Em 2025, a literatura brasileira será enriquecida com lançamentos significativos da obra de Ariano Suassuna, promovidos pela editora Nova Fronteira. Entre as novidades, destaca-se a edição comemorativa dos 70 anos de "Auto da Compadecida", peça teatral que consolidou Suassuna como um dos principais dramaturgos do país. Publicada originalmente em 1955, a peça ganha agora uma versão especial em capa dura, com arte inédita e ilustrações de Manuel Dantas Suassuna, filho do autor.
Além disso, será lançado "O Pasto Incendiado: Poesia Completa", reunindo pela primeira vez toda a produção poética de Suassuna em um único volume. A coletânea inclui poemas inéditos e raridades, organizados pelo professor doutor Carlos Newton Júnior, que dedicou anos de pesquisa para fixar e contextualizar os textos.
Ariano Suassuna (1927-2014) foi um defensor fervoroso da cultura nordestina, integrando elementos populares e eruditos em sua obra. "Auto da Compadecida" é um exemplo emblemático dessa fusão, combinando humor, crítica social e religiosidade para retratar a vida no sertão nordestino. A peça já foi adaptada para o cinema e a televisão, alcançando grande popularidade.
A publicação de "O Pasto Incendiado" oferece aos leitores a oportunidade de explorar a faceta poética de Suassuna, menos conhecida, mas igualmente rica. A coletânea busca consolidar o nome do autor entre os grandes poetas brasileiros, destacando sua contribuição singular para a literatura nacional.
Esses lançamentos não apenas celebram o legado de Suassuna, mas também reafirmam a relevância de sua obra no cenário contemporâneo. Ao revisitar suas criações, o público tem a chance de refletir sobre a identidade cultural brasileira e a importância de preservar e valorizar as manifestações artísticas regionais.
A editora Nova Fronteira, responsável por essas publicações, tem se dedicado a manter viva a memória de autores clássicos da literatura brasileira, oferecendo edições cuidadosas e acessíveis ao público. A edição comemorativa de "Auto da Compadecida" e a coletânea poética "O Pasto Incendiado" são testemunhos desse compromisso com a cultura nacional.
Para os admiradores de Ariano Suassuna e para novos leitores, 2025 se apresenta como um ano de redescoberta e celebração de uma obra que continua a inspirar e emocionar, refletindo a alma e a resistência do povo brasileiro.
Entre o Regional e o Universal: uma Odisseia Literária que redefine o sertão, a memória e o pertencimento"
Por: Raul Silva - Radar Literário e Podcast Teoria Literária
Especialista em Língua Portuguesa e suas Literaturas
Capa O Jumento e o Carcará - Samuel Freitas - Editora Danúbio
A estreia literária de Samuel Freitas com "O Jumento e o Carcará" posiciona-se como um marco significativo na literatura contemporânea brasileira, resgatando e transfigurando a vivência sertaneja em uma linguagem que alia profundidade filosófica e rigor estilístico. Em sua obra, Freitas constrói uma narrativa que transcende a mera descrição paisagística ou o registro etnográfico, explorando com sofisticada sutileza as nuances existenciais e culturais do Nordeste. Dialogando com a tradição literária consagrada por nomes como Ariano Suassuna e Graciliano Ramos, a coletânea oferece ao leitor um convite a uma reflexão complexa e envolvente sobre a identidade, a memória e o pertencimento.
Entre os contos que compõem a obra, destacam-se "O Jumento e o Carcará", "Cheiro de Cigarro" e "Uma Pipa". Cada um deles não apenas enriquece o tecido narrativo do livro, mas também exemplifica a competência do autor em articular elementos regionais e universais em uma prosa literariamente refinada. Mais do que simples narrativas, esses contos são verdadeiros microcosmos que encapsulam o ethos nordestino ao mesmo tempo em que dialogam com questões universais, como existência, liberdade e memória.
"O Jumento e o Carcará": Alegoria e transcendência no sertão
No conto que empresta o título à coletânea, Samuel Freitas realiza uma verdadeira operação alegórica ao explorar o diálogo entre um jumento e um carcará.Nessa interação antropomórfica, os personagens encarnam aspectos profundos da condição humana – resignação, ironia, sobrevivência e transcendência. A abertura do conto evoca, com um rigor descritivo quase pictórico, a dureza da paisagem sertaneja:
"Céu abrasador. Dava para sentir a imensidão da cratera na camada de ozônio. No solo ressequido, era desoladora a fotografia panorâmica: uma fornalha que chegava a distorcer a linha dum horizonte sem fim".
