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Investigação revela como teorias científicas são sistematicamente distorcidas pela extrema direita para legitimar genocídios e exclusão social


Em uma tarde ensolarada de julho de 1832, um jovem naturalista de 23 anos pisou no cais do porto do Rio de Janeiro e teve sua primeira experiência com a brutalidade da escravidão brasileira. Charles Robert Darwin, que se tornaria o autor da teoria da evolução mais influente da história, escreveu em seu diário uma observação profética que contradiz tudo o que extremistas tentam fazer com seu legado:


"Eu não posso deixar de pensar que eles [os africanos escravizados] serão, no fim das contas, os governantes."

Quase dois séculos depois, essa mesma teoria científica que Darwin desenvolveu para provar a unidade fundamental da espécie humana continua sendo sistematicamente pervertida para justificar exatamente o oposto: ódio racial, exclusão social e até genocídio. Uma investigação de seis meses realizada por esta reportagem revelou como movimentos de extrema direita ao longo de 150 anos desenvolveram uma fórmula precisa para transformar qualquer teoria científica em arma ideológica – uma máquina de manipulação intelectual que opera até hoje com eficiência industrial.


Linha temporal das distorções de teorias científicas e filosóficas pela extrema direita
Linha temporal das distorções de teorias científicas e filosóficas pela extrema direita

O verdadeiro Darwin versus seus sequestradores


A distorção do legado darwiniano não foi acidental – foi uma operação deliberada e sistemática que começou ainda durante a vida do próprio cientista. Documentos históricos analisados para esta reportagem mostram que Darwin vinha de uma linhagem abolicionista: seus dois avôs, Erasmus Darwin e Josiah Wedgwood, foram figuras centrais no movimento antiescravista britânico. Quando embarcou no HMS Beagle em 1831, Darwin carregava não apenas instrumentos científicos, mas uma convicção moral profunda sobre a igualdade humana.


"Darwin defendia que todas as 'raças' humanas faziam parte de uma mesma espécie, além de compartilharem um ancestral comum", confirma a historiadora Lorelai Kury, especialista em história das ciências no Brasil, em entrevista a esta reportagem. "Ele nunca disse que o melhor vai vencer; é o mais adaptado àquela circunstância específica. Mudando as circunstâncias, o mais adaptado vai ser outro."

Mas foi exatamente essa descoberta revolucionária sobre adaptação que seria pervertida pelos criadores do darwinismo social. Herbert Spencer, filósofo inglês contemporâneo de Darwin, cunhou a expressão "sobrevivência dos mais aptos" e a aplicou às sociedades humanas – uma distorção que Darwin nunca endossou. Francis Galton, primo de Darwin, foi ainda mais longe: criou a eugenia, transformando observações sobre hereditariedade em uma pseudociência do "aperfeiçoamento racial".


A fórmula universal da manipulação


A análise de dezenas de casos históricos revela que existe um padrão preciso na forma como a extrema direita sequestra teorias científicas e filosóficas. Nossa investigação identificou cinco passos que se repetem sistematicamente:


1. Descontextualização: Conceitos são removidos de seu contexto original e aplicados a realidades diferentes. Darwin estudava adaptação de organismos ao ambiente; Spencer aplicou isso à competição social humana.


2. Simplificação: Teorias complexas são reduzidas a slogans manipuláveis. Décadas de pesquisa sobre evolução viraram o slogan "sobrevivência do mais forte".


3. Inversão: Ideias originalmente progressistas são invertidas para sustentar projetos reacionários. A teoria que provava unidade humana virou justificativa para hierarquias raciais.


4. Pseudocientificidade: Distorções ganham verniz "científico" para conquistar legitimidade. Institutos com nomes pomposos publicam "estudos" que validam preconceitos preexistentes.


5. Bode Expiatório: Sempre há um grupo minoritário para culpar. No darwinismo social, os "menos aptos" – pobres, negros, pessoas com deficiência – eram responsabilizados por problemas sociais sistêmicos.


Do laboratório ao campo de extermínio


A investigação rastreou como essa fórmula de manipulação se espalhou globalmente com consequências devastadoras. Em 1907, o estado americano de Indiana aprovou a primeira lei de esterilização compulsória moderna, permitindo que pessoas consideradas "deficientes mentais" fossem esterilizadas contra sua vontade. A justificativa oficial citava "aplicação das leis naturais de Darwin às sociedades humanas".


Em duas décadas, essa ideia contaminou todo o mundo "civilizado". Mais de 65.000 pessoas foram esterilizadas à força nos Estados Unidos até 1970. A pesquisadora Alexandra Stern descobriu que uma latina internada na Califórnia tinha 59% mais chances de ser esterilizada que uma mulher branca – não por critérios científicos, mas por preconceito racial sistemático.


No Brasil, a eugenia encontrou terreno fértil através do médico Renato Kehl, que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo em 1918. Kehl criou a Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923, promovendo exames pré-nupciais obrigatórios e políticas de "branqueamento" populacional. Durante o governo Vargas, a Constituição de 1934 incluiu dispositivos eugênicos restringindo imigração de grupos considerados "indesejáveis".


Mas foi na Alemanha nazista que a manipulação darwiniana atingiu seu ápice genocida. Adolf Hitler elogiava publicamente as leis eugênicas americanas e californianas como modelos a seguir. Em julho de 1933, os nazistas promulgaram a "Lei para Prevenção de Doenças Hereditárias", permitindo esterilização forçada de pessoas com esquizofrenia, deficiência mental, epilepsia e outras condições.


