- Redação d'O estopim

- 11 de set.
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O voto de 429 páginas proferido pelo ministro Luiz Fux no julgamento da tentativa de golpe de Estado representa um marco divisório no Supremo Tribunal Federal, não apenas pelos seus aspectos técnico-jurídicos, mas principalmente pela sua dimensão política e ideológica. Durante quase 14 horas de exposição, Fux construiu uma narrativa sistemática de desconstrução da tese acusatória, utilizando argumentos que, sob análise crítica, revelam uma série de inconsistências jurídicas, contradições com a própria jurisprudência da Corte e uma perigosa relativização da gravidade da tentativa de golpe de Estado no Brasil.

I. A questão da competência: casuísmo jurídico e Oportunismo processual
Fux fundamentou sua alegação de incompetência absoluta do STF alegando que:
"Concluo, assim, pela incompetência absoluta do STF para o julgamento deste processo, na medida em que os denunciados já haviam perdido seus cargos". O ministro argumentou que "Não estamos julgando pessoas que têm prerrogativa de foro. Estamos julgando pessoas sem prerrogativa de foro".
Este argumento, contudo, esbarra em uma contradição fundamental. Em março de 2025, o próprio STF, por maioria de 7 a 4, decidiu que: "a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício". Fux, curiosamente, foi voto vencido nessa decisão, ao lado de Mendonça, Edson Fachin e Cármen Lúcia.
A tentativa de aplicar retroativamente uma interpretação que foi rejeitada pela maioria da Corte revela não uma questão técnica de competência, mas uma estratégia processual para anular um julgamento cujo mérito não lhe convém. Como observa o professor Eduardo Appio:
"o processo criminal conta com uma defesa preliminar dos acusados, antes do recebimento da denúncia. Nesta defesa preliminar já são suscitadas e julgadas as questões relativas à competência originária do STF. Tenho a impressão de que, tecnicamente falando, este debate já transitou em julgado e não poderia ser ressuscitado".
Fux fez questão de comparar a situação com os processos de Lula na Lava Jato, alegando que se tratava de "incompetência relativa" no caso do ex-presidente petista, mas "incompetência absoluta" no caso de Bolsonaro. Esta comparação é tecnicamente inadequada e politicamente enviesada.
No caso de Lula, a questão versava sobre competência territorial - se deveria ser julgado em Curitiba ou Brasília. No caso de Bolsonaro, trata-se de competência material - se deve ser julgado pelo STF ou pela primeira instância. São institutos jurídicos completamente diferentes, e a comparação só faz sentido numa lógica de equivalência política entre os casos, não jurídica.
II. O argumento do "Tsunami de Dados" e o cerceamento de defesa
Fux alegou cerceamento de defesa pelo que chamou de "tsunami de dados", afirmando:
"Em razão da disponibilização tardia de um tsunami de dados, sem identificação suficiente de antecedência minimamente razoável para os atos processuais - eu confesso que tive dificuldades para elaborar um voto imenso - eu acolho a preliminar".
O ministro detalhou que foram "1.200 equipamentos eletrônicos" apreendidos, resultando em "255 milhões de mensagens de áudio e vídeo" e "1.214 laudos", totalizando "70 terabytes de informações". Fux argumentou que:
"Pastas e arquivos se encontravam sem qualquer nomenclatura adequada ou índice que permitisse uma efetiva pesquisa".
Este argumento é particularmente problemático por várias razões. Primeiro, como observou Alexandre de Moraes na véspera, "a grande quantidade de dados foi anexada ao processo a pedido das próprias defesas". Segundo, a complexidade probatória é inerente a crimes dessa natureza, e não pode servir como escudo para a impunidade.
Fux comparou o caso ao Mensalão, afirmando que "O processo levou dois anos para receber a denúncia e cinco anos para ser julgado". Mas esta comparação ignora que o Mensalão tramitou sob um marco processual penal diferente, e que a celeridade do processo atual deriva justamente da gravidade dos fatos e da necessidade de resposta institucional célere a ataques à democracia.
A afirmação de que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não confere autoridade ao Ministério Público e nem ao juízo processante realizar um filtro seletivo do material probatório e colhido" também é equivocada. É função precípua do órgão acusador e do juízo organizar e sistematizar as provas de forma a permitir o exercício do contraditório, sem que isso configure cerceamento.
