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No coração da guerra cultural que varreu o Brasil nos últimos anos encontra-se uma das mais perversas operações de distorção intelectual já documentadas: a transformação de Antonio Gramsci, filósofo marxista que morreu nas prisões fascistas, em arquiteto de uma suposta conspiração comunista global. Esta inversão, orquestrada principalmente por Olavo de Carvalho, não representa apenas um equívoco acadêmico, mas constitui uma estratégia deliberada para desarmar o pensamento crítico e legitimar agendas políticas autoritárias.


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A apropriação e distorção sistemática do pensamento gramsciano forneceu a base ideológica para o movimento que culminou no bolsonarismo, permitindo ataques coordenados às instituições democráticas brasileiras - universidades, imprensa, sistema educacional e organizações culturais - sob o pretexto de combater uma ameaça inexistente. Esta matéria revela como uma mentira intelectual se transformou em política de Estado e como a batalha pelas ideias se tornou, literalmente, uma batalha pela democracia.


O verdadeiro Antonio Gramsci: mártir do antifascismo


Para compreender a magnitude da distorção perpetrada pela extrema-direita, é fundamental primeiro conhecer o verdadeiro Antonio Gramsci. Nascido em 1891 na Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália, Gramsci cresceu numa família de poucos recursos, enfrentando desde cedo limitações físicas que marcariam sua vida - uma má formação na coluna vertebral que lhe causava uma corcunda visível.


O contexto histórico em que Gramsci viveu foi decisivo para a formação de seu pensamento. A Europa estava sendo devastada pela Primeira Guerra Mundial, e a Itália enfrentava uma crise social e econômica sem precedentes. Foi neste cenário turbulento que Gramsci se tornou não apenas um intelectual, mas um militante comunista ativo e um dos fundadores do Partido Comunista da Itália.


Sua trajetória tomou um rumo dramático com a ascensão de Benito Mussolini ao poder em 1922. Como deputado eleito em 1924 e principal opositor intelectual do regime fascista, Gramsci se tornou um alvo prioritário. Em novembro de 1926, foi preso pelas autoridades fascistas. O promotor Michele Isgrò pronunciou então uma frase que se tornaria histórica: "Devemos impedir que este cérebro funcione por vinte anos".


Contrariando as intenções do regime, foi justamente no silêncio forçado da prisão que Gramsci produziu sua obra mais genial. Entre 1929 e 1935, apesar da saúde progressivamente debilitada, ele preencheu 33 cadernos escolares com milhares de páginas sobre história, política, filosofia e cultura - os famosos "Cadernos do Cárcere". Gramsci morreu em abril de 1937, poucos dias após conquistar a liberdade condicional, vítima das condições desumanas do encarceramento fascista.


Hegemonia Cultural: uma teoria da resistência


O conceito central desenvolvido por Gramsci - hegemonia cultural - nasceu de uma pergunta urgente: por que o fascismo conseguiu chegar ao poder e conquistar o apoio popular? Sua resposta revolucionou a teoria política do século XX.


Para Gramsci, o poder nas sociedades modernas não se sustenta apenas pela força bruta do Estado - polícia, exército, tribunais. Fundamentalmente, ele se mantém pela fabricação de consenso na sociedade civil. A sociedade civil - escolas, igrejas, mídia, sindicatos, família - dissemina valores e crenças que legitimam a ordem social vigente, fazendo com que a visão de mundo da classe dominante seja percebida como natural e benéfica para todos.


A hegemonia é, portanto, a liderança moral, intelectual e cultural que uma classe exerce sobre toda a sociedade. O Estado, nessa concepção ampliada, é "sociedade política + sociedade civil", ou seja, "hegemonia couraçada de coerção". Era uma análise sofisticada de como o poder realmente funciona, não um manual de conspiração.


Esta teoria levou Gramsci à distinção estratégica entre "guerra de movimento" - o ataque frontal ao aparelho de Estado possível em sociedades com sociedade civil frágil, como a Rússia czarista - e "guerra de posição" - a luta de longo prazo no terreno da cultura e das ideias, necessária nas democracias ocidentais com suas complexas "trincheiras" da sociedade civil.