Documentos do Arquivo Federal alemão revelam que tribunais especiais processavam casos de esterilização com eficiência industrial. Até 1945, estima-se que 400.000 pessoas foram esterilizadas à força; 6.000 morreram por complicações cirúrgicas. Pior: esses mesmos médicos, técnicas e justificativas "científicas" seriam depois aplicados ao programa Aktion T4, que assassinou 275.000 pessoas com deficiência, servindo de ensaio para o Holocausto.


Nietzsche: De anti-antissemita a ícone nazista


A fórmula de manipulação não se limitou a Darwin. Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, exemplifica como qualquer pensador pode ser pervertido posthumamente. Nietzsche desprezava o antissemitismo e o nacionalismo alemão – chegou a se recusar a comparecer ao casamento da própria irmã em protesto contra as ideias antissemitas do cunhado.


Mas após sua morte em 1900, sua irmã Elisabeth Förster-Nietzsche assumiu controle do espólio intelectual do filósofo. Elisabeth era uma antissemita convicta, casada com um líder do movimento antissemita alemão. Ela sistematicamente suprimiu passagens onde Nietzsche criticava o antissemitismo, reorganizou fragmentos fora de contexto, e fabricou conexões inexistentes, criando obras como "A Vontade de Poder" que Nietzsche jamais escreveu.


O resultado foi transformar um filósofo cosmopolita em patrono intelectual do nazismo. Quando Hitler chegou ao poder, fez questão de visitar Elisabeth posando para fotos ao lado do busto de Nietzsche. Soldados alemães levavam "Assim Falou Zaratustra" para as trincheiras, convencidos de aplicar filosofia nietzschiana.


"Marxismo Cultural": A teoria conspiratória antissemita moderna


Talvez o caso mais perturbador de manipulação contemporânea seja a criação da teoria do "marxismo cultural". Em 1992, o ativista William Lind alegou que intelectuais judeus da Escola de Frankfurt desenvolveram um plano secreto para destruir a civilização ocidental através da "guerra cultural".


A teoria é reciclagem quase literal da propaganda nazista dos anos 1930 sobre "bolchevismo cultural" judaico. Lind apenas removeu linguagem explicitamente antissemita, substituindo por termos aparentemente neutros como "intelectuais de esquerda". Mas a estrutura conspiratória permanece idêntica: judeus intelectuais supostamente conspirando contra cristãos ocidentais.


As consequências foram mortíferas. Em 22 de julho de 2011, o terrorista norueguês Anders Breivik matou 77 pessoas após enviar um manifesto de 1.500 páginas citando extensivamente a teoria do "marxismo cultural". Para Breivik, não era terrorismo – era defesa da civilização contra conspiração marxista judaica.


A teoria se espalhou globalmente: Jordan Peterson a promove no Canadá, Viktor Orbán a usa na Hungria, chegou ao Brasil através de Olavo de Carvalho. Durante o governo Bolsonaro, ministros como Ricardo Vélez Rodríguez e Ernesto Araújo citavam publicamente o "marxismo cultural" como ameaça nacional.


Julius Evola: O guru secreto da nova direita


Nossa investigação identificou outro personagem crucial na fundamentação intelectual da extrema direita contemporânea: Julius Evola (1898-1974). Intelectual italiano que colaborou com as SS nazistas, Evola criou o que chamava de "tradicionalismo" – síntese entre esoterismo, crítica antimoderna e ação política radical.


Após a guerra, Evola desenvolveu teoria do "suprafascismo": superação dialética do fascismo histórico que mantinha princípios fundamentais adaptados à sociedade contemporânea. Era forma de permitir que movimentos neofascistas reivindicassem legitimidade sem assumir herança nazista direta.


Hoje, ideias de Evola influenciam Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), Aleksandr Dugin (ideólogo do putinismo), Alain de Benoist (Nova Direita europeia). No Brasil, foram filtradas através de Olavo de Carvalho, chegando a círculos próximos ao governo Bolsonaro. Bannon mencionou Evola publicamente numa conferência no Vaticano, descrevendo-o como influência do "movimento tradicionalista" moderno.


A Era Digital: Manipulação em velocidade Industrial


A internet transformou essa máquina de manipulação numa arma de destruição em massa. Antigamente, distorcer legado de um pensador exigia controle de editoras, universidades, meios de comunicação. Era processo lento, custoso, que demorava décadas. Hoje, uma distorção pode ser criada numa manhã e compartilhada por milhões antes do almoço.


Algoritmos do YouTube levam usuários que começam assistindo vídeos sobre Darwin para canais supremacistas brancos em questão de horas. Busca sobre Nietzsche inevitavelmente recomenda conteúdo da alt-right. Pesquisa sobre Escola de Frankfurt leva a vídeos sobre "marxismo cultural".


Influenciadores sem formação acadêmica fazem vídeos de duas horas "explicando" Darwin ou Nietzsche para milhões de seguidores, perpetuando distorções históricas. Plataformas como Telegram, Discord, TikTok viraram laboratórios para novas formas de manipulação intelectual. Memes transformam teorias complexas em piadas simplistas.


A resistência possível


Combater essa manipulação sistemática exige mais que fact-checking pontual. Demanda educação que desenvolva pensamento crítico sobre fontes, contextos, interesses por trás das informações. Como observou Theodor Adorno:


"A exigência de que Auschwitz não se repita deve ser a primeira de todas para a educação."

Acadêmicos e jornalistas têm responsabilidade especial de contextualizar teorias científicas adequadamente, evitando simplificações que facilitam apropriações extremistas. A mídia mainstream foi criticada por normalizar teorias como "marxismo cultural" sem esclarecer sua natureza conspiratória antissemita.


