A Batalha pela Terra Média: Como J.R.R. Tolkien se tornou símbolo involuntário da Supremacia Branca
- Raul Silva

- 17 de ago.
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Atualizado: 27 de ago.
Uma investigação sobre a apropriação política de uma das obras mais influentes da literatura moderna revela as tensões entre legado artístico e instrumentalização ideológica

Quando Giorgia Meloni subiu ao poder na Itália em 2022, uma de suas primeiras iniciativas culturais foi patrocinar uma dispendiosa exposição sobre J.R.R. Tolkien em Roma.
"Nesta saga encontramos os valores eternos que formam heróis autênticos", declarou a primeira-ministra durante a inauguração, referindo-se ao Senhor dos Anéis.
Para quem conhece a trajetória política de Meloni – formada nos "Campos Hobbit" organizados por grupos neofascistas italianos nos anos 1990 –, a homenagem soa menos como celebração literária e mais como manifesto político disfarçado.

A apropriação da obra de Tolkien por movimentos de extrema-direita representa um dos casos mais complexos e perturbadores de como clássicos literários podem ser instrumentalizados para fins que contradizem frontalmente as convicções pessoais de seus autores. Uma investigação baseada em mais de quarenta fontes acadêmicas, documentos históricos e análises especializadas revela como uma obra sobre união na diversidade foi sistematicamente distorcida para promover exatamente o contrário: exclusão racial e nacionalismo étnico.
A transformação de hobbits em símbolos fascistas começou em 1977, nas colinas da Toscana. O Movimento Social Italiano (MSI), partido que congregava os herdeiros políticos do regime de Mussolini, criou os primeiros "Campos Hobbit" – acampamentos temáticos onde jovens militantes eram doutrinados usando O Senhor dos Anéis como base ideológica.
"A genialidade diabólica estava na reinterpretação", explica Helen Young, da Universidade Deakin e autora de Race and Popular Fantasy Literature. "Eles pegaram uma narrativa sobre resistência ao mal e cooperação entre diferentes povos, e a transformaram numa metáfora para pureza racial e resistência à 'invasão' cultural."

Os organizadores reinterpretaram sistematicamente os elementos centrais da narrativa tolkieniana: os "povos livres do Oeste" representavam a Europa branca e cristã; Sauron e suas hordas simbolizavam invasões de povos não-europeus; a missão de destruir o Anel se tornava um chamado para preservar a homogeneidade cultural ocidental. O método funcionou com eficácia impressionante. Os acampamentos continuaram por décadas, formando gerações de quadros políticos que cresceram vendo Frodo e Aragorn como heróis de uma causa nacionalista. Entre os participantes estava Giorgia Meloni, então adolescente, que hoje ocupa o cargo mais alto do governo italiano.

