O julgamento da Ação Penal 2668 iniciado nesta terça-feira, 2 de setembro de 2025, representa um marco histórico na democracia brasileira. Com Jair Bolsonaro e outros sete aliados no banco dos réus por tentativa de golpe de Estado, as falas matinais de Alexandre de Moraes e Paulo Gonet estabeleceram o tom de um processo que pode redefinir os limites da responsabilização política no país.
Plenário da 1ª turma do STF - Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
O Discurso de Soberania de Alexandre de Moraes
Min. Alexandre de Moraes - Foto: Rosinei Coutinho/STF
O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, abriu o julgamento com um discurso que transcendeu os aspectos técnico-jurídicos para assumir uma dimensão claramente política.
Ao afirmar que o STF não aceitará "coação de um Estado estrangeiro" e que será "imparcial e ignorará pressões ao julgar Bolsonaro". Moraes estabeleceu uma narrativa de resistência institucional que ecoa muito além da sala de audiências.
A referência implícita às pressões externas - particularmente dos Estados Unidos sob a administração Trump - revela a consciência do STF sobre a dimensão geopolítica do julgamento. Moraes construiu um discurso de soberania judicial que busca blindar o processo contra interferências diplomáticas, sinalizando que a Corte não recuará diante de pressões internacionais.
O relator também enfatizou que os réus foram submetidos ao devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, prometendo condenação caso haja provas de culpabilidade, mas absolvição se houver "qualquer dúvida razoável".
Esta declaração busca antecipar críticas sobre parcialidade, construindo uma narrativa de lisura processual.
A Estratégia Acusatória de Paulo Gonet
Gonet durante julgamentos da suposta trama golpista - Antonio Augusto/STF
O procurador-geral Paulo Gonet, com até duas horas para apresentar a acusação, centrou sua argumentação na caracterização de uma:
"trama conspiratória armada executada contra as instituições democráticas".
A PGR apresentou uma narrativa cronológica que situa o início do plano golpista em julho de 2021, durante reunião ministerial onde Bolsonaro teria conclamado auxiliares a atacarem o sistema eletrônico de votação.
A estratégia de Gonet revela sofisticação jurídica ao enquadrar os acusados como "núcleo crucial" de uma organização criminosa armada, utilizando a Lei 12.850/2013 que prevê penas mais severas para líderes de organizações criminosas. O procurador-geral conectou os eventos de 8 de janeiro aos planos anteriores, construindo uma linha narrativa de continuidade conspiratória.
Particularmente relevante foi a menção ao "Plano Punhal Verde Amarelo", que visava eliminar Lula, Alckmin e o próprio Alexandre de Moraes. Esta revelação amplifica a gravidade das acusações, transformando o caso de tentativa de golpe em conspiração para assassinato de autoridades.
Dimensão Política e Institucional
O julgamento ocorre em um contexto político complexo, onde a democracia brasileira busca demonstrar sua capacidade de autorregeneração através das instituições. A presença de apenas um réu na sessão inicial - contrastando com a ausência de Bolsonaro e demais acusados - simboliza a distância entre os investigados e o processo que pode determinar seus destinos políticos.
A transmissão ao vivo pela TV e Rádio Justiça demonstra a estratégia de transparência do STF, buscando legitimidade através da publicidade dos atos. Esta escolha política visa neutralizar narrativas de "julgamento às escuras" que poderiam alimentar teorias conspiratórias.
Ministros da 1ª Turma do STF - Montagem - Gustavo Moreno/STF, Antonio Augusto/STF, Fellipe Sampaio/STF, Gustavo Moreno/STF e Gustavo Moreno/STF
A composição da Primeira Turma - com Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino - sugere um colegiado com maioria favorável à condenação, baseando-se nas posições públicas anteriores destes ministros sobre os eventos investigados.
Expectativas para as Defesas
A tarde reserva o momento mais delicado do processo: as sustentações das defesas, com uma hora para cada advogado. As estratégias defensivas provavelmente se concentrarão em três eixos principais:
Questionamento da Materialidade
As defesas devem atacar a caracterização dos atos como tentativa efetiva de golpe, argumentando que se trataram de manifestações políticas legítimas ou exercício do direito de petição. A ausência de uso efetivo da força será provavelmente explorada para descaracterizar a tentativa de "abolição violenta do Estado Democrático de Direito".