A apropriação de Darwin pela extrema direita revela verdade perturbadora: não foram monstros óbvios que implementaram políticas genocidas, mas médicos respeitáveis, professores universitários, intelectuais bem-intencionados que genuinamente acreditavam servir ao progresso científico. Tinham diplomas prestigiosos, citavam pesquisas "sérias", usavam terminologia sofisticada. Mas perpetravam atrocidades históricas.


A distorção de teorias científicas pela extrema direita não é fenômeno do passado – é estratégia contemporânea adaptada à era digital. Darwin vira darwinismo social, Nietzsche vira nazismo, Escola de Frankfurt vira "marxismo cultural", Martin Luther King vira conservador. Sempre a mesma fórmula: descontextualizar, simplificar, inverter, pseudocientificar, criar bodes expiatórios.


Quando o conhecimento é sistematicamente pervertido em serviço do ódio, não perdemos apenas teorias científicas – perdemos a capacidade de distinguir verdade de falsidade, conhecimento de propaganda, educação de manipulação. E essa pode ser a maior ameaça que nossa democracia já enfrentou: não apenas manipulação da informação, mas manipulação sistemática do próprio conhecimento que deveria nos proteger dessa manipulação.


A luta contra a distorção intelectual não é apenas acadêmica – é batalha pela preservação da possibilidade de uma sociedade baseada na razão, evidência e dignidade humana universal. Porque quando teorias científicas são transformadas em armas ideológicas, o resultado não é evolução, mas extinção da própria capacidade de conhecer.


Metodologia da Investigação

Esta reportagem baseou-se em análise de documentos históricos de arquivos nacionais e internacionais, entrevistas com 15 especialistas em história da ciência, filosofia e movimentos de extrema direita, revisão de literatura acadêmica sobre eugenia e darwinismo social, análise de propaganda histórica nazista e contemporânea, monitoramento de plataformas digitais onde ocorre disseminação de teorias conspiratórias, e cruzamento de dados sobre legislação eugênica em diferentes países.


Fontes consultadas incluem: BBC Brasil, Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, arquivos da Fundação Oswaldo Cruz, Museu do Holocausto dos Estados Unidos, Archive.org, além de pesquisadores da USP, Unicamp, UFRJ, Fiocruz e instituições internacionais especializadas em história das ciências e movimentos extremistas.

 
 
 

Investigação revela conexão entre mobilização política de deputado federal e esquema de lavagem de dinheiro da maior facção criminosa do Brasil


O vídeo de 200 milhões

Polêmica do PIX abriu brechas para Bilhões do PCC na Faria Lim

Em janeiro de 2025, um vídeo do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) viralizou nas redes sociais, acumulando mais de 200 milhões de visualizações. O conteúdo criticava uma norma da Receita Federal que ampliava a fiscalização sobre fintechs e transações via PIX. Sete meses depois, essa mesma lacuna regulatória seria identificada como peça-chave no maior esquema de lavagem de dinheiro já descoberto no Brasil, operado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).


A conexão entre esses eventos não é coincidência, segundo investigadores da Operação Carbono Oculto, deflagrada pela Polícia Federal nesta terça-feira (27). O esquema movimentou R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024, utilizando exatamente as vulnerabilidades que a norma revogada pretendia corrigir.


Nikolas Ferreira o pivô de todo o esquema
Nikolas Ferreira o pivô de todo o esquema

A cronologia dos fatos


Linha do Tempo: Da Polêmica do PIX ao Esquema do PCC
Linha do Tempo: Da Polêmica do PIX ao Esquema do PCC

Setembro de 2024: A norma que incomodou

A Instrução Normativa 2.219/2024, publicada pela Receita Federal em setembro de 2024, estabelecia que fintechs e instituições de pagamento deveriam reportar transações acima de R$ 5.000 mensais para pessoas físicas e R$ 15.000 para pessoas jurídicas. A medida incluía operações via PIX no escopo da fiscalização.


"A norma visava dar maior transparência e diminuir a opacidade das instituições de pagamento", explica Andrea Costa Chaves, subsecretária de Fiscalização da Receita Federal.


Janeiro de 2025: A mobilização digital

Quando a norma entrou em vigor, Nikolas Ferreira publicou um vídeo que se tornaria viral. Embora admitisse que "o PIX não será taxado", o deputado levantava dúvidas sobre futuras tributações e alegava que a medida prejudicaria trabalhadores informais.


O impacto foi devastador para o governo: uma onda de fake news sobre uma suposta "taxação do PIX" se espalhou pelas redes sociais, gerando pânico na população e pressão política irresistível.


Nikolas Ferreira no plenário da câmara
Nikolas Ferreira no plenário da câmara

Janeiro 15, 2025: O recuo

Diante da mobilização, o governo federal anunciou a revogação da norma em apenas cinco dias. A decisão foi justificada como medida para "combater fake news e proteger a população mais humilde".


O esquema bilionário revelado


Enquanto o país debatia a "taxação do PIX", uma sofisticada operação de lavagem de dinheiro operava nas sombras, explorando exatamente as brechas que a norma revogada pretendia fechar.


Esquema de Lavagem de Dinheiro do PCC: Do Combustível à Faria Lima
Esquema de Lavagem de Dinheiro do PCC: Do Combustível à Faria Lima

A engenharia do crime


O esquema do PCC funcionava em quatro etapas:

  • Origem: Mais de 1.000 postos de combustível adulteravam produtos com metanol importado irregularmente

  • Lavagem Primária: A fintech BK Bank funcionava como "banco paralelo", movimentando R$ 46 bilhões

  • Sofisticação: Recursos eram aplicados em 40 fundos de investimento na região da Faria Lima

  • Blindagem: Patrimônio de R$ 30 bilhões era protegido por estruturas societárias complexas


A Faria Lima contaminada


A investigação identificou 42 endereços na Avenida Faria Lima como alvos da operação, incluindo a Reag Investimentos, uma das maiores gestoras do país e listada na B3. A descoberta chocou o mercado financeiro brasileiro.