Olavo de Carvalho: o arquiteto da grande inversão


A transformação de Gramsci em vilão conspirador não foi obra do acaso, mas resultado de uma operação sistemática conduzida por Olavo de Carvalho (1947-2022), autodidata sem formação acadêmica formal que se tornou o principal arquiteto intelectual da nova direita brasileira.


Operando nas margens da academia, Carvalho construiu uma vasta audiência através de livros, artigos em grandes jornais, um influente curso online de filosofia e uma presença massiva nas redes sociais. Sua influência foi decisiva para a ascensão de Bolsonaro, não apenas fornecendo a base ideológica para o movimento, mas atuando como guru político, indicando nomes para ministérios-chave como Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Abraham Weintraub (Educação).


O conceito de "marxismo cultural", central na obra de Carvalho, não tem qualquer base na teoria marxista ou nos estudos acadêmicos. Trata-se de uma teoria conspiratória de extrema-direita que remonta ao termo propagandístico nazista "Kulturbolschewismus" (Bolchevismo Cultural), usado para atacar a arte moderna, o pensamento crítico e os intelectuais judeus na Alemanha de Weimar.


A versão moderna foi desenvolvida nos Estados Unidos na década de 1990 por figuras da ultra-direita como William S. Lind e Pat Buchanan, que alegavam que intelectuais da Escola de Frankfurt haviam arquitetado um plano para destruir a civilização ocidental promovendo feminismo, direitos LGBTQ, multiculturalismo e "politicamente correto".


Carvalho importou essa teoria para o Brasil com uma adaptação crucial: colocou Gramsci no centro da trama. Na versão olavista, o marxismo cultural seria a aplicação da estratégia gramsciana de hegemonia - uma revolução silenciosa para corroer os pilares da sociedade através da dominação da cultura, educação e mídia.


A leitura que Carvalho faz de Gramsci constitui uma desfiguração completa e sistemática. Primeiro, transforma o teórico num personagem quase mítico - um "gênio do mal" que, do cárcere fascista, teria orquestrado um plano secreto para a dominação comunista global. Era uma narrativa cinematográfica, muito mais atraente que a realidade de um intelectual escrevendo teoria política em condições adversas.


Segundo, esvazia o conceito de hegemonia do seu conteúdo analítico, transformando-o numa técnica de conspiração. Carvalho descreve hegemonia como "aggressão molecular", uma guerra invisível que age "milímetro a milímetro, cérebro por cérebro" para preparar o terreno para um golpe de Estado. Era paranoia transformada em doutrina.


Terceiro, distorce o conceito de intelectual orgânico. Na teoria gramsciana, são indivíduos que articulam a visão de mundo de qualquer classe social. Na versão de Carvalho, tornam-se um "exército de agentes infiltrados" - professores, jornalistas, artistas conscientemente trabalhando para contaminar a cultura com valores marxistas.


Da teoria à política: Os Efeitos Devastadores


A teoria conspiratória não permaneceu no plano das ideias. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), a guerra cultural se materializou em políticas concretas que atacaram sistematicamente as instituições democráticas brasileiras.


O primeiro alvo foi a educação. Cortes orçamentários brutais atingiram universidades federais - quase 20 bilhões de reais a menos em 2020 comparado a 2019. Os ataques foram justificados como medidas necessárias para expurgar a "ideologia de esquerda" das instituições. Abraham Weintraub chegou a usar a palavra "balbúrdia" para descrever as universidades federais.


A cultura também foi sistematicamente atacada. Museus, teatros, centros culturais foram vistos como "aparelhos de hegemonia gramsciana". Roberto Alvim, ex-secretário de Cultura, chegou a parafrasear o ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels num pronunciamento oficial. Não foi acidente - foi coerência ideológica com uma visão que enxerga a cultura como campo de batalha.