Negativa de Organização Criminosa
Espera-se argumentação sobre a inexistência de estrutura hierárquica permanente para práticas criminosas, tentando descaracterizar a organização criminosa armada. As defesas podem alegar que reuniões e conversas constituíram exercício normal de funções governamentais.
Nulidades Processuais
Provável questionamento sobre a imparcialidade de Alexandre de Moraes, dado seu papel anterior como vítima dos supostos planos de assassinato. As defesas podem arguir suspeição ou impedimento do relator.
Cenários Políticos Futuros
A previsão de conclusão do julgamento até 12 de setembro cria uma janela temporal que pode influenciar a dinâmica política nacional. Uma eventual condenação de Bolsonaro consolidaria sua inelegibilidade e redefinira o campo político conservador, fortalecendo candidaturas alternativas dentro da direita.
Por outro lado, uma absolvição - cenário considerado menos provável pelos analistas - poderia fortalecer narrativas de perseguição política e revitalizar o bolsonarismo para 2026.
O julgamento representa, fundamentalmente, um teste de resistência das instituições democráticas brasileiras. O STF busca demonstrar que nem mesmo ex-presidentes estão acima da lei, estabelecendo precedente crucial para a consolidação democrática.
A reação da comunidade internacional, particularmente dos Estados Unidos, será determinante para avaliar o sucesso da estratégia de soberania judicial adotada por Moraes. O Brasil testa sua capacidade de conduzir processos políticos sensíveis sem subordinação a pressões externas.
Este julgamento histórico marca, assim, não apenas o destino judicial de oito acusados, mas o próprio futuro da democracia brasileira e sua capacidade de se defender através das instituições republicanas.
O retrato é célebre: em abril de 1931 Adolf Hitler, ainda a caminho do poder, inclina-se diante de um busto de Friedrich Nietzsche no Nietzsche-Archiv, em Weimar. A imagem — distribuída pela máquina de propaganda do futuro Führer — selava um casamento simbólico entre o filósofo que proclamara “Deus está morto” e o movimento que transformaria a Alemanha numa teocracia racial. Desde então, tornou-se quase senso comum dizer que o autor de Assim Falou Zaratustra foi a inspiração intelectual do nazismo, sobretudo pelo conceito de Übermensch (além-homem ou super-homem). O problema é que nada, nem na biografia nem na obra de Nietzsche, autoriza tal leitura: ele detestava o antissemitismo, ridicularizava o nacionalismo alemão e descreveu o Estado como “o mais frio de todos os monstros”. Como, então, ocorreu tão profunda distorção? A resposta atravessa a ação de sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, o uso que o Terceiro Reich fez de edições manipuladas, e a recente reciclagem digital dessa fraude por extremistas contemporâneos — fenômeno que exige hoje, mais do que nunca, um esforço de resgate filológico e crítico.
Do Arquivo ao Reich — a falsificação de Elisabeth
O golpe decisivo que vinculou Nietzsche ao nazismo não partiu de Berlim, mas de Weimar, onde sua irmã mais velha, Elisabeth Förster-Nietzsche, instalou em 1894 o Nietzsche-Archiv. Nacionalista ardorosa, antissemita confessa e viúva de um agitador que tentara fundar uma colônia “ariana” no Paraguai, Elisabeth assumiu a tutela legal do irmão logo após o colapso mental dele em 1889 e passou a gerir, sozinha, os manuscritos, cartas e cadernos deixados em desordem. Desde o início, o projeto tinha dupla face: preservar a memória familiar e refinar um Nietzsche politicamente útil à nova direita alemã. Ao mesmo tempo em que erguia a casa-museu Villa Silberblick, ela filiava-se ao Partido Nacional do Povo Alemão, um dos berços ideológicos do futuro nazismo, e cultivava relações com editores simpáticos ao pangermanismo.