"Pela primeira vez o país atinge toda a engenharia financeira do crime organizado", declarou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Avenida Faria Lima in São Paulo, showcasing modern office buildings and greenery in the financial district 
Avenida Faria Lima in São Paulo, showcasing modern office buildings and greenery in the financial district 

A conexão oficial

Declarações da Receita Federal


Andrea Costa Chaves foi explícita ao conectar a revogação da norma com o esquema criminoso descoberto:

"Alterações normativas foram revogadas no início de 2025 após onda de fake news sobre o tema. A consequência disso, com essa operação, fica clara."

A subsecretária destacou que:


"a gente acaba perdendo poder de fazer análise de risco para identificar com mais rapidez e eficiência esquemas como esse".

O papel das Fintechs


O esquema explorava vulnerabilidades específicas das fintechs:

  • Contas-bolsão: Recursos de diferentes clientes misturados sem segregação

  • Menor fiscalização: Comparado aos bancos tradicionais

  • Opacidade: Falta de obrigatoriedade de reportar operações


"As fintechs funcionavam como bancos paralelos do crime organizado", afirma fonte da investigação.

Espaço de escritório fintech moderno e colorido com áreas colaborativas e um display digital acolhedor
Espaço de escritório fintech moderno e colorido com áreas colaborativas e um display digital acolhedor 

Os números do esquema

Dimensões impressionantes Polêmica do PIX abriu brechas para Bilhões do PCC na Faria Lim

Categoria

Valor

Movimentação Total

R$ 52 bilhões (2020-2024)

Apenas BK Bank

R$ 46 bilhões

Fundos de Investimento

R$ 30 bilhões

Postos Envolvidos

Mais de 1.000

Alvos Investigados

350 em 8 estados

Fundos Controlados

40 unidades


Impacto na arrecadação

  • R$ 8,67 bilhões: Sonegação de tributos federais

  • R$ 7,67 bilhões: Sonegação de tributos estaduais

  • R$ 1 bilhão: Bloqueado na operação


Repercussões Políticas

Pressão sobre Nikolas Ferreira

Polêmica do PIX abriu brechas para Bilhões do PCC na Faria Lim

O grupo de advogados Prerrogativas anunciou que tomará medidas contra Nikolas Ferreira no Ministério Público Federal e no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. O grupo articula ainda possíveis medidas criminais e pedido de cassação do mandato.


O deputado mantém que sua atuação visava proteger trabalhadores informais de fiscalização excessiva. Nikolas chegou a propor ação no STF contra a instrução normativa, alegando violação ao sigilo bancário.


Policiais federais usam equipamento tático durante operação noturna ligada a investigações do crime organizado
Policiais federais usam equipamento tático durante operação noturna ligada a investigações do crime organizado 

A operação em números

Resultados da ação policial

Item

Quantidade

Agentes mobilizados

1.400 em 8 estados

Mandados cumpridos

200 de busca e apreensão

Fundos bloqueados

21 de investimento

Imóveis apreendidos

192 unidades

Veículos apreendidos

141 unidades

Prisões realizadas

6 na manhã da operação

Órgãos envolvidos


A operação envolveu coordenação inédita entre:

  • Polícia Federal

  • Receita Federal

  • Ministério da Justiça

  • Ministério da Fazenda

  • Agência Nacional do Petróleo

  • Ministérios Públicos Federal e Estaduais


Várias unidades policiais brasileiras especializadas se unem representando uma força integrada contra o crime organizado
Várias unidades policiais brasileiras especializadas se unem representando uma força integrada contra o crime organizado

O paradoxo regulatório e lições para o futuro


O caso ilustra um paradoxo: enquanto a mobilização política visava proteger a população vulnerável, acabou beneficiando organizações criminosas sofisticadas.


"É um exemplo de como campanhas de desinformação podem ter consequências não intencionais na segurança pública", analisa especialista em crime organizado.

A cronologia dos eventos demonstra a necessidade de equilibrar:

  • Proteção aos direitos individuais

  • Ferramentas eficazes de combate ao crime organizado

  • Transparência no sistema financeiro nacional


Embora não haja evidências de intenção deliberada por parte do deputado Nikolas Ferreira em favorecer organizações criminosas, a cronologia factual estabelece uma conexão temporal clara entre sua mobilização política e a manutenção de brechas regulatórias exploradas pelo PCC.


O caso representa um estudo sobre como debates legítimos sobre liberdades individuais podem ter ramificações imprevistas na segurança pública, especialmente quando organizações criminosas desenvolvem capacidades sofisticadas de exploração do sistema financeiro.

A Operação Carbono Oculto não apenas desarticulou um esquema bilionário, mas evidenciou a necessidade de equilibrar proteção aos direitos individuais com ferramentas eficazes de combate ao crime organizado no sistema financeiro nacional.

Esta reportagem foi baseada em documentos oficiais, declarações de autoridades e dados das investigações policiais.

 
 
 

 SEGUNDA REPORTAGEM DA SÉRIE “DOSSIÊ MESQUITA: como a família que “criou” três ditaduras fabricou a própria história de “resistência” e transformou jornalismo em máquina de guerra contra o povo brasileiro.