A retórica da guerra cultural eliminou a possibilidade de debate democrático racional. O adversário político deixou de ser alguém com projeto diferente e passou a ser retratado como agente do mal, inimigo da nação a ser eliminado. Essa dinâmica criou a "polarização extrema" que envenenou o debate público brasileiro.


A distorção de Gramsci não foi caso isolado. A extrema-direita aplicou a mesma técnica a outros pensadores da emancipação humana. Paulo Freire, educador mundialmente reconhecido, foi transformado em "doutrinador marxista". Sua Pedagogia do Oprimido, que propõe educação como prática da liberdade, foi reconfigurada como ameaça à ordem social.

George Orwell, socialista que combateu o fascismo, é constantemente invocado pela extrema-direita como crítico da esquerda. Suas distopias, que denunciam o totalitarismo, são descontextualizadas para atacar a imprensa investigativa e o pensamento crítico - exatamente as instituições que combatem a desinformação.


Simone de Beauvoir teve sua análise filosófica sobre a construção social do gênero transformada no epicentro da teoria conspiratória da "ideologia de gênero". O Segundo Sexo, ferramenta de libertação feminina, foi reconfigurado como ameaça à família tradicional.


A maior ironia de todo o processo é que, enquanto denunciavam um suposto plano gramsciano da esquerda, a extrema-direita estava aplicando magistralmente a verdadeira estratégia gramsciana. Construíram uma rede capilar de think tanks, influenciadores digitais, canais de comunicação, produtoras como a Brasil Paralelo - seus próprios "aparelhos privados de hegemonia".


Disputaram o senso comum da sociedade brasileira, educaram a "espontaneidade" das massas, criaram consenso em torno de seus valores. Não estavam combatendo Gramsci - estavam sendo gramscianos, aplicando com eficiência uma guerra de posição para construir nova hegemonia conservadora.


As Consequências para a Democracia


O impacto dessa guerra cultural transcendeu a política partidária. Famílias se fragmentaram, amizades se romperam, comunidades se dividiram. O tecido social brasileiro foi corroído pela lógica que transformou diferenças políticas normais em abismos existenciais intransponíveis.


A pesquisa "O Jornalismo Frente às Redes de Ódio no Brasil" revelou que, durante as eleições de 2022, a cada três segundos um jornalista foi agredido nas redes sociais. Era o resultado de anos de campanha sistemática para deslegitimar a imprensa como "aparelho gramsciano" da esquerda.


A guerra cultural criou o que João Cezar de Castro Rocha chamou de "Brasil pós-político" - um país onde o debate racional foi substituído pela retórica do ódio, onde a complexidade foi sacrificada em nome da simplificação conspiratória.


Mesmo com o fim do governo Bolsonaro, o legado da guerra cultural persiste. A distorção do pensamento crítico, a deslegitimação das instituições democráticas, a polarização extrema continuam como desafios centrais para a democracia brasileira.


A batalha pelas ideias revelou-se, literalmente, uma batalha pela democracia. Quando se permite que pensadores da emancipação sejam sistematicamente demonizados, quando a complexidade é substituída pela conspiração, quando a análise vira paranoia, os próprios fundamentos da sociedade democrática ficam ameaçados.


O caso Gramsci demonstra que a defesa da democracia no século XXI passa necessariamente pela defesa da integridade intelectual e do pensamento crítico. Combater a desinformação exige mais que checagem de fatos - exige educação crítica, contextualização histórica e resgate contínuo dos autores de seus sequestradores ideológicos.

A verdade, por mais complexa que seja, permanece como o único antídoto eficaz contra a mentira organizada. E hoje, mais do que nunca, essa verdade precisa ser defendida para que a democracia brasileira possa não apenas sobreviver, mas prosperar diante dos desafios contemporâneos.