Elisabeth Förster-Nietzsche
Foi sob esse viés que Elisabeth realizou a intervenção mais profunda sobre a obra do irmão: a publicação, entre 1901 e 1906, de Der Wille zur Macht (A Vontade de Poder) como se fosse o “sistema filosófico” póstumo de Nietzsche. Na realidade, o livro não passava de uma colagem de fragmentos inéditos cujo ordenamento — títulos de seções, recortes, supressões — foi inteiramente produzido pela própria curadora, muitas vezes contraindicado pelo filósofo ainda em vida. Décadas depois, os filólogos Giorgio Colli e Mazzino Montinari, ao confrontar linha por linha os originais, demonstrariam que esse compêndio era uma construção artificial, invertendo a cronologia dos cadernos e amputando passagens em que Nietzsche atacava frontalmente o antissemitismo. A adulteração criava a impressão de um autor engajado numa filosofia da força, pronta para legitimar hierarquias biológicas e violência política — exatamente o que o nacional-socialismo buscaria alguns anos mais tarde.
Não por acaso, em 12 de abril de 1931 Adolf Hitler foi recebido com honras na Villa Silberblick. Fotografado ao lado do busto de Nietzsche, o futuro Führer empunhou a bengala do filósofo enquanto Elisabeth — então com 84 anos — lhe mostrava páginas escolhidas dos manuscritos. O registro foi reproduzido em jornais do partido e transformado em cartão-postal, selando o alinhamento simbólico entre pensamento e regime. Pouco depois, o Ministério da Propaganda encomendou novas reimpressões “oficiais” das obras, prefaciadas por intelectuais nazistas, nas quais o Super-homem aparecia como legitimação da supremacia racial germânica. Estudos recentes demonstram que o Archiv funcionou, na prática, como oficina de material propagandístico: trechos inconvenientes eram suprimidos, enquanto aforismos sobre poder, domínio e “rebanho” abasteciam folhetins ideológicos distribuídos em escolas e quartéis.
O efeito foi devastador e duradouro. Mesmo após 1945, quando o nazismo se tornou sinônimo de barbárie, a associação “Nietzsche = precursor fascista” já havia penetrado enciclopédias, colégios e até manuais de história da filosofia. Embora a edição crítica Colli-Montinari (1967-) tenha desmontado academicamente o mito, ele sobreviveu no senso comum — pronto para ser reciclado, décadas depois, por novas extremas-direitas digitais. Assim, a manipulação de Elisabeth comprovou quão longe uma distorção editorial pode ir quando encontra, primeiro, a passividade dos leitores e, depois, a vontade de poder de um regime disposto a transformar pensamento em slogan.
Memes, 4chan e Bolsonaro — o Super-homem 2.0
O século XXI abriu um novo front para a velha deturpação. Se no passado Elisabeth Förster-Nietzsche precisou manipular cadernos e editores, hoje basta um editor de imagens gratuito e um fórum anônimo para ressuscitar o “Nietzsche nazista”. O processo ganhou força em 4chan — sobretudo no board /pol/ — onde a alt-right (direita alternativa) norte-americana misturou animações de sapos, filtros neon e trilhas de trap para fabricar um Super-homem hipertrofiado, musculoso, branco, que encara o mundo com desprezo cínico. Pesquisadores da Vox já em 2017 apontavam que “a alt-right está bêbada de más leituras de Nietzsche” e que figuras como Richard Spencer se diziam “red-pilled” pelo filósofo, embora o citassem fora de contexto ou inventassem frases inexistentes. O padrão tornou-se claro: recorta-se meia linha sobre “a morte de Deus” ou um epigrama contra “moral de rebanho”, cola-se sobre a foto de um guerreiro viking desenhado por IA e o meme está pronto para circular como prova de que Nietzsche estaria do lado dos supremacistas.
Memes bolsonaristas utilizando-se da figura do Super-homem
Esse ecossistema memético ganhou nova camada em 2024, quando a rede de pesquisas GNET mapeou o uso de geradores de imagem para sofisticar a estética da extrema-direita: avatars produzidos por IA ostentam runas nórdicas, referências ao “Grande Substituição” e, claro, slogans atribuídos a Nietzsche que ele jamais escreveu. A lógica — apontam os autores do relatório — é inundar o feed com símbolos de força e fatalismo, transformando a filosofia em linguagem gráfica digerível em segundos. Nesse ambiente, a distinção entre citação autêntica e frase inventada torna-se irrelevante; o que importa é o “efeito aura”, a sensação de se apoiar em um clássico para justificar misoginia, racismo ou violência política. O resultado é um “Nietzsche fast-food”: sem leitura, sem contexto, mas com alto teor calórico de ódio.