III. A Ttoria da "Cogitação" e a minimização dos Atos Executórios
O núcleo da argumentação de Fux para a absolvição de Bolsonaro reside na tese de que houve apenas "cogitação" criminosa, não atos executórios. O ministro afirmou categoricamente:
"Ninguém pode ser punido pela cogitação de um crime" e que "os pensamentos e desejos criminosos, embora de apreciação sob critério religioso ou moral, escapam à consideração do direito punitivo".
Especificamente sobre Bolsonaro, Fux declarou:
"Nas reuniões de novembro de 2022, houve uma mera cogitação do emprego de medidas de Garantia da Lei e da Ordem, como fruto da irresignação do réu quanto ao insucesso sua representação ao TSE". E concluiu: "Aconteceu alguma coisa? Nada".
Esta interpretação representa uma distorção grave dos fatos apurados. A investigação da Polícia Federal demonstrou a existência de um plano estruturado que incluía:
Elaboração de minutas de decreto de estado de sítio com previsão específica de prisão de autoridades, incluindo ministros do STF
Financiamento de operações clandestinas, como o "Plano Punhal Verde e Amarelo" para assassinar autoridades
Monitoramento sistemático de alvos, como o ministro Alexandre de Moraes
Articulação com setores das Forças Armadas para legitimação do golpe
Instrumentalização de órgãos de Estado, como a Abin paralela e a PRF
A caracterização desses elementos como "mera cogitação" contraria não apenas a realidade fática, mas também a doutrina penal consolidada sobre crimes de atentado. Como observa a literatura especializada, "atos executórios, nesse caso, devem colocar democracia em perigo imediato" - exatamente o que ocorreu com as manifestações golpistas e a invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro.
IV. A falsa comparação com as "Jornadas de Junho" de 2013
Fux estabeleceu uma comparação direta entre os atos de 8 de janeiro de 2023 e as manifestações de junho de 2013, afirmando:
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"Agora, vem a perplexidade! Em nenhum desses casos, em nenhuma dessas manifestações, se cogitou de imputar a seus responsáveis os crimes previstos da Segurança Nacional".
O ministro citou especificamente os black blocs, alegando que:
"Os black blocs invadiram o Rio e São Paulo, foram absolvidos. Não se pode reconhecer uma responsabilidade solidária por todos os atos ocorridos em 8 de janeiro".
Esta comparação é profundamente equivocada e revela uma incompreensão (ou má-fé interpretativa) sobre a natureza dos diferentes movimentos sociais. As Jornadas de Junho de 2013 foram manifestações populares espontâneas que começaram contra o aumento das tarifas de transporte público e evoluíram para uma pauta ampla de reivindicações sociais.
Os atos de 8 de janeiro, diferentemente, foram parte de uma estratégia articulada de golpe de Estado, com financiamento estruturado, logística organizada e objetivos específicos de destituição das autoridades legitimamente eleitas. Como demonstram as investigações, havia "conexão entre as manifestações e a trama golpista julgada hoje pelo STF".
A diferença fundamental é que em 2013 não havia um projeto golpista estruturado buscando derrubar o governo eleito e instaurar um regime de exceção. Em 2023, sim. A tentativa de equiparação desses eventos é uma estratégia retórica para normalizar atos de natureza golpista.
V. A teoria do "Autogolpe" e suas implicações
Um dos pontos mais controversos do voto de Fux foi sua teoria sobre o "autogolpe". O ministro alegou:
"As condutas praticadas pelo réu [Jair Bolsonaro] durante seu mandato como Presidente da República não podem configurar o crime previsto no 359-M do Código Penal [tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído], pois este pressupõe a prática de conduta tendente a remover o mandatário do cargo ocupado, e era ele o mandatário do cargo ocupado".
Fux complementou:
"Resta fora dos limites semânticos do tipo penal, o comportamento do mandatário que se encontra no exercício do cargo, mas viola os deveres limites a ele inerentes, com o intuito de perpetuar-se no poder, o chamado autogolpe".
Este argumento cria uma perigosa lacuna de impunidade que contraria tanto a doutrina penal quanto a experiência histórica mundial. Se aceita a tese de Fux, qualquer presidente poderia tentar se perpetuar no poder através de meios inconstitucionais sem responder criminalmente por isso, desde que o fizesse enquanto ainda ocupasse o cargo.