 
 
 
  • Foto do escritor: Raul Silva
    Raul Silva
  • 19 de jul.
  • 7 min de leitura

Um mergulho crítico na Pedagogia do Oprimido e na construção da imagem do “inimigo número um da educação” pela extrema-direita brasileira


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No cenário político brasileiro contemporâneo, poucos nomes concentram tanta controvérsia quanto o de Paulo Freire. Elevado ao posto de Patrono da Educação Brasileira em 2012, sua obra é reconhecida internacionalmente, traduzida em mais de 30 idiomas, discutida em universidades de referência e aplicada em projetos pedagógicos de transformação social em países como Moçambique, Nicarágua, Finlândia e África do Sul. Contudo, no Brasil — o mesmo país que lhe concedeu reconhecimento oficial —, Freire é frequentemente reduzido a um símbolo caricatural de doutrinação ideológica. 


A origem de uma pedagogia para libertar


Paulo Freire nasceu no Recife em 1921, num Brasil marcado pela desigualdade estrutural e pela exclusão sistemática das classes populares do processo educativo formal. A experiência direta com a fome, o analfabetismo e a marginalização social moldou sua visão de mundo e sua ética pedagógica. Desde cedo, compreendeu que o acesso à palavra escrita e à leitura crítica era também acesso ao mundo — e, por consequência, às possibilidades de transformação social. Seu trabalho nos anos 1950 e 60 com alfabetização de adultos, especialmente no Nordeste brasileiro, levou à criação de uma pedagogia fundamentada no diálogo, na escuta ativa e na transformação da realidade a partir da consciência crítica. Essa pedagogia não era uma mera técnica de ensino, mas uma filosofia política comprometida com a dignidade humana.


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Sua principal obra, Pedagogia do Oprimido (1968), escrita durante o exílio após o golpe militar de 1964, propõe uma educação centrada na conscientização — um processo dialético em que o indivíduo deixa de ser objeto e passa a ser sujeito da história. A crítica à “educação bancária”, que trata o aluno como um recipiente passivo a ser preenchido por um conteúdo unilateral, é substituída por uma pedagogia do diálogo, em que professor e estudante se reconhecem mutuamente como inacabados, em constante processo de construção e reconstrução do saber. O objetivo não é “ensinar conteúdos”, mas criar condições para que o educando possa ler o mundo, compreendê-lo e agir sobre ele.


Freire propõe uma revolução epistemológica na relação entre educador e educando, abandonando o modelo vertical e hierarquizado de ensino para propor um processo horizontal, fundado na escuta e na problematização do cotidiano. A pedagogia freireana, portanto, não é um método fechado, mas um gesto político e epistêmico. Trata-se de pensar a educação como prática da liberdade, como intervenção no mundo — e não como adaptação resignada a ele. Isso implica romper com estruturas autoritárias, patriarcais, coloniais e elitistas. Implica, também, reconhecer que toda educação carrega em si um projeto de mundo, e que a pretensa neutralidade, nesse contexto, é apenas o nome dado à adesão silenciosa à ordem vigente.


A construção do espantalho: do educador ao “doutrinador”


É nesse ponto que a figura de Freire se torna profundamente incômoda para determinados setores políticos e econômicos. Uma pedagogia que forma sujeitos críticos, capazes de problematizar a realidade social, é incompatível com modelos autoritários que se sustentam na obediência, na repetição e na despolitização do conhecimento. Ao contrário da falsa premissa de que Freire defendia a doutrinação, sua proposta é justamente antitética à imposição de ideias: ela parte do diálogo com a realidade vivida pelo educando, da leitura do mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Como afirmou em diversas entrevistas, “doutrinar é exatamente o oposto do que proponho”.


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Contudo, a partir dos anos 2000, especialmente com a ascensão de grupos como o movimento Escola Sem Partido, a figura de Paulo Freire passou a ser ressignificada por setores conservadores como símbolo máximo de uma suposta infiltração ideológica nas escolas. Essa narrativa ganhou contornos mais explícitos com a ascensão de Olavo de Carvalho como ideólogo da nova direita brasileira. Misturando teorias conspiratórias sobre “marxismo cultural”, revisionismo histórico e anticomunismo difuso, Olavo resgatou interpretações distorcidas da pedagogia freireana para sustentar a tese de que o sistema educacional brasileiro estaria sendo dominado por uma agenda gramsciana disfarçada de projeto pedagógico.