O Brasil entrou nesse circuito por vias bolsonaristas. A partir de 2018, páginas de apoio ao então candidato Jair Bolsonaro exportaram o template americano: o Super-homem vira o “cidadão de bem armado”, contraposto ao “NPC petista”. Estudo de doutorado da UFMG sobre dessubjetivação memética mostrou que perfis conservadores replicaram, em português, montagens de 4chan acrescentando legendas como “A virtude está com os fortes — Nietzsche” para defender fechamento do Congresso ou tiros em criminosos (os posts, claro, omitem que Nietzsche chamava o Estado de “monstro frio”). Paralelamente, investigações do Conselho Nacional de Direitos Humanos registram que células neonazistas no país cresceram 270 % entre 2019 e 2024; os monitoramentos identificaram grupos de Telegram onde trechos falsos de Nietzsche são usados para legitimar supremacismo branco e antissemitismo. Nesse ambiente, referências ao filósofo aparecem lado a lado com símbolos de SS, cruzes célticas e hashtags em defesa de “intervenção militar já”, reforçando a fusão entre culto à força e negacionismo histórico.
O fenômeno não se limita a nichos radicais: influenciadores com centenas de milhares de seguidores no YouTube e no Instagram citam supostos aforismos de Nietzsche — “os fracos devem servir aos fortes”, “pena é vício dos derrotados” — para vender cursos de masculinidade “alfa” ou comentar política nacional. Em editorial de 2018, a Los Angeles Times já alertava que a direita radical não está sozinha nessa apropriação simplista, mas certamente a dirige ao público mais vulnerável à retórica do ressentimento. No Brasil, o algoritmo das plataformas impulsiona esse conteúdo: quanto mais polêmica a frase, maior o engajamento; quanto mais engajamento, maior a difusão da distorção. Assim nasce o Super-homem 2.0 — um produto pop de consumo rápido, vitaminado por IA, traduzido em likes e compartilhamentos, que vende falsa erudição a serviço da intolerância. Desmontar esse ciclo exige devolver Nietzsche ao texto — e lembrar, como ressalta a ABC News australiana, que ele era crítico feroz de qualquer “política de sangue e ferro”. Até lá, a batalha seguirá não apenas nas bibliotecas, mas nas timelines onde o pensamento vira sticker em poucos pixels.
Leituras críticas e o retorno ao texto
O primeiro grande antídoto contra a fraude nazista surgiu nos anos 1960, quando Giorgio Colli e Mazzino Montinari decidiram reexaminar, folha a folha, os 5 000 manuscritos de Nietzsche guardados no Goethe-Schiller-Archiv, em Weimar. Eles descobriram não apenas cortes, inversões cronológicas e enxertos feitos por Elisabeth, mas também que o livro A Vontade de Poder — vendido por décadas como “testamento filosófico” — jamais existira no plano do autor. O resultado foi a Edição Crítica Colli–Montinari, publicada em italiano, francês, alemão e, desde 2023, em inglês pela Stanford University Press — “a primeira tradução completa, anotada e verificada a partir dos originais”, como sublinha a própria editora . Ao desmontar a montagem póstuma, Colli e Montinari recolocaram o Super-homem no seu leito de origem: não um soldado racial, mas a metáfora de uma humanidade que cria valores depois da “morte de Deus”.
Friedrich Nietzsche. Edvard Munch, 1906
Cinco décadas depois, o movimento filológico ganhou musculatura digital. O portal Nietzsche Source, coordenado pelo pesquisador italiano Paolo D’Iorio, disponibiliza online mais de 8 000 fac-símiles de cadernos, cartas e raridades, além de um aparato crítico comparável às edições impressas. Ali, qualquer leitor pode confrontar a frase duvidosa que viu num meme com a caligrafia original do filósofo em poucos cliques. A iniciativa conecta-se a projetos como “Nietzsche’s Library”, que digitaliza todos os livros anotados pelo autor, e a revistas acadêmicas em open access — a Nietzsche-Studien, por exemplo, migrou para acesso gratuito em 2022, difundindo pesquisas sem barreira de paywall (muro de pagamento). O efeito combinado é poderoso: pela primeira vez, o público leigo dispõe de ferramentas para verificar, em tempo real, se a suposta citação sobre “exterminar os fracos” existe ou é produto de má-fé.