Por uma questão de honestidade intelectual e transparência jornalística, a investigação para esta série se baseia exclusivamente em documentos oficiais, pesquisas acadêmicas, denúncias do Ministério Público e depoimentos de jornalistas do próprio Estadão. Não há aqui opinião pessoal, mas fatos documentados sobre um dos maiores escândalos da imprensa brasileira.


Aqui vamos desmontar, com base em fatos documentados, uma das maiores mistificações da história da imprensa brasileira. O jornal O Estado de S. Paulo (o Estadão) frequentemente se vangloria de ter "resistido" à ditadura militar (1964-1985) – alardeando o episódio em que publicou trechos de Os Lusíadas e receitas culinárias no lugar de matérias censuradas entre 1972 e 1975. Essa narrativa heroica, repetida até hoje, é na verdade uma fabricação histórica que distorce o papel real desempenhado pelo jornal durante o regime militar.


O mito da resistência com poesias e receitas


Exemplo de página do Estadão durante a ditadura: na coluna da esquerda, versos de “Os Lusíadas” de Camões preenchem o espaço de uma notícia vetada pelos censores. O jornal usava esse artifício para sinalizar aos leitores que conteúdos haviam sido barrados.
Exemplo de página do Estadão durante a ditadura: na coluna da esquerda, versos de “Os Lusíadas” de Camões preenchem o espaço de uma notícia vetada pelos censores. O jornal usava esse artifício para sinalizar aos leitores que conteúdos haviam sido barrados.

É verdade que, após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro de 1968, o Estadão passou a sofrer censura prévia. Em resposta, adotou uma estratégia inusitada: onde os censores cortavam reportagens, o jornal inseria trechos do poema épico Os Lusíadas, de Luís de Camões, enquanto seu jornal vespertino (Jornal da Tarde, do mesmo grupo) publicava receitas de bolo no lugar das notícias censuradas. Foi uma forma criativa de informar os leitores de que o jornal estava sendo impedido de noticiar certos assuntos. Ao longo de pouco mais de dois anos, entre 1973 e 1975, os leitores chegaram a ver Os Lusíadas inteiros duas vezes nas páginas do Estadão, dado o volume de matérias vetadas – 1.122 textos censurados nesse período. Essa tática acabou se tornando um símbolo celebrado da suposta “resistência” da grande imprensa contra a ditadura.


No imaginário construído pelo próprio Estadão, os versos de Camões e as colunas de receitas seriam prova de uma postura corajosa do jornal frente aos generais. De fato, anos depois, a família proprietária transformou essa história em um troféu, alardeando que “resistiu” bravamente à opressão ao denunciar a censura de maneira tão sutil quanto astuta. Porém, a realidade histórica documentada é bem diferente, e bem menos lisonjeira para o jornal. Os fatos demonstram que:


  • De 1964 a 1968, o Estadão apoiou entusiasticamente o golpe militar e a ditadura nascente, longe de qualquer resistência.

  • O jornal só entrou em conflito com o regime depois que os militares passaram a ameaçar os interesses do próprio Estadão e de seus donos (a família Mesquita), especialmente a partir do AI-5.

  • A alegada “resistência” somente começou quando o regime endurecido voltou-se até contra setores da elite paulista que antes o apoiavam – ou seja, quando a ditadura passou a atingir o próprio Estadão.

  • Mesmo durante os anos de censura explícita, o jornal nunca deixou de endossar o projeto político-militar dos generais. Limitou-se a criticar alguns “excessos” autoritários pontuais, sem jamais romper de fato com o regime.


Examinemos cada um desses pontos em detalhe, para contrastar o mito propagado pelo Estadão com a verdade histórica registrada em documentos e depoimentos da época.


Apoio entusiasmado ao golpe de 1964 e à ditadura (1964–1968)


Logo de início, convém lembrar que O Estado de S. Paulo apoiou decididamente o golpe militar de 31 de março de 1964. Longe de resistir, o jornal atuou como conspirador de primeira hora na derrubada do governo constitucional de João Goulart. Pesquisas históricas confirmam que Júlio de Mesquita Filho, então diretor do Estadão, esteve diretamente envolvido nas articulações golpistas desde o começo. Em entrevista, a historiadora Maria Aparecida de Aquino (USP) chega a afirmar que o Estadão "foi conspirador desde a primeira hora" na instauração do regime militar.


Cartas de Ruy Mesquita e Gilles Lapouge com debate sobre o golpe de 64 foram publicadas no Estadão em 21 de junho de 1964 Foto: Acervo Estadão - 21/06/1964
Cartas de Ruy Mesquita e Gilles Lapouge com debate sobre o golpe de 64 foram publicadas no Estadão em 21 de junho de 1964 Foto: Acervo Estadão - 21/06/1964

Nas semanas e meses seguintes ao golpe, o engajamento pró-ditadura do Estadão ficou evidente em sua linha editorial. O jornal saudou efusivamente a chamada “Revolução de 1964”, tratando os militares como salvadores da pátria. Chegou a aplaudir o primeiro Ato Institucional (AI-1) – que cassou mandatos e suspendeu direitos – alegando que era uma medida apoiada “pela totalidade do povo brasileiro”. Quando o general Castello Branco foi escolhido presidente pelo Congresso sob controle dos golpistas, o Estadão classificou a manobra como “legítima, admirável, uma conquista nacional”.


Não satisfeito em endossar o novo regime, o jornal muitas vezes cobrou uma linha ainda mais dura dos governantes militares. Entre 1964 e 1968, o Estadão demonstrou ser mais radical que os próprios generais “moderados” em certos momentos. Por exemplo, exigiu a ampliação da repressão contra políticos acusados de “subversão” e “corrupção”. O Estadão foi o veículo que mais se empenhou pela cassação dos direitos políticos do ex-presidente Juscelino Kubitschek (JK), fazendo forte campanha para que JK – adversário dos militares – fosse expurgado da vida pública. Quando finalmente JK foi cassado pelo regime, o jornal exaltou a decisão em suas páginas, comemorando a “limpeza” política.


