: Pensemos na "uberização" do trabalho. Uma empresa global, cujo poder reside em um algoritmo etéreo, domina uma massa de trabalhadores individuais e desorganizados, sem oferecer os "sólidos" direitos trabalhistas do passado. O poder da empresa está justamente em sua leveza e mobilidade, na sua capacidade de se desengajar de qualquer responsabilidade local.
Guerras Recentes: Bauman cita as guerras do Golfo e da Iugoslávia como exemplos de um novo tipo de conflito "atingir e correr", em que o objetivo não é mais a conquista de território (um fardo sólido e caro), mas a destruição de barreiras para permitir o fluxo do poder global. As guerras com drones, onde o soldado opera a milhares de quilômetros de distância, são a apoteose dessa lógica.
O indivíduo à deriva e a sede por solidez
Se o poder se liquefez e se tornou inalcançável, o que acontece conosco, os indivíduos? A responsabilidade pela construção de uma vida coerente e segura foi totalmente privatizada e transferida para os nossos ombros. Instituições que antes serviam como referência – a família, a classe, a comunidade – tornaram-se o que Ulrich Beck chama de "categorias zumbi": estão "mortas e ainda vivas", não oferecem mais um porto seguro, mas ainda assombram nosso imaginário.
É nesse cenário de incerteza e insegurança que podemos entender a ascensão da desinformação e da pós-verdade. Em um mundo líquido, sem pontos de referência estáveis e confiáveis, as pessoas se agarram desesperadamente a qualquer coisa que pareça sólida. Uma teoria da conspiração, por mais absurda que seja, oferece uma narrativa coesa e estável sobre um mundo assustadoramente caótico. Um líder autoritário que promete restaurar uma ordem perdida oferece uma ilusão de solidez e controle. A polarização política no Brasil e em outros lugares do mundo pode ser vista como essa busca desesperada por certezas em um oceano de fluidez.
A leitura deste prefácio de Bauman não oferece respostas fáceis, mas nos entrega uma ferramenta analítica poderosa. Ele nos ajuda a entender que a ansiedade, a efemeridade e a instabilidade que sentimos não são falhas individuais, mas a própria lógica do mundo em que vivemos. Este é apenas o começo da nossa jornada por Modernidade Líquida. As questões que ficam são profundas: é possível recriar laços de solidariedade em um mundo que nos empurra para o individualismo? Como podemos construir um futuro coletivo quando o poder se tornou mestre na arte da fuga? Continuaremos essa reflexão em nosso próximo Diário de Leitura.