Freire, então, deixou de ser lido e passou a ser instrumentalizado como inimigo interno. Tornou-se um emblema a ser combatido nos discursos de campanha, nas falas ministeriais e nas redes sociais, sobretudo durante e após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A promessa de “expurgar Paulo Freire das escolas” foi um dos motes centrais da plataforma de governo bolsonarista, sustentada por vídeos virais, memes descontextualizados, frases apócrifas e uma mobilização coordenada de fake news em grupos de WhatsApp e canais de YouTube ligados à extrema-direita.


O mais grave, no entanto, é que essa construção não se deu por engano ou ignorância, mas por conveniência política. O chamado “espantalho freireano” foi erguido como parte de um projeto ideológico que visa substituir a escola crítica por uma escola conformista, esvaziada de pensamento e servil às pautas morais e econômicas da nova direita brasileira — pautas que incluem o revisionismo da ditadura militar, o negacionismo científico, a cruzada contra a discussão de gênero, o ataque ao movimento negro e a defesa de um nacionalismo cristão autoritário. O ataque a Freire é, portanto, apenas a face mais visível de um projeto mais amplo de apagamento da educação como ferramenta de emancipação social.


O que está em jogo: a pedagogia do silêncio


A guerra contra Paulo Freire, portanto, não é uma mera disputa de ideias sobre métodos pedagógicos. Ela é sintoma de algo maior: a recusa ao pensamento crítico como princípio educativo. A ofensiva contra a pedagogia freireana é, na verdade, uma ofensiva contra qualquer forma de educação que se proponha a formar cidadãos e não apenas trabalhadores dóceis. Quando se combate Freire, combate-se o direito de o aluno perguntar, de o professor propor caminhos fora do currículo engessado, de a escola ser um espaço de leitura do mundo — e não apenas de reprodução de conteúdos.


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E aqui reside o núcleo do problema. O que incomoda não é Freire em si, mas o que ele representa: a possibilidade de uma escola pública que emancipa, que forma sujeitos capazes de pensar contra os consensos impostos. Uma escola que, ao invés de formar para o mercado, forma para a vida em sociedade. Que questiona os privilégios, que desafia os dogmas, que não se curva ao poder — seja ele político, religioso ou econômico. Nesse sentido, Freire se torna não um doutrinador, mas um libertador — e exatamente por isso se torna perigoso para os que querem manter tudo como está.


A tentativa de apagar Freire é também a tentativa de apagar um horizonte possível de educação democrática. Uma educação que não se define apenas por resultados em exames internacionais ou por índices de produtividade, mas pela capacidade de formar sujeitos éticos, sensíveis, críticos e comprometidos com a transformação do mundo. Uma educação que reconhece que ensinar não é domesticar, mas libertar. Que compreende que toda prática pedagógica é, em última instância, um ato político — e que negar essa dimensão é entregar a formação das novas gerações às forças que lucram com a ignorância e o conformismo.


a permanência de uma pedagogia insubmissa


Diante do cenário atual, é urgente recuperar Paulo Freire não como fetiche ou mito, mas como pensador radicalmente comprometido com a justiça, a dignidade e a transformação social. Ler Freire hoje é um ato de resistência, não contra um governo ou partido específico, mas contra um projeto de sociedade que privilegia a apatia política, a desinformação e a indiferença diante das desigualdades. Sua pedagogia continua viva em cada sala de aula onde o diálogo é valorizado, onde o conhecimento é construído coletivamente, onde a escuta ativa é tão importante quanto a transmissão de conteúdo. Freire sobrevive onde há professores que recusam o papel de meros reprodutores de currículo e se afirmam como agentes históricos, capazes de intervir, transformar e humanizar a experiência educativa.