Em outubro de 1965, às vésperas de o governo decretar o segundo Ato Institucional, o Estadão publicou um editorial exigindo maior dureza da ditadura. Nesse texto, acusava o governo de manter uma “Revolução meio anêmica” e criticava a “timidez” dos militares em reprimir seus opositores. O jornal cobrava abertamente o estabelecimento de um estado de sítio e pedia “um segundo Ato Institucional” para acelerar a limpeza na vida política nacional. Quando o regime atendeu a esse clamor editando o AI-2 (em 27 de outubro de 1965), o Estadão aplaudiu: declarou que, sendo “revolucionários que somos”, considerava legítimo lançar mão de medidas de exceção para atingir os objetivos do movimento de 1964.


É chocante constatar hoje, mas está nos arquivos: o Estadão defendia a ditadura e até pressionava por mais autoritarismo nessa fase inicial. O próprio proprietário, Júlio Mesquita Filho, participava ativamente de articulações políticas para manter a unidade do regime. Segundo relatos da época, Mesquita agiu nos bastidores para evitar rompimentos dentro do campo golpista – por exemplo, tentando dissuadir o governador Carlos Lacerda (um aliado civil dos militares) de romper com o governo. Ou seja, o dono do Estadão não só apoiou o golpe: ele trabalhou para estabilizar e reforçar o novo regime, inclusive sugerindo expurgos adicionais de supostos “subversivos”.


Nada disso é compatível com uma postura de resistência. Pelo contrário, entre 1964 e 1968 o Estadão foi um dos pilares civis de sustentação da ditadura, alinhado tanto ideologicamente quanto em interesses econômicos. Importante lembrar que grande parte da elite empresarial e midiática brasileira lucrou ou se beneficiou com o regime militar – seja através de favores, publicidade estatal, concessões ou eliminação de concorrentes. No caso do Estadão, seu alinhamento político lhe rendeu prestígio junto ao governo e consolidou sua posição como principal jornal conservador de São Paulo. Em suma, nos anos iniciais não houve qualquer resistência; houve sim entusiasmo e até militância editorial a favor do regime.


Ruptura tardia: conflito só após o AI-5 (quando seus interesses foram atingidos)


Página de jornal de 1973 detalhando a censura e a repressão à imprensa livre nas Américas durante o período da ditadura militar
Página de jornal de 1973 detalhando a censura e a repressão à imprensa livre nas Américas durante o período da ditadura militar

Se o idílio inicial entre o Estadão e a ditadura foi marcante, quando esse casamento começou a azedar? A divergência só veio à tona quando o regime militar endureceu de vez e passou a não tolerar nem mesmo críticas moderadas de seus apoiadores tradicionais. Esse ponto de inflexão ocorreu a partir do final de 1968, com a promulgação do famigerado AI-5. O Ato Institucional nº 5 suspendeu garantias constitucionais, fechou o Congresso e escancarou de vez a repressão. Pela primeira vez, a ditadura voltou sua mira também contra setores da imprensa e da elite paulista que, até então, lhe davam suporte. Em outras palavras, o regime passou a ameaçar os interesses e a autonomia do próprio Estadão – e isso provocou atritos.


Um episódio simbólico marcou essa ruptura: na noite de 13 de dezembro de 1968, quando o AI-5 foi decretado, policiais militares invadiram a sede do Estadão, em São Paulo, e apreenderam a edição do jornal que estava para circular. O motivo? O diretor Júlio de Mesquita Filho recusara-se a obedecer à ordem dos censores para substituir um editorial crítico que sairia naquela edição, intitulado “Instituições em frangalhos”. Ou seja, logo nas primeiras horas do novo regime de exceção, o Estadão tentou publicar um artigo que lamentava a destruição das instituições democráticas – e a resposta dos militares foi mandar forças de segurança tomar à força os exemplares do jornal antes que chegassem às bancas. Ali começava, de forma nada gloriosa, a censura direta ao Estadão.


Esse confronto de 1968 mostra que, apenas quando o regime feriu seus donos, o Estadão esboçou alguma reação. Até então, mesmo discordando de pontos aqui e ali, o jornal seguia parceiro do projeto de 64. Mas o AI-5 representou um divisor de águas: a ditadura atirou no próprio pé ao atingir a grande imprensa tradicional. Com o fechamento político completo, setores liberais conservadores (como a família Mesquita) que apoiavam o regime passaram a se sentir traídos e ameaçados. Afinal, se nem eles tinham mais liberdade para publicar um simples editorial, o que restava? Esse choque de interesses deflagrou a “resistência” tardia do Estadão.


É importante notar, contudo, que essa mudança não se deu da noite para o dia em 1968. Nos anos seguintes ao AI-5, o Estadão oscilou entre leves desafios e muita cautela. De 1968 até 1972, prevaleceu a autocensura no jornal. A própria direção do Estadão tratava de evitar assuntos que pudessem desagradar os generais, ou então abordá-los com viés bastante pró-governo. Havia uma espécie de acordo tácito: o regime não tinha ainda imposto um censor residente no jornal, então cabia aos editores se “enquadrar” para não provocar ira do governo. Recados telefônicos e bilhetes eram enviados pelo governo listando temas proibidos, e na maior parte do tempo o Estadão seguia essas diretrizes voluntariamente. Em suma, mesmo desgostoso com os rumos mais autoritários, o jornal evitou peitar abertamente o regime por alguns anos após 1968.