A interpretação ignora completamente que o crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal) não se dirige contra uma pessoa específica, mas contra o regime democrático como um todo. O objetivo de Bolsonaro não era "depor" a si mesmo, mas impedir a posse do presidente eleito e manter-se no poder através de meios violentos e inconstitucionais.
A doutrina internacional sobre crimes contra a democracia reconhece expressamente a possibilidade de presidentes cometerem crimes dessa natureza. O conceito de "autogolpe" (auto-coup ou self-coup) é amplamente reconhecido na literatura especializada e já foi objeto de condenações em cortes internacionais.
VI. A comparação com o Mensalão: inversão de valores
Fux fez uma comparação particularmente problemática ao afirmar que:
"o mensalão, sim, foi uma abolição do Estado democrático de Direito", alegando que "Buscavam, por meios escusos e ilícitos, mediante condutas criminosamente articuladas, corromper o exercício do poder, ultrajar a dignidade das instituições republicanas, apropriar-se da coisa pública, dominar o Parlamento e controlar a qualquer custo o exercício do poder estatal. Isso sim, é abolição do Estado democrático".
Esta comparação representa uma inversão completa da hierarquia de gravidade dos crimes contra a democracia. O Mensalão, por mais grave que tenha sido, representou um esquema de corrupção dentro do sistema democrático. Os agentes públicos envolvidos não buscavam derrubar o regime democrático, mas sim obter vantagens políticas dentro dele.
A tentativa de golpe de 2022-2023, diferentemente, visava à destruição física e simbólica das instituições democráticas. Os golpistas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, ameaçaram autoridades de morte, e articularam um plano para assassinar o presidente eleito, o vice-presidente e ministros do STF.
A equiparação feita por Fux sugere que crimes contra o patrimônio público (Mensalão) seriam mais graves que crimes contra a própria existência do Estado Democrático de Direito, o que contraria qualquer lógica jurídica ou política minimamente coerente.
VII. A questão das provas e a seletividade interpretativa
Fux adotou uma postura sistemática de minimização das provas, caracterizando como "insuficientes" evidências que, em qualquer contexto normal, seriam consideradas robustas. Sobre a minuta do golpe, por exemplo, o ministro afirmou que "nada saiu do plano da mera cogitação" e que a PGR "não provou que a minuta foi discutida com o ex-presidente".
Sobre o Plano Punhal Verde e Amarelo, Fux alegou que:
"não há nenhum elemento que identifique ciência do ex-presidente em relação à minuta do plano" e que "não há absolutamente nenhuma prova que denote a ciência ou a contribuição do réu Jair Bolsonaro para as ações documentadas no grupo 'Copa 2022'".
Esta postura revela uma inversão problemática do ônus da prova em crimes dessa natureza. Em organizações criminosas, especialmente aquelas envolvendo autoridades de alto escalão, é comum que as evidências sejam indiciárias e que a prova direta seja de difícil obtenção. A jurisprudência consolidada aceita que, nesses casos, "um conjunto robusto de indícios pode formar convicção para condenação".
As provas colhidas na investigação incluem:
Mensagens entre os conspiradores detalhando os planos
Reuniões documentadas com comandantes militares sobre medidas de exceção
Financiamento rastreado das operações golpistas
Cronologia precisa dos eventos que levaram ao 8 de janeiro
A exigência de Fux por "prova cabal" da participação de Bolsonaro contraria a própria metodologia que o STF aplicou em casos como o Mensalão e a Operação Lava Jato, onde condenações foram baseadas em conjuntos indiciários semelhantes.
VIII. As contradições com posições anteriores
É particularmente revelador que Fux tenha mudado radicalmente sua posição entre março e setembro de 2025. Em março, ao votar pelo recebimento da denúncia, o ministro afirmou: "Não se pode dizer que não aconteceu nada" e "todos os episódios relatados na denúncia contra a nossa democracia serão marcantes dia após dia". Na ocasião, Fux disse ainda que tinha "absoluta certeza" de que os crimes estavam caracterizados e elogiou o trabalho de Alexandre de Moraes como uma "síntese brilhante".
Esta mudança radical de posição não encontra justificativa em novos elementos fáticos ou jurídicos que tenham surgido entre março e setembro. As provas eram as mesmas, a legislação era a mesma, e a jurisprudência era a mesma. A única coisa que mudou foi o contexto político e as pressões sobre o julgamento.