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No Brasil — um país marcado por uma desigualdade educacional histórica, onde 33 milhões de pessoas voltaram à insegurança alimentar, em que a evasão escolar cresce principalmente nas periferias urbanas e zonas rurais, onde professores são submetidos a censura institucional, violência simbólica e ameaças físicas e morais —, seguir Paulo Freire é, paradoxalmente, resistir à acusação de doutrinação. É insistir na radicalidade da esperança, como ele próprio definia. É defender que a educação pode e deve ser libertadora. Uma educação que, como ele escreveu, é “ato de amor, e por isso, ato de coragem”. E também um ato de justiça social, porque se recusa a naturalizar as estruturas de opressão que silenciam vozes, restringem horizontes e destroem o futuro de gerações inteiras.


Freire não propõe uma utopia ingênua. Ele oferece um projeto ético e político de formação que reconhece o ser humano como sujeito de direitos, de história e de cultura. Em tempos de ataques à liberdade de cátedra, ao pluralismo de ideias e à escola pública, seu pensamento se torna ainda mais necessário. Não se trata de erigir um altar ao patrono da educação brasileira, mas de resgatar a atualidade e a potência transformadora de seu legado. Ele continua sendo um guia para aqueles que acreditam que ensinar é um gesto de compromisso com a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática.


A resposta à pergunta que dá título a este artigo, portanto, não é ambígua nem relativizável. Freire não foi — e nunca será — doutrinador. Freire é, por essência, libertador. E é exatamente por isso que ele continua sendo temido por aqueles que se alimentam da ignorância como projeto de poder. Porque uma sociedade que pensa é uma sociedade que resiste. Uma sociedade que lê o mundo é uma sociedade que não aceita calar-se diante da injustiça. E uma educação que liberta é, sempre, o primeiro passo para o fim de qualquer tirania. Defender Paulo Freire hoje é defender o direito de sonhar com um país onde o conhecimento não seja mercadoria, mas um bem comum. Onde educar não seja apenas preparar para o trabalho, mas formar para a cidadania, para a convivência e para a emancipação coletiva.


Referências: Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, 1968); Dermeval Saviani (Escola e Democracia, 1983); Miguel Arroyo (Ofício de Mestre, 2000); entrevista de Freire à Folha de S. Paulo (1987); Dicionário Paulo Freire (org. Walter Kohan); DW Brasil (2021); Intercept Brasil (2019); documentos do Escola Sem Partido; estudos de Daniel Cara, Gaudêncio Frigotto, Nita Freire, Henry Giroux, Noam Chomsky, e outros.


 
 
 

Como “1984” e “A Revolução dos Bichos” foram apropriados pela nova direita para atacar a esquerda — e por que isso é uma distorção


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Dizer que “estamos vivendo em 1984” se tornou uma das frases mais repetidas nas redes sociais e nos discursos públicos da nova direita, tanto no Brasil quanto em outros contextos ocidentais. Essa frase, que parece carregar um alerta legítimo, é frequentemente esvaziada de conteúdo e instrumentalizada de forma estratégica por discursos que, ironicamente, reproduzem as práticas que Orwell denunciava com veemência.


A obra de George Orwell, especialmente 1984 e A Revolução dos Bichos, foi ressignificada nas últimas décadas por vozes que buscam instrumentalizar sua crítica ao totalitarismo para sustentar narrativas antiprogressistas, anti-intelectuais e, muitas vezes, francamente antidemocráticas. Esse processo de apropriação simbólica, embora eficaz do ponto de vista retórico e midiático, constitui uma grave distorção — não apenas da obra de Orwell, mas de seu pensamento político, de sua trajetória pessoal e do contexto histórico em que produziu seus textos, especialmente no período pós-guerra. Para além do erro de leitura, estamos diante de uma operação ideológica que transforma um autor engajado em liberdade crítica num estandarte vazio e moldável ao sabor de interesses reacionários.


Orwell, nascido Eric Arthur Blair, foi um socialista democrático convicto. Sua filiação ao Partido Trabalhista Independente e sua atuação voluntária na Guerra Civil Espanhola ao lado do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), onde chegou a ser ferido em combate, não deixam margem para dúvidas quanto ao seu alinhamento político e sua coragem intelectual. Em seu célebre ensaio Por Que Escrevo, Orwell afirma categoricamente:


“Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático.”