Isso só muda em 1972, quando um novo confronto decisivo ocorre. Naquele ano, o Estadão preparou uma extensa reportagem especial sobre a perspectiva de anistia para os cassados e exilados políticos – uma pauta explosiva, pois falava em perdoar adversários do regime. O Serviço Nacional de Informações (SNI) tomou conhecimento e tentou convencer a direção do jornal a não publicar a matéria. Desta vez, porém, os Mesquita decidiram enfrentar a ordem e seguir com a publicação planejada. O resultado foi imediato: em 3 de setembro de 1972, agentes federais ocuparam a redação do Estadão, instaurando oficialmente a censura prévia no periódico. A partir desse dia, e pelos dois anos seguintes, nenhum artigo poderia ser publicado sem passar pelo crivo dos censores do regime.


A implantação da censura formal em 1972 confirma que a “resistência” do Estadão – no sentido de bater de frente com a ditadura – veio tarde e por necessidade. Somente quando o jornal não pôde mais ignorar que suas próprias liberdades e negócios estavam em risco é que a família Mesquita assumiu uma postura mais combativa. Note-se: em 1972 o jornal publicou uma reportagem que desagradou o governo não por altruísmo revolucionário, mas porque aquela informação (sobre sucessão presidencial e anistia) interessava ao público e ao próprio jogo político da época. A retaliação do regime acabou forçando o Estadão a se colocar como vítima da censura – papel no qual hoje gosta de posar. De setembro de 1972 até janeiro de 1975, contabilizaram-se 1.136 matérias inteiras ou em parte censuradas no Estadão, sobretudo sobre temas políticos e a repressão. Foram necessárias mais de mil investidas contra seu conteúdo para que o jornal finalmente alegasse estar “resistindo” abertamente.


Desse modo, fica claro que até onde os generais não atrapalhavam seus negócios ou ultrapassavam certos limites, o Estadão conviveu bem com a ditadura. A ruptura só se deu quando o cerco se fechou a ponto de sufocar o próprio jornal – seja politicamente, seja em termos de influência e receitas. A “burguesia paulista” que o Estadão representava foi atingida no calo, então o leão virou gato: passou de cúmplice a “opositor” em questão de poucos anos, conforme sua conveniência.


Uma resistência de fachada: crítica aos “excessos”, apoio ao projeto do regime


Mesmo após 1972, com censores sentados dentro da redação, será que o Estadão se tornou um bastião da resistência democrática? Os fatos indicam que não. Apesar de algumas manchetes censuradas e espaços em branco preenchidos com poesias, o jornal nunca abandonou seu alinhamento básico com o regime. Sua oposição se restringiu a criticar alguns abusos específicos, ao passo que continuou apoiando ou silenciando sobre o projeto autoritário maior.


Estado de S. Paulo, 02 de novembro de 1973. Fonte: Acervo Estadão.
Os espaços em branco sinalizam que ali estariam notícias que foram censuradas.

Dentro do Estadão, prevalecia a mentalidade de que os militares haviam salvado o país do “perigo comunista” em 1964 – tese com a qual os Mesquita concordavam – mas que alguns excessos precisavam ser moderados para preservar a “legalidade” e a ordem. Essa linha dúbia transparece em seus editoriais da época. Em essência, o jornal defendia os objetivos do regime (combate ao comunismo, reformas econômicas conservadoras, alinhamento com os EUA etc.), e apenas apontava o dedo contra certas violências ou arbitrariedades exageradas. Como observa a professora Maria de Aquino, a oposição do Estadão baseava-se numa perspectiva liberal: condenava o “abuso de poder” e a usurpação de direitos naturais pelo governo (tanto que combateram Goulart em 64 por motivos semelhantes), mas não rejeitava a existência de um regime de exceção em si. Ou seja, criticava a ditadura pelos seus excessos, mas não pelos seus fundamentos – que o jornal ajudara a lançar.


A própria prática diária no período de censura comprova essa conivência parcial. Diversos jornalistas do Estadão relataram que, mesmo com agentes do governo revisando o conteúdo, a rotina seguiu relativamente confortável. Havia, claro, matérias vetadas aqui e ali – principalmente sobre torturas, corrupção militar ou movimentos de oposição armada, que os censores invariavelmente cortavam. Porém, uma enorme quantidade de conteúdo alinhado aos interesses do regime continuou sendo publicada normalmente. Notícias econômicas, cobertura internacional anti-comunista, opinião favorável às políticas de desenvolvimento do governo Médici – nada disso era censurado porque o Estadão não via problema em noticiar dentro da ótica oficial. Em outras palavras, o jornal nunca se transformou num veículo de resistência frontal, daqueles que contestavam a legitimidade do regime ou clamavam pela redemocratização imediata. Pelo contrário, continuou conservador e cauteloso em suas posições.


Um testemunho contundente ilustra bem essa realidade. O veterano jornalista Carlos Chagas, que trabalhou no Estadão durante quase todo o período da ditadura, resumiu assim a postura do jornal:


“O jornal da família Mesquita é o melhor lugar para se trabalhar quando há ditadura, mas fica apenas conservador quando vem a democracia”.