A riqueza imagética dessa descrição introduz o leitor a uma ambiência que é tanto real quanto metafísica. Ao longo do conto, o jumento e o carcará envolvem-se em um diálogo que combina humor, reflexão filosófica e lirismo. O trecho:
"De que um dos antigos, da raça do sinhô, carregou na cacunda o Menino Jesus. É verdade isso?"
Capa O Jumento e o Carcará - Samuel Freitas - Editora Danúbio
Destaca a maneira como Freitas articula temas de transcendência espiritual e historicidade cultural com uma ironia sutil, remetendo à tradição de Ariano Suassuna em "O Auto da Compadecida". Além disso, o conto captura com primor a essência da oralidade nordestina, transformando um diálogo aparentemente simples em um debate profundo sobre sobrevivência e significado.
Outro aspecto notável é como Freitas utiliza o sertão não apenas como um cenário, mas como um personagem ativo, cujas influências moldam as interações dos protagonistas. O carcará, com sua sagacidade, e o jumento, com sua paciência reflexiva, tornam-se arquétipos de forças opostas e complementares que caracterizam a experiência humana em condições adversas.
"Cheiro de Cigarro": A economia emocional das memórias
Neste conto, Freitas abandona o sertão para adentrar o espaço subjetivo das memórias.Por meio do personagem Bruno, o autor examina as dinâmicas sociais e emocionais do consumo e da nostalgia, transformando a infância em um palco para reflexões mais amplas sobre o capitalismo informal e os laços comunitários. A passagem:
"O valor do papel flutuava conforme a quantidade em circulação, de acordo com a oferta gerada pela dependência dos fumantes e a procura de todos os interessados em tê-las"
Demonstra a habilidade de Freitas em elevar o cotidiano às esferas da crítica social e filosófica. Há uma clara reminiscência ao regionalismo de Graciliano Ramos, mas a narrativa aqui adquire um tom mais introspectivo e psicologicamente elaborado, refletindo o peso da herança e das escolhas pessoais.
Freitas também se destaca pela maneira como captura as contradições inerentes à memória: a tensão entre o que foi e o que poderia ter sido. Bruno, ao revisitar fragmentos de sua juventude, encontra-se dividido entre o conforto da nostalgia e a amargura de um passado que ainda o define. Essa dicotomia é explorada em camadas, revelando a maestria do autor em traduzir as complexidades da experiência humana.
"Uma Pipa": Liberdade e esperança em tempos de crise
Com "Uma Pipa", Freitas desloca-se do cenário rural para explorar o isolamento urbano imposto pela pandemia. Miguel, o protagonista, canaliza sua angústia e sua esperança na construção de uma pipa, que, por sua vez, se torna um símbolo de resistência e transcendência. O trecho:
"Uma pipa representaria nessa amplidão azul um fabuloso símbolo... à esperança que se ergueu em meio ao medo".
Revela a dimensão poética e simbólica da narrativa. O conto estabelece um diálogo com as circunstâncias contemporâneas, mas sem perder de vista a dimensão universal dos anseios humanos.
Influências e inovações estéticas
Samuel Freitas demonstra uma compreensão aguda da tradição literária nordestina, mas sua obra não se limita a reproduzí-la. Em vez disso, ele a reinterpreta, incorporando elementos de contemporaneidade que ampliam o alcance temático e estético de seus contos. A influência de Suassuna é evidente no humor e na oralidade, enquanto a de José Lins do Rego se manifesta na exploração das relações humanas e dos ciclos de vida e morte. Contudo, Freitas distingue-se ao integrar esses elementos a uma abordagem mais filosófica e cosmopolita.
A linguagem de Freitas merece destaque: mescla o erudito e o coloquial com um refinamento que respeita as idiossincrasias culturais do Nordeste, mas não hesita em desafiar convenções. Essa tensão entre o popular e o sofisticado confere à obra uma dinâmica singular e inovadora. Além disso, sua habilidade em construir personagens tridimensionais e narrativas que ressoam emocionalmente com o leitor coloca sua obra em um patamar elevado dentro da literatura contemporânea.
Conclusão
"O Jumento e o Carcará" é uma obra que transcende sua aparente simplicidade para se estabelecer como uma contribuição significativa à literatura brasileira contemporânea. Samuel Freitas não apenas celebra a cultura nordestina, mas também a recontextualiza, ampliando suas possibilidades expressivas. Com esta coletânea, Freitas confirma-se como uma voz emergente e essencial, capaz de conectar o regional ao universal com sofisticação e profundidade. Ao explorar temas tão variados quanto existência, liberdade e memória, sua obra não apenas enriquece o repertório literário nacional, mas também oferece ao leitor uma experiência transformadora, que ecoa muito além das páginas do livro.