Essa frase, muitas vezes esquecida ou propositalmente omitida por seus detratores, é essencial para compreender a natureza de sua crítica. A crítica ao autoritarismo — seja ele de origem comunista, fascista ou capitalista — nunca foi, portanto, uma rejeição da esquerda em si, mas uma denúncia das formas como ideologias podem ser pervertidas quando se tornam dogmas e instrumentos de dominação. Não há espaço, em sua obra, para um niilismo político que iguale todas as formas de poder ou para um cinismo reacionário que instrumentalize sua denúncia como arma contra qualquer pensamento progressista.


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A nova direita, no entanto, sobretudo em sua expressão digital e memética, descontextualizou essa crítica e a reconverteu em ataque direto à esquerda como um todo. Como apontam estudiosos como Alex Woloch (Universidade de Stanford), John Rodden (autor de A Política da Reputação Literária) e Dorian Lynskey (autor de O Ministério da Verdade), Orwell foi convertido em símbolo conservador por meio de um processo de simplificação extrema e recorte seletivo.


Elementos como o Grande Irmão, o duplipensar e o Ministério da Verdade passaram a ser empregados como metáforas vagas para tudo aquilo que incomoda a sensibilidade da direita contemporânea: políticas públicas inclusivas, regulação da mídia, ações afirmativas, universidades, imprensa investigativa e movimentos sociais. Essa instrumentalização retórica se baseia em slogans fáceis, que dispensam leitura aprofundada e promovem uma falsa equivalência entre vigilância estatal e qualquer tipo de política pública progressista. E ao fazer isso, apagam-se os contextos históricos específicos que alimentaram as obras de Orwell, criando uma leitura superficial, despolitizada e profundamente anacrônica.


O que se vê, portanto, não é um esforço honesto de interpretação, mas sim uma estratégia deliberada de distorção. Essa apropriação não acontece apenas no plano simbólico, mas se traduz em práticas discursivas concretas: influenciadores bolsonaristas no Brasil, militantes da direita alternativa nos Estados Unidos e colunistas de extrema-direita europeus invocam Orwell como “patrono” da resistência conservadora contra o que chamam de “totalitarismo cultural da esquerda”.


Em fóruns como 4chan, Reddit, Gab, X (antigo Twitter) e outros espaços digitais, memes com frases retiradas de 1984 ilustram supostos abusos do “globalismo”, da “ideologia de gênero” e do “marxismo cultural” — expressões que, por si só, já operam como categorias fantasmáticas de uma guerra cultural paranoica e infundada. Esses memes são muitas vezes acompanhados de ilustrações que transformam Orwell em uma figura quase mitológica da liberdade individual, ignorando deliberadamente suas posições socialistas e seu compromisso com a justiça social. Esse processo cria uma espécie de fetichização do autor, que passa a existir mais como imagem do que como pensamento, como símbolo vazio do que como autor complexo.


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Mas há um problema central nessa leitura: Orwell nunca foi um libertário no sentido contemporâneo da palavra. Ele não defendia um Estado mínimo nem era contrário à ação estatal como promotora de igualdade e justiça social. Sua crítica à burocratização da vida e à manipulação ideológica visava salvaguardar o projeto democrático e igualitário da esquerda, não destruí-lo. A sua adesão ao socialismo democrático exigia a liberdade de imprensa, a transparência do discurso público e a autonomia da consciência individual — elementos que, aliás, são sistematicamente atacados pelos mesmos grupos que hoje se declaram “herdeiros” de Orwell. Sua crítica ao stalinismo jamais significou uma rejeição do socialismo; era, antes, um alerta sobre os riscos de sua degeneração autoritária. Orwell se opunha ao totalitarismo como forma de dominação baseada na mentira, na reescrita da história e na aniquilação da subjetividade humana — exatamente o que certos setores da nova direita têm promovido sob o manto de um anticomunismo reativo e dogmático.