Enquanto a filologia limpa a base textual, novas interpretações devolvem vitalidade filosófica ao Super-homem. No Brasil, o professor Oswaldo Giacoia Jr. — referência nacional em Nietzsche — insiste, em cursos e entrevistas, que o “super-homem” não é dono de escravos, mas artista de si: alguém que transforma a vida em obra inacabada, aberta ao devir. Na África, Achille Mbembe emprega a crítica nietzschiana ao ressentimento para compreender a violência colonial e imaginar “devenires” pós-hegemônicos Pesquisadoras feministas e queer, como Judith Butler, dialogam com a performatividade nietzschiana para pensar os corpos como palcos de criação de sentido; artigos recentes em New Nietzsche Studies mostram o quanto essa leitura desmonta pretensões essencialistas de gênero. Ao cruzarem Nietzsche com decolonialidade, estudos de raça e teoria de gênero, esses autores demonstram que o filósofo pode servir à emancipação — exatamente o oposto da narrativa supremacista que o reduz a porta-voz da brutalidade.
Por fim, cresce uma camada de extensão pública que envolve clubes de leitura, podcasts, canais de YouTube e perfis de TikTok dedicados a verificar “Nietzsche ou fake?”. Livrarias independentes promovem noites de leitura de aforismos com cotejo ao Nietzsche Source; o projeto “Café com Nietzsche”, por exemplo, transmite debates ao vivo para milhares de usuários de 18 a 60 anos, repassando passo a passo como checar um fragmento antes de repostá-lo. Essas iniciativas convergem com a cultura de fact-checking: coletivos de educação midiática já incluem “teste do fac-símile” entre as oficinas para o ensino médio, mostrando que a filosofia também precisa de letramento informacional. Ao mesmo tempo, a chegada das novas traduções críticas ao mercado de língua portuguesa promete reduzir a dependência de compilações duvidosas, oferecendo texto limpo, notas contextuais e índices que facilitam a navegação intergeracional.
Nesse cruzamento de filologia, humanidades digitais e engajamento público, o Super-homem recupera seu sentido original de “além-do-homem” — um convite a superar ressentimentos e criar futuros, não a regressar a hierarquias fósseis. E, quanto mais leitores tiverem acesso ao manuscrito tal como Nietzsche o escreveu, menor será o espaço para que a extrema-direita continue ventriloquizando o filósofo que, ironicamente, chamou o nacionalismo de “doença infantil dos povos modernos”.
Conclusão
A saga do super-homem que nunca foi nazista revela a facilidade com que a política sequestra conceitos filosóficos para vestir velhas certezas com roupa de ideia nova. Do arquivo manipulado por uma irmã ambiciosa aos laboratórios de memes da alt-right, o Super-homem virou logotipo ideológico — enquanto o Nietzsche real segue conclamando à criação de valores sempre provisórios, avessos a toda tirania.
Resgatá-lo não é apenas um exercício de justiça histórica; é defesa do pensamento crítico num tempo de slogans virais. Como o próprio Nietzsche avisou, “as convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”. Entender quem deturpa essas palavras — e por quê — é o primeiro passo para que elas voltem a significar exatamente o que ele pretendia: liberdade diante de todas as servidões, inclusive as que falam em seu nome.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
SILVA, João Henrique da. Dessubjetivação Memética: a disputa pelo sentido político nas redes brasileiras 2018-2022. 2024. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2024.
SOUTHERN POVERTY LAW CENTER. Hate on Display: Explaining Extremist Symbols and Ideologies. Montgomery, 2022. Disponível em: https://www.splcenter.org/hate-symbols. Acesso em: 5 jul. 2025.
STANFORD UNIVERSITY PRESS (org.). The Complete Works of Friedrich Nietzsche. Tradução de Adrian Del Caro et al. Stanford: SUP, 2023-.