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Slide de apresentação apresentando o desenvolvimento do conceito de performatividade de gênero de Michel Foucault a Judith Butler
Slide de apresentação apresentando o desenvolvimento do conceito de performatividade de gênero de Michel Foucault a Judith Butler 

Em novembro de 2017, uma cena surreal se desenrolou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Uma multidão gritava palavras de ódio contra uma senhora de 61 anos que acabara de desembarcar para participar de um seminário acadêmico sobre democracia. Judith Butler, uma das filósofas mais influentes do mundo contemporâneo, foi atacada fisicamente com um trolley metálico enquanto tentava deixar o terminal. Do lado de fora, manifestantes queimavam uma efígie representando a intelectual como uma bruxa, com um sutiã rosa anexado ao boneco. A cena, filmada e amplamente divulgada, marcou um dos episódios mais emblemáticos de como teorias acadêmicas sofisticadas podem ser distorcidas para alimentar campanhas de desinformação e pânico moral.


O que levou uma respeitada professora da Universidade da Califórnia, Berkeley, a se tornar o centro de uma controvérsia que mobilizou mais de 370 mil pessoas em uma petição online pedindo o cancelamento de sua palestra? A resposta não está em suas teorias filosóficas sobre gênero e identidade, mas na fabricação deliberada de um espantalho político conhecido como "ideologia de gênero" - uma expressão que não possui fundamentação científica e foi criada especificamente para desqualificar décadas de pesquisa acadêmica séria.


Butler, nascida em 1956, construiu sua carreira como uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo e dos estudos queer. Sua obra seminal, "Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity", publicada em 1990 e traduzida no Brasil como "Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade", revolucionou a compreensão acadêmica sobre gênero, sexualidade e identidade. Com formação sólida em filosofia - obteve seu PhD em Yale em 1984 - Butler desenvolveu conceitos que transformaram não apenas os estudos de gênero, mas influenciaram profundamente campos como a filosofia política, a teoria crítica e os estudos culturais.


O conceito central de seu trabalho é a performatividade de gênero, uma teoria complexa que vai muito além das interpretações simplistas que seus críticos fazem circular. Diferentemente do que alegam os detratores, Butler jamais defendeu que as pessoas podem "escolher" seu gênero livremente ou que as diferenças biológicas entre homens e mulheres não existem. Sua teoria da performatividade propõe que o gênero é um efeito de práticas reiterativas e citacionais, ou seja, é constituído através da repetição constante de atos, gestos e discursos que criam a ilusão de uma identidade de gênero natural e estável.


"A performatividade deve ser compreendida não como um 'ato' singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como uma prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia", explica Butler em seus escritos.

Esta definição esclarece que não se trata de uma escolha consciente ou voluntária, mas de um processo complexo de repetição de normas sociais anteriores que moldam nossa compreensão do que significa ser homem ou mulher.


Linha do tempo da controvérsia sobre "ideologia de gênero" no Brasil (1990-2019)
Linha do tempo da controvérsia sobre "ideologia de gênero" no Brasil (1990-2019)

A filósofa estabelece uma distinção crucial entre performance e performatividade. Enquanto performances pressupõem a existência anterior de um sujeito que atua seu gênero, a noção de performatividade sublinha que não há subjetividade que antecede sua atuação performativa. Como Butler explicita:


"A performatividade de gênero sexual não consiste em eleger de que gênero seremos hoje. Performatividade é reiterar ou repetir as normas mediante as quais nos constituímos".

Esta clarificação é fundamental para compreender por que as acusações de que Butler promove uma ideologia onde "qualquer um pode escolher ser qualquer gênero" são completamente infundadas.


Pessoas segurando cartazes defendendo a inclusão da educação de gênero nas escolas brasileiras durante uma reunião pública
Pessoas segurando cartazes defendendo a inclusão da educação de gênero nas escolas brasileiras durante uma reunião pública 

Outro aspecto frequentemente mal interpretado da teoria butleriana é sua crítica à tradicional distinção entre sexo biológico e gênero cultural. Butler não nega a existência de diferenças biológicas entre corpos, mas questiona como essas diferenças são interpretadas e utilizadas para justificar hierarquias sociais e exclusões. Quando afirma que


"talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula",

Butler não está negando a materialidade dos corpos, mas argumentando que nossa compreensão desses corpos sempre é mediada por interpretações culturais e discursivas.