A inconsistência fica ainda mais evidente quando se considera que Fux validou mais de 400 condenações de manifestantes do 8 de janeiro sem questionar a competência do STF, mas agora, quando se trata dos mandantes, alega incompetência absoluta. Como ele próprio admitiu, "à Corte cabe o papel de fazer constantes revisões criminais", mas a seletividade dessa revisão é politicamente suspeita.
IX. As implicações Políticas e Institucionais
O voto de Fux, independentemente de suas intenções, produz efeitos devastadores sobre a credibilidade do sistema de justiça brasileiro. Ao criar uma série de obstáculos processuais para crimes contra a democracia, o ministro estabelece precedentes que podem ser utilizados para blindar futuras tentativas golpistas.
A tese da incompetência do STF para julgar ex-presidentes por crimes cometidos no cargo, se aceita, criaria uma zona de impunidade para as mais altas autoridades da República. A exigência de provas diretas para crimes de conspiração tornaria praticamente impossível punir golpes articulados pelas elites políticas.
Talvez o efeito mais pernicioso do voto de Fux seja sua contribuição para a normalização da tentativa de golpe de Estado. Ao caracterizar os eventos como "mera cogitação", comparar com manifestações democráticas de 2013, e minimizar a gravidade dos planos conspiratórios, o ministro oferece uma narrativa alternativa que atenua a responsabilidade dos golpistas.
Esta narrativa é particularmente perigosa num contexto em que parte significativa da população ainda não processou adequadamente a gravidade dos atos de 8 de janeiro e das conspirações que os antecederam. O voto de um ministro do STF oferece legitimidade institucional a essa minimização.
X. A questão da imparcialidade judicial
Ao longo do voto, Fux fez críticas veladas mas persistentes à atuação de Alexandre de Moraes, sugerindo que o relator teria "se confundido no papel de juiz, acusador e vítima". O ministro afirmou que:
"o papel de julgador não pode se confundir com o de ator político" e que é preciso "distanciamento da ação penal".
Ironicamente, o voto de Fux revela uma parcialidade ainda maior que aquela que ele critica. A seletividade na aplicação de precedentes, a minimização sistemática das provas, a criação de obstáculos processuais inexistentes na jurisprudência anterior, e a mudança radical de posição entre março e setembro sugerem que o ministro teve suas próprias motivações extra-jurídicas.
A parcialidade fica evidente na diferença de tratamento entre os réus. Fux condenou Mauro Cid e Braga Netto com base nas mesmas provas que considerou insuficientes para condenar Bolsonaro, sem explicar satisfatoriamente essa distinção. Se as provas eram insuficientes para o "chefe da organização criminosa", como poderiam ser suficientes para os subordinados?
Um voto Político disfarçado de Técnica Jurídica
A análise detalhada do voto de Fux revela que, sob uma aparente sofisticação técnica, encontra-se uma peça fundamentalmente política destinada a absolver Jair Bolsonaro das gravíssimas acusações que pesam contra ele. O ministro utilizou sua autoridade jurídica e seu tempo de 14 horas para construir uma narrativa alternativa dos fatos que minimiza a tentativa de golpe, normaliza atos antidemocráticos, e cria precedentes perigosos para a punição de crimes contra a democracia.
Os argumentos centrais do voto - incompetência do STF, cerceamento de defesa, ausência de atos executórios, impossibilidade do autogolpe - não resistem a uma análise jurídica rigorosa. São construções retóricas destinadas a criar obstáculos processuais onde eles não existem, e a estabelecer padrões probatórios impossíveis de serem atingidos em crimes dessa natureza.
O voto de Fux não mudará o resultado do julgamento, mas produzirá efeitos duradouros sobre o sistema de justiça brasileiro. Oferece munição para recursos futuros, legitimidade institucional para narrativas negacionistas, e precedentes que poderão ser invocados para proteger futuras tentativas golpistas. Neste sentido, representa não apenas um erro jurídico, mas um desserviço à democracia brasileira.
A democracia brasileira sobreviveu à tentativa de golpe de 2022-2023, mas o voto de Fux demonstra que suas instituições ainda não processaram adequadamente a gravidade do que ocorreu. Enquanto setores do Judiciário continuarem tratando golpes como "cogitações", a ameaça à estabilidade democrática permanecerá real e presente.