- Professor de Língua Portuguesa, Colunista do Teoria Literária, Especialista em Literatura, Estudante de Jornalismo e Apresentador do podcast Teoria Literária.
Ariano Suassuna, um dos maiores expoentes da literatura e cultura brasileira, sempre foi um incansável defensor do legado cultural pernambucano.
Ele não apenas deixou sua marca em obras memoráveis, mas também foi celebrado oficialmente no dia 17 de agosto de 2014, quando a Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE) o declarou Patrono da Cultura Pernambucana. Esta homenagem é uma prova da imensa contribuição de Suassuna para a preservação e promoção da identidade cultural do estado.
Nascido em 16 de junho de 1927, na cidade de João Pessoa, Paraíba, Suassuna escolheu Pernambuco como sua casa e ponto de criação artística. Sua obra literária e trajetória pessoal sempre buscaram destacar as tradições do Nordeste, com ênfase no folclore, nas histórias populares e na cultura oral. Sua peça mais celebrada, O Auto da Compadecida, não apenas revolucionou o teatro brasileiro, mas, como ele mesmo afirmou, é uma “defesa do homem nordestino, suas lutas e sua fé”. Através dessa obra, Suassuna mergulha nas raízes culturais da região, dando visibilidade ao sertanejo e ao seu imaginário.
O reconhecimento da ALEPE veio em um momento simbólico, pois a data de 17 de agosto tornou-se um marco não só para Pernambuco, mas para todos os que valorizam a cultura nordestina. Como ressaltou o estudioso Durval Muniz de Albuquerque Júnior:
“Suassuna sempre conseguiu transitar entre a erudição e o popular com maestria, sem nunca perder de vista a necessidade de tornar a cultura acessível ao povo”.
Além de ser um renomado escritor, Suassuna foi um grande ativista pela educação e pela valorização da cultura popular. Ele lutou para que as tradições regionais fossem ensinadas nas escolas e defendia que “o povo deve conhecer sua própria história e valorizar suas origens”. Seus textos misturam o teatro de cordel, a literatura popular e elementos clássicos, criando um estilo único. Como bem observou o crítico literário Antônio Cândido:
“Suassuna é o grande tradutor da alma nordestina, unindo o trágico ao cômico, o popular ao erudito, de maneira magistral.”
A declaração de Suassuna como Patrono da Cultura Pernambucana vai além de uma homenagem. Ela serve como um lembrete constante da importância de preservar nossas raízes culturais em um mundo cada vez mais globalizado, onde, como ele mesmo afirmou, “as tradições correm o risco de desaparecer se não forem defendidas”. Para Suassuna, a cultura era o que definia uma sociedade, e foi através dela que ele ajudou a recriar histórias e valores que conectam gerações.
Em sua obra, ele imortalizou a essência do povo nordestino, como se observa na peça O Santo e a Porca, onde o humor e a sabedoria popular se misturam à crítica social. Ariano Suassuna acreditava que “a cultura popular é a chave para entendermos quem somos”, e essa crença está enraizada em tudo o que produziu.
Neste 17 de agosto, ao celebrarmos Ariano Suassuna, celebramos também a literatura, a música, a dança e, acima de tudo, a oralidade tão querida por ele. Como bem disse sua filha, Mariana Suassuna:
“meu pai via na cultura do povo uma força transformadora, capaz de unir gerações e de perpetuar o que há de mais belo em nossa história”.
Pernambuco, com sua vasta tradição cultural, reflete em cada canto a influência de Suassuna. Ao ser declarado Patrono da Cultura Pernambucana, a ALEPE reafirma o compromisso de preservar esse patrimônio, reconhecendo que a cultura é um bem coletivo. Suassuna deixou um legado que ultrapassa a literatura, alcançando artistas, escritores e intelectuais que seguem inspirados por sua visão.
Que o dia 17 de agosto seja, para sempre, um símbolo da resistência cultural nordestina, onde, como ele próprio dizia, “as vozes do povo sejam sempre ouvidas e celebradas”.
Celebrar Ariano Suassuna é celebrar a identidade cultural do Brasil, a força das narrativas populares e a beleza eterna das tradições nordestinas, que, como em suas palavras, “são a alma vibrante e eterna de nossa nação”.