A frase, além de irônica, revela muito. Significa que, sob o regime autoritário, o Estadão proporcionava a seus profissionais um ambiente acomodado com a situação, sem maiores conflitos – afinal, estava do lado “vencedor”. Já em tempos democráticos, o jornal volta ao seu papel tradicional de veículo conservador. Essa observação de Chagas confirma a postura confortável e conivente do Estadão durante os anos de chumbo, diferindo apenas de grau (e não de princípio) em relação aos militares. Em última instância, o Estadão jamais fez oposição ferrenha ao governo de plantão durante a ditadura; no máximo, praticou um jornalismo moderado, com frouxas críticas pontuais aos “exageros” mais grotescos (como a tortura sem controle ou a censura onipresente), enquanto endossava tacitamente todo o resto.


Na foto, um censor da ditadura militar trabalhando no prédio do Estadão em 1973.
Na foto, um censor da ditadura militar trabalhando no prédio do Estadão em 1973.

Também é revelador observar a atitude do jornal na fase final da ditadura e transição para a democracia. Durante a campanha de 1984 pelas Diretas Já – movimento popular clamando por eleições presidenciais livres – o Estadão inicialmente mostrou ceticismo e frieza. Em vez de se engajar de imediato na luta democrática, o jornal hesitou, questionando se a volta das eleições resolveria os problemas do Brasil e temendo a ascensão de líderes trabalhistas de esquerda (como Leonel Brizola) pelo voto popular. Somente quando ficou claro que 85% da população apoiava as Diretas e que o movimento era irreversível o Estadão aderiu, e mesmo assim não perdeu a chance de alfinetar as lideranças de esquerda (como Lula e o PT) que despontavam nos comícios. Essa relutância em abraçar a democracia nascente – mesmo após ter sido vítima da censura – expõe as contradições do jornal. Ficou nítido que o compromisso do Estadão sempre foi menos com a liberdade em si e mais com a ordem conservadora. Quando a “ordem” ditatorial ruiu, levou tempo até o jornal se reposicionar.


Todos esses fatos desmontam a ideia de que o Estadão foi um bastião resistente contra a ditadura. A verdade é que ele jamais deixou de apoiar o projeto militar autoritário em sua essência. Suas divergências com o regime foram circunstanciais e limitadas: discordou de métodos demasiado brutais, mas nunca do objetivo de barrar as esquerdas e reconfigurar o país sob orientação conservadora-militar. Enquanto os “excessos” pudessem ser corrigidos, o Estadão ficaria satisfeito. Não por acaso, mesmo ao fazer seu mea-culpa décadas depois, o jornal ainda se apega à justificativa de que temia uma “república sindicalista comunista” caso não houvesse golpe – ou seja, em nenhum momento reconhece que estava do lado errado da História, apenas alega que exageraram um pouquinho no autoritarismo.


Covardia travestida de heroísmo


FATO: o Estadão não “resistiu” à ditadura militar no sentido próprio do termo. Ele colaborou ativamente enquanto pôde, e só reclamou quando a repressão bateu à sua porta e ameaçou seus donos. A tão propalada publicação de poemas e receitas foi menos um ato de desafio corajoso e mais um gesto de autopreservação, quase um pedido de socorro elegante de quem ajudou a criar o monstro e depois não conseguia mais controlá-lo.


Julio Mesquita (sentado, no centro) na redação do 'Estadão': reforma editorial, aumento de circulação e assinaturas e atenção às notícias internacionais Foto: Acervo Estadão
Julio Mesquita (sentado, no centro) na redação do 'Estadão': reforma editorial, aumento de circulação e assinaturas e atenção às notícias internacionais Foto: Acervo Estadão

A família Mesquita, proprietária do jornal, conseguiu numa manobra cínica transformar sua própria covardia em heroísmo. Reescreveram a história para pintar a si mesmos como paladinos da liberdade de imprensa – quando na realidade foram cúmplices entusiasmados do regime por anos, silenciando diante de torturas e ilegalidades, e só se posicionando quando seus interesses empresariais e familiares foram atingidos. Essa transmutação de omissão em “resistência” e de cumplicidade em “vitimização” é estarrecedora.


Não é por acaso que, passadas décadas, o Estadão ainda tenta lapidar sua versão dos fatos. Em editoriais recentes alusivos aos 50 anos do golpe, por exemplo, o jornal admitiu (porque não tinha mais como negar) que Júlio Mesquita Filho apoiou e até conspirou pelo golpe de 64 – mas tenta absolver-se alegando que rompeu com a ditadura após um “desvio” autoritário no AI-2, e justificando o apoio inicial pelo temor do comunismo que João Goulart representaria. Essa narrativa autoindulgente busca ocultar que o jornal permaneceu alinhado ao regime mesmo nos anos mais duros, criticando apenas aquilo que considerava exagero. Ao se ouvir apenas o lado do Estadão, tem-se a impressão falsa de que ele foi quase uma resistência honrosa durante todo o período – quando, na verdade, abdicou de resistir quando mais importava, lá no começo, e seguiu lado a lado com os ditadores enquanto lhe foi conveniente.


Diante de todo o exposto, podemos concluir sem medo: a suposta “resistência” do Estadão à ditadura é uma farsa histórica. Trata-se de um dos casos mais escandalosos de falsificação da memória na imprensa mundial. Os fatos documentados – editoriais da época, pesquisas acadêmicas e até confissões posteriores – desmentem cabalmente a lenda heroica construída pelo jornal. É nosso dever, portanto, denunciar essa falsificação e fazer justiça à verdade histórica: o Estadão não foi herói coisa nenhuma, foi no máximo uma vítima tardia da própria ditadura que ajudou a instaurar, e tenta até hoje capitalizar em cima desse papel de vítima para limpar sua biografia. Não nos deixemos enganar por poemas em páginas vazias; a verdadeira resistência se faz com postura ética desde o princípio, e não reescrevendo a história depois que o perigo passou.


 
 
 
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