No entanto, essas nuances filosóficas foram completamente ignoradas pelos criadores da campanha contra a suposta "ideologia de gênero". O termo, que não possui fundamentação científica, constitui-se como uma falácia construída por setores conservadores para desqualificar os estudos de gênero. Sua gênese remonta ao ambiente católico conservador, particularmente aos escritos do argentino Jorge Scala, a partir de 1997. Scala define ideologia como "um corpo fechado de ideias, que parte de um pressuposto básico falso - que por isto deve impor-se evitando toda análise racional". Em sua concepção distorcida, a "ideologia de gênero" teria como "fundamento principal e falso" a ideia de que "o sexo seria o aspecto biológico do ser humano, e o gênero seria a construção social ou cultural do sexo".


Esta definição revela uma compreensão superficial e deturpada dos estudos de gênero, ignorando décadas de produção científica rigorosa desenvolvida por pesquisadores em universidades do mundo inteiro. Como observa um especialista brasileiro, "utilizar o termo 'ideologia de gênero' é um completo equívoco do ponto de vista científico e revela o esforço de grupos em deturpar o conceito de gênero na tentativa de instaurar um pânico social".


A disseminação desta falácia utilizou várias táticas coordenadas: desonestidade intelectual através da formulação de argumentos sem fundamentos científicos replicados em mídias sociais; terrorismo moral com a atribuição do status de demônio às pessoas favoráveis à igualdade de gênero; intimidação profissional através de notificações extrajudiciais contra professores que abordassem temas de gênero; e manipulação emocional usando apelos emotivos sobre "proteção da infância" e "defesa da família". A estratégia foi particularmente eficaz porque articulou as "cruzadas antipedofilia e antigênero", criando um "artefato político e categoria de acusação" que produziu "efeitos decisivos na arena política brasileira contemporânea".


No contexto brasileiro, a reação conservadora aos estudos de gênero ganhou força a partir de 2011, impulsionada por eventos como a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre união homoafetiva e a discussão sobre materiais educativos de combate à homofobia. A primeira menção conjunta de "ideologia" e "gênero" em proposições parlamentares ocorreu em 2012, evoluindo para a primeira referência explícita à "ideologia de gênero" em 2014. O fenômeno articulou "múltiplos atores, em sua maioria conservadores católicos e pentecostais", convergindo em torno de dois temas principais: educação sexual e identidade de gênero.


COMPARAÇÕES ENTRE GÊNERO E 'IDEOLOGIA DE GÊNERO'

Aspecto

Estudos Científicos de Gênero

Narrativa da "Ideologia de Gênero"

Definição de Gênero

Construção social e cultural dos papéis, comportamentos e relações entre sexos

Suposta imposição de que cada pessoa pode escolher livremente seu gênero

Base Científica

Décadas de pesquisa interdisciplinar em sociologia, antropologia, psicologia, filosofia

Rejeitada como ""pseudociência"" ou ""doutrinação marxista""

Relação Sexo/Gênero

Sexo biológico existe, mas papéis de gênero são socialmente construídos

Nega diferenças biológicas entre homens e mulheres

Objetivo dos Estudos

Compreender e reduzir desigualdades, promover equidade e direitos humanos

Supostamente destruir a família tradicional e promover libertinagem

Abordagem Metodológica

Pesquisa empírica, análise crítica, estudos comparativos transculturais

Baseada em panfletos, redes sociais e discursos religiosos/políticos

Perspectiva sobre Identidade

Identidades são complexas, multifacetadas e contextualmente situadas

Identidades são fixas, determinadas biologicamente e imutáveis

Proposta Educacional

Educação para igualdade, combate à discriminação e violência de gênero

Educação como ""sexualização precoce"" e ""doutrinação ideológica""

Visão sobre Família

Reconhece diversidade de arranjos familiares e suas transformações históricas

Defende modelo único de família heterossexual tradicional

Tratamento da Diversidade

Valoriza e protégé a diversidade humana como direito fundamental

Vê diversidade como ameaça à ordem natural e moral

Fundamentação Teórica

Judith Butler, Joan Scott, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, entre outros

Jorge Scala, setores conservadores católicos, fundamentalistas religiosos


Um glossário e uma ilustração de nuvem de palavras destacando diversos conceitos e terminologia de gênero em português, enfatizando a complexidade das discussões de gênero
Um glossário e uma ilustração de nuvem de palavras destacando diversos conceitos e terminologia de gênero em português, enfatizando a complexidade das discussões de gênero 

O episódio mais emblemático dessa mobilização foi precisamente o ataque dirigido contra Judith Butler durante sua visita ao Brasil em novembro de 2017. A filósofa havia sido convidada pelo SESC-SP para participar do seminário "Os Fins da Democracia", focado nos perigos que a democracia enfrenta globalmente. Mesmo antes de sua chegada, Butler foi alvo de uma campanha coordenada que incluiu uma petição online com mais de 370 mil assinaturas pedindo o cancelamento de sua palestra, acusações infundadas de que promovia "corrupção e fragmentação da sociedade", o protesto violento com a queima de efígie representando Butler como bruxa, e a agressão física com trolley metálico no aeroporto.