A leitura orwelliana da nova direita também apaga outro aspecto crucial: a crítica à linguagem como ferramenta de poder. O conceito de “novilíngua” não se refere a mudanças linguísticas progressistas nem à busca por linguagem inclusiva, mas à destruição sistemática da complexidade vocabular para empobrecer o pensamento e domesticar a dissidência. Ao confundir propostas de justiça linguística com censura orwelliana, a nova direita inverte completamente o eixo da crítica de Orwell — um verdadeiro exemplo contemporâneo do duplipensar que ele tão agudamente denunciou.


É importante destacar, como argumenta o linguista David Crystal, que as tentativas de controlar a linguagem não são exclusividade de regimes progressistas, mas uma prática comum de qualquer governo autoritário que busca moldar a realidade pela imposição de palavras. O que Orwell denunciava era a imposição de um vocabulário mínimo, que apagava significados e limitava a imaginação — algo que se repete hoje em campanhas que tentam interditar termos como “racismo estrutural”, “feminicídio” ou “patriarcado”, acusando-os de serem expressões da “ideologia”.


É nesse ponto que a apropriação simbólica se torna uma forma de violência intelectual. Como afirmou a pesquisadora Helen Nissenbaum, especialista em ética da tecnologia e vigilância, a linguagem orwelliana foi esvaziada ao ponto de se tornar um “emblema vazio, útil a qualquer projeto ideológico que queira parecer subversivo”. O problema não está apenas em citar Orwell de forma superficial — está em reconfigurar seu legado para servir a um projeto político que ele combatia frontalmente. O uso distorcido de sua obra se converte em arma de guerra cultural, apagando sua complexidade crítica e transformando-o em instrumento de propaganda. A violência não está apenas na leitura errada, mas no fato de que ela substitui o pensamento crítico por slogans que reduzem, empobrecem e deseducam.


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E o caso brasileiro merece atenção especial. Desde as manifestações de 2013 até o bolsonarismo militante nas redes sociais, 1984 passou a ser citado como justificativa para ataques ao sistema educacional, à imprensa e às instituições democráticas. Professores universitários foram acusados de “doutrinação ideológica” sob a alegação de que estariam implantando uma realidade “orwelliana”.


Não se trata de simples ignorância interpretativa. Trata-se de uma campanha sistemática de deslegitimação da crítica e da complexidade, substituídas por slogans fáceis, memes simplistas e analogias desonestas. A frase “quem controla o passado, controla o futuro” passou a ser utilizada para justificar revisionismos históricos, enquanto a denúncia do Ministério da Verdade se converteu em ferramenta para desacreditar agências de checagem e veículos jornalísticos tradicionais. Orwell é invocado para atacar quem denuncia notícias falsas — uma ironia que, se não fosse trágica, seria absurda.


Ao fim, o que se revela é que George Orwell foi vítima de um sequestro semântico. Seu nome e suas obras foram instrumentalizados não por afinidade ideológica, mas por sua força simbólica. Como lembra Raymond Williams, crítico marxista britânico, Orwell era uma das vozes mais honestas de sua geração exatamente por se recusar a aceitar dogmas — inclusive os do seu próprio campo. Sua coragem estava na crítica implacável e autônoma, não na adesão cega a qualquer ideologia. Descontextualizar Orwell é, portanto, apagar o seu maior ensinamento: que a linguagem precisa ser clara, que a verdade precisa ser defendida, e que a liberdade só existe onde há espaço para pensar criticamente — mesmo contra as conveniências do seu próprio lado.


Orwell não era um mascote da direita. Era um pensador livre. E resgatar seu legado exige mais do que citações: exige leitura, contexto, crítica e, sobretudo, responsabilidade — especialmente num mundo em que a manipulação do discurso é cada vez mais sofisticada e amplificada por algoritmos e bolhas informacionais. Defender Orwell, hoje, é recusar o uso estratégico de sua obra como fetiche ideológico. É, em última instância, fazer da leitura um ato de resistência e da crítica literária um gesto profundamente político — capaz de atravessar a superfície dos memes e desvelar as estruturas de poder que se escondem por trás da linguagem.

 
 
 
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