Nos anos 2000, essa interpretação política da obra tolkieniana atravessou oceanos, encontrando terreno fértil nos Estados Unidos. Peter Thiel, co-fundador do PayPal e bilionário do Vale do Silício, nomeou sistematicamente suas empresas com referências ao universo de Tolkien: Palantir Technologies, Mithril Capital, Valar Ventures, Anduril Industries. A escolha dos nomes não foi coincidental. Palantir, as pedras de visão que na narrativa tolkieniana representam os perigos da vigilância autoritária, tornou-se o nome de uma empresa especializada em tecnologias de espionagem para governos. Anduril, a espada reforjada de Aragorn, denomina uma companhia de armamentos autônomos. A ironia é perturbadora: símbolos criados por Tolkien para alertar sobre os perigos do poder absoluto sendo usados por empresas que lucram com controle e guerra.
J.D. Vance, candidato republicano à vice-presidência dos Estados Unidos em 2024, declarou publicamente que
"muito da minha visão política conservadora foi profundamente influenciada pela obra de J.R.R. Tolkien".
Em suas formulações, a resistência do Condado aos "modernizadores" de Saruman espelha a resistência das comunidades tradicionais americanas às mudanças sociais contemporâneas. Robert Stuart, autor de Tolkien, Race, and Racism in Middle-earth, documenta como essa rede de apropriação se expandiu:
"Não estamos falando de fãs casuais. Estamos falando de uma rede internacional de políticos, empresários e intelectuais que desenvolveram, ao longo de cinco décadas, uma interpretação sistemática da obra como manifesto político".
A instrumentalização extremista da obra tolkieniana enfrenta, no entanto, um obstáculo histórico intransponível: as próprias convicções e ações de J.R.R. Tolkien. Em 1938, quando editores alemães solicitaram comprovação de sua "descendência ariana" para publicar O Hobbit na Alemanha nazista, a resposta de Tolkien foi devastadora para qualquer tentativa de alinhá-lo com doutrinas racistas.
"Não considero a (provável) ausência de todo sangue judeu como necessariamente honrosa", escreveu Tolkien, "e tenho muitos amigos judeus, e lamentaria dar qualquer aparência à noção de que subscrevo à doutrina racial totalmente perniciosa e não científica".
A carta, enviada em julho de 1938, causou o cancelamento imediato da publicação alemã. Mais que uma recusa diplomática, representou uma tomada de posição moral explícita contra a ideologia que hoje tenta cooptá-lo. Tolkien chamou Hitler de "aquele ignaro sanguinário" e expressou "rancor particular" contra o ditador alemão. Dimitra Fimi, da Universidade de Cardiff e especialista em medievalismo tolkieniano, argumenta que essa posição foi consistente ao longo da vida do autor:
"Em 1967, quase trinta anos depois da carta original, Tolkien rejeitou explicitamente o termo 'nórdico' devido às suas 'associações lamentáveis com as teorias raciais'".
Durante a Segunda Guerra Mundial, Tolkien não apenas se opôs ao nazismo politicamente, mas tomou atitudes práticas contra o racismo, oferecendo aulas gratuitas para refugiados judeus em Oxford e mantendo correspondência acadêmica com intelectuais perseguidos pelo regime hitlerista.
A questão se torna verdadeiramente complexa quando acadêmicos identificam elementos genuinamente problemáticos nos textos de Tolkien que, inadvertidamente, facilitam apropriações racistas. A passagem mais controversa aparece em uma carta de 1958, onde Tolkien descreveu os Orcs como:
"atarracados, largos, de nariz achatado, pele amarelenta, com bocas largas e olhos oblíquos: de fato, versões degradadas e repulsivas dos tipos mongóis (para europeus) menos atraentes".
James Mendez Hodes, especialista em estudos asiático-americanos, considera essa descrição uma forma de "lavagem de ódio" – a transferência de preconceitos do mundo real para contextos fantásticos.
Rebecca Brackmann documenta como os Anões em O Hobbit incorporaram estereótipos antissemitas da literatura europeia: obsessão com ouro, comportamento argumentativo, insulamento cultural. O próprio Tolkien reconheceu:
"Penso nos Anões como judeus: ao mesmo tempo nativos e estrangeiros em suas habitações".
No entanto, estudiosos como Tom Shippey argumentam que muitos elementos aparentemente racistas refletem convenções da literatura medieval que Tolkien estava imitando, não endossos pessoais a doutrinas raciais. Fimi demonstra como as representações evoluíram ao longo da obra: enquanto os Anões de O Hobbit (1937) reproduzem tropos problemáticos, Gimli em O Senhor dos Anéis (1954-55) é retratado como nobre e heroico, sugerindo evolução consciente nas ideias do autor.
Patrick Curry aponta momentos onde Tolkien explicitamente quebra caracterizações simplistas, como quando Sam contempla um soldado morto de Harad:
"Ele se perguntava como se chamava o homem e de onde ele vinha; e se ele era realmente mau de coração, ou que mentiras ou ameaças o levaram na longa marcha de sua casa".
É um momento de profunda humanização do "inimigo" que contradiz leituras supremacistas.

O debate explodiu novamente em 2022 com o lançamento de Os Anéis de Poder, da Amazon, que incluiu atores negros interpretando elfos, anões e hobbits. A reação foi imediata e virulenta: campanhas organizadas de assédio racista, ataques sistemáticos nas redes sociais, e argumentos aparentemente sofisticados sobre "fidelidade ao material original". A resposta da comunidade acadêmica foi inequívoca. Mais de duzentos especialistas em Tolkien assinaram uma carta defendendo o direito de adaptações incluírem diversidade racial. O elenco original dos filmes de Peter Jackson se posicionou publicamente, com Sean Astin declarando:
"A Terra Média não pertence a supremacistas brancos. Essa obra fala sobre diferentes povos superando suas diferenças para combater o mal".
Robin Reid, do Journal of Tolkien Research, documentou como grupos organizados de extrema-direita atacaram não apenas adaptações diversas, mas os próprios acadêmicos que estudam questões raciais na obra. O seminário da Tolkien Society sobre diversidade em 2021 recebeu mais de 700 inscrições legítimas, mas também ataques coordenados de supremacistas tentando sabotar as apresentações.
Charles Mills, filósofo político da Northwestern University, ofereceu uma das análises mais sofisticadas em seu ensaio The Wretched of Middle-Earth. Mills argumenta que a obra de Tolkien opera simultaneamente em dois níveis morais: celebra explicitamente valores universais como amizade e resistência à tirania, mas implicitamente normaliza hierarquias raciais através de sua estrutura cosmológica. Helen Young vai além, identificando o que ela chama de "hábitos de branquitude" no gênero fantástico como um todo – padrões estabelecidos historicamente que facilitam apropriações problemáticas.
"O problema não é que Tolkien era um nazista disfarçado", ela explica. "O problema é que ele criou um mundo onde certas formas de desigualdade parecem naturais, mesmo quando a narrativa superficial prega valores igualitários."
A disputa pelo legado de Tolkien revela tensões mais amplas sobre como sociedades contemporâneas lidam com obras culturais influentes criadas em contextos históricos diferentes. Como observa a especialista em apropriação cultural Yuniya Kawamura,
"a transformação de símbolos culturais é sempre um processo político, onde diferentes grupos competem para estabelecer significados dominantes".
A apropriação de Tolkien insere-se num fenômeno mais amplo que historiadores chamam de "medievalismo weaponizado". Desde o ataque em Charlottesville (2017) até a invasão do Capitólio americano (2021), supremacistas brancos têm usado sistematicamente símbolos medievais – cruzes templários, runas nórdicas, brasões europeus – para promover fantasias de pureza racial.
Dorothy Kim, medievalista da Universidade Brandeis, alerta:
"O passado europeu cristão medieval está sendo weaponizado por grupos extremistas que frequentemente são estudantes universitários". Mary Rambaran-Olm adiciona que "grupos identitários de extrema-direita buscam provar sua ancestralidade superior retratando os anglo-saxões de formas que promovem identidade inglesa e progresso nacional".
O fenômeno não se limita ao mundo anglófono. Estudos documentam apropriações similares de simbologias medievais por movimentos ultranacionalistas em toda a Europa, sempre baseadas numa compreensão historicamente incorreta da Idade Média como período de homogeneidade racial.
A comunidade acadêmica tolkieniana desenvolveu o que Robin Reid chama de "engajamento crítico informado" – uma abordagem que reconhece problemas sem descartar valores, contextualiza limitações históricas sem usá-las como desculpas, e defende ativamente interpretações inclusivas. Emerge uma nova geração de pesquisadores, incluindo muitos estudiosos racializados, que não têm medo de abordar essas questões frontalmente. Helen Young não apenas identifica elementos problemáticos, mas analisa como eles podem ser contextualizados e criticados sem descartar o valor literário do conjunto. Dimitra Fimi oferece uma síntese equilibrada:
"Tolkien era um homem do seu tempo, e seu tempo tinha problemas. Mas ele também transcendeu muitas limitações de sua época e demonstrou capacidade de crescimento".
Sua pesquisa mostra como é possível amar profundamente uma obra reconhecendo simultaneamente suas limitações históricas.
A disputa sobre Tolkien oferece lições cruciais sobre como sociedades democráticas devem lidar com legados culturais complexos numa era de polarização extrema. Primeiro, demonstra que a resposta à apropriação extremista não pode ser nem condenação total nem defesa acrítica, mas engajamento nuançado baseado em evidências históricas. Segundo, revela como grupos organizados podem sistematicamente distorcer obras culturais para fins políticos, processo que exige vigilância e resposta ativa de acadêmicos, educadores e instituições culturais. Como observa a pesquisadora em apropriação cultural Abraham Oshotse:
"a determinação do que constitui apropriação cultural é um processo contextual, moldado pelo ato, pelas pessoas envolvidas e pela identidade dos observadores".
Terceiro, mostra a importância de vozes diversas nos estudos culturais. Como documenta Helen Young, a predominância histórica de perspectivas brancas nos estudos medievais facilitou apropriações problemáticas. A inclusão de estudiosos racializados está produzindo análises mais sofisticadas e resistentes a cooptações extremistas.

Quando J.R.R. Tolkien escreveu que "mesmo a menor pessoa pode alterar o curso da história", dificilmente imaginava que suas palavras se tornariam relevantes numa batalha cultural sobre o próprio significado de sua obra. A tentativa de transformar símbolos de cooperação em emblemas de exclusão representa uma das mais perversas formas de apropriação cultural contemporânea. As evidências históricas são inequívocas: Tolkien pessoalmente rejeitava doutrinas raciais e defendia valores antitéticos ao supremacismo branco. Sua obra, apesar de limitações históricas específicas, promove fundamentalmente a união na diversidade contra forças de divisão e ódio – precisamente o oposto da mensagem extremista.
A resposta adequada não é abandonar esses símbolos aos extremistas, mas reclamá-los ativamente. Como argumenta Sean Astin, "You Are All Welcome Here" – "Vocês São Todos Bem-vindos Aqui" – captura o espírito real da obra muito melhor que qualquer campo político excludente. No final, a disputa pelo legado de Tolkien é uma disputa sobre que tipo de mundo queremos construir: um onde diferenças são motivos para divisão, ou um onde povos diferentes podem trabalhar juntos contra ameaças comuns. Nessa disputa, tanto a biografia quanto a obra de J.R.R. Tolkien oferecem muito mais munição para o segundo tipo de mundo. A batalha pela Terra Média continua. E dessa vez, os verdadeiros defensores de Tolkien são aqueles que defendem inclusão contra exclusão, cooperação contra supremacia, luz contra escuridão.




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