O protesto revelou a distorção completa das ideias de Butler. Como ela própria observou, os manifestantes "pareciam erroneamente interpretar sua 'teoria performativa de gênero'" como "promovendo a ideia de que alguém pode se tornar qualquer gênero que quiser". Butler esclareceu que sua teoria nunca negou "a existência de limitações" e sempre buscou "criar uma vida mais vivível para todas as pessoas que atravessam o espectro de gênero". A filósofa observou sobre o ataque:


"Não parece haver qualquer evidência de que aqueles que se mobilizaram nesta ocasião tivessem qualquer familiaridade com meu texto 'Problemas de Gênero'".

A estratégia de pânico moral atingiu seu ápice nas eleições presidenciais de 2018, com a reativação do controverso "kit gay". Este material educativo, que nunca foi efetivamente distribuído, foi transformado em símbolo da suposta ameaça da "ideologia de gênero" às crianças. A análise da circulação desses materiais no Twitter revelou como "a disseminação do 'kit gay' como artefato político continua a gerar pânico moral e acusações contra os adversários". Jair Bolsonaro foi repreendido pelo Tribunal Superior Eleitoral por espalhar fake news sobre o conteúdo do material, mas a estratégia foi eficaz eleitoralmente, contribuindo para sua vitória.


Convite para participar de um projeto de pesquisa de estudos feministas com foco em questões de gênero e sexualidade, oferecendo certificados e realizado online 
Convite para participar de um projeto de pesquisa de estudos feministas com foco em questões de gênero e sexualidade, oferecendo certificados e realizado online 

A discussão sobre "ideologia de gênero" deve ser compreendida no contexto mais amplo da "pós-verdade" e da "guerra contra os fatos" através de fake news e teorias conspiratórias. Pesquisadores identificaram que o combate à "ideologia de gênero" encontrou "novos arranjos" considerando "a discussão epistemológica acerca da pós-verdade". A estratégia conservadora passou a valorizar "muito mais a forma dramática e o apelo emocional do que o conteúdo e fontes legítimas". Este fenômeno se caracteriza pela "incessante produção de materiais que valorizam muito mais a forma do que o conteúdo, tal qual como memes, fake news e teorias conspiratórias difundidas nas mídias digitais".


A popularização das mídias sociais a partir de 2010 foi crucial para a disseminação da narrativa antigênero. Os "movimentos de direita conseguem captar de melhor forma esse acontecimento", utilizando plataformas digitais para amplificar suas mensagens. Figuras como "Bernardo Küster, Nando Moura e a grande referência de ambos, Olavo de Carvalho" emergiram como "empreendedores morais" na cruzada contra a suposta "ideologia de gênero". Estes atores utilizaram estratégias de marketing político neoconservador para legitimizar "o combate aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das minorias".


Os efeitos da desinformação foram particularmente devastadores na educação. Levantamento realizado em 2016 mostrou que, dos 22 Planos Estaduais de Educação aprovados, "9 não fazem qualquer referência à palavra 'gênero' e 15 não explicitam o termo 'gênero' nos Princípios ou Diretrizes". Este resultado contraria décadas de construção democrática de políticas educacionais baseadas em documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), e os Princípios de Yogyakarta (2007), que estabeleceram marcos internacionais para a promoção da equidade de gênero na educação.


A comunidade acadêmica brasileira respondeu energicamente às distorções sobre os estudos de gênero. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) publicou o "Manifesto pela Igualdade de Gênero na Educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras", assinado por 113 pesquisadores e grupos de estudos. O Conselho Nacional de Educação também se manifestou, afirmando que "a ausência ou insuficiência de tratamento das referidas singularidades fazem com que os planos de educação que assim as trataram sejam tidos como incompletos". Diversas universidades e associações científicas emitiram declarações em defesa dos estudos de gênero.


Judith Butler falando em um painel de conferência acadêmica com microfone e placa de identificação
Judith Butler falando em um painel de conferência acadêmica com microfone e placa de identificação 

Contrariando as narrativas conservadoras, os estudos de gênero no Brasil consolidaram-se como campo científico respeitável e produtivo. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) emerge como protagonista nacional, estando "entre as 10 instituições, dentre 236, com maior número de grupos e linhas de pesquisa formais sobre estudos de gênero no Brasil". Pesquisas cientométricas mostram que a UFRGS também está "entre as três universidades nacionais com o maior número de artigos na área publicados até 2019". A Universidade Federal da Bahia (UFBA) criou pioneiramente o Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, formando "profissionais aptas(os) a formular, analisar e gerir políticas públicas com perspectiva de gênero e diversidade".


Especialistas brasileiros enfatizam consistentemente a legitimidade científica dos estudos de gênero em contraposição à falácia da "ideologia de gênero". O antropólogo Bernardo Fonseca Machado observa que "essa expressão desqualifica gênero como um conceito e desconsidera seu caráter analítico e científico". Pesquisadores destacam que os estudos de gênero "fazem parte de uma área inter e transdisciplinar que visa refletir a respeito de marcadores de subjetividade, identidade e marcadores sociais" e estão presentes em "21 das 29 Unidades Regionais e Acadêmicas da UFRGS", demonstrando sua transversalidade disciplinar.


O pânico moral criado em torno da "ideologia de gênero" teve consequências concretas e devastadoras. O Brasil mantém estatísticas alarmantes de violência de gênero: entre 1980 e 2013, foram assassinadas 106.093 mulheres no país. Desde 2008, mais de 4 mil mulheres são assassinadas anualmente, com tendência crescente. Relativamente à população LGBTQ+, o Relatório sobre Violência Homofóbica de 2012 registrou 9.982 denúncias de violações dos direitos humanos e pelo menos 310 homicídios de pessoas LGBT. A organização Transgender Europe documentou que, entre 2008 e 2014, o Brasil liderou o ranking mundial de assassinatos de travestis e transexuais, com mais de 600 mortes.


Pessoas segurando cartazes em um protesto público contra a ideologia de gênero, defendendo valores familiares tradicionais e se opondo à ideologia de gênero na educação
Pessoas segurando cartazes em um protesto público contra a ideologia de gênero, defendendo valores familiares tradicionais e se opondo à ideologia de gênero na educação

A mobilização conservadora provocou retrocessos significativos nas políticas públicas. Em setembro de 2015, o Ministério da Educação instituiu o Comitê de Gênero, mas "mediante pressão da Câmara dos Deputados", em apenas 12 dias o comitê foi extinto e substituído por um "Comitê de Combate à Discriminação", eliminando a palavra gênero. Este episódio exemplifica como "as pressões políticas por parte dos grupos de parlamentares fundamentalistas" fizeram com que "o governo federal apenas recue". A estratégia de intimidação chegou ao ponto de circular "modelo de notificação extrajudicial" para professores se absterem de abordar temas de gênero.


A atmosfera de intimidação afetou profundamente a formação e atuação docente. Pesquisas nacionais revelaram que "o nível de atitudes preconceituosas foi de 93,5% em relação a gênero e 87,3% em relação à orientação sexual" nos estabelecimentos educacionais. O "grau de conhecimento de práticas discriminatórias sofridas por estudantes foi de 10,9% por ser mulher e 17,4% por ser homossexual". Estes dados demonstram a urgência de políticas educacionais que promovam a equidade de gênero, contrariando a narrativa conservadora que vê tais iniciativas como ameaça.


A reação conservadora aos estudos de gênero não se limitou ao Brasil, constituindo-se como fenômeno global. Pesquisadores identificam que "as ofensivas antigênero se assentaram, basicamente, sobre redes mais antigas, sobretudo católicas, de oposição ao direito ao aborto". Estas formações são descritas como "muito heterogêneas, como hidras de muitas cabeças que se alimentam de fontes ideológicas heteróclitas ou mesmo contraditórias". O Brasil tornou-se "um dos poucos países do mundo onde a ideologia antigênero está decididamente enraizada no aparelho estatal", junto com Hungria e Polônia.


O governo brasileiro estabeleceu "sólidas parcerias" com outros países conservadores em "várias iniciativas intergovernamentais", incluindo a "Declaração do (chamado) 'Consenso de Genebra sobre Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família'". Estas alianças demonstram a coordenação internacional das ofensivas antigênero. A participação brasileira em "seminários voltados para o debate de 'políticas familiares' e o enfrentamento à 'ideologia de gênero'" revela como a narrativa conservadora se articulou globalmente, utilizando estratégias similares de desinformação e mobilização em diferentes contextos nacionais.


Contrariamente às caricaturas conservadoras, o pensamento de Butler evoluiu significativamente desde "Gender Trouble". Suas reflexões expandiram-se para campos como teoria política, ética da não-violência, e estudos sobre precariedade. Em obras posteriores como "Bodies That Matter" (1993) e trabalhos recentes, Butler aprofundou suas reflexões sobre materialidade corporal e vulnerabilidade. A filósofa desenvolve hoje o conceito de precariedade, propondo "uma crítica da dependência não reconhecida como ponto de partida para uma nova política do corpo". Esta expansão teórica demonstra a contínua relevância e sofisticação de seu pensamento, contrastando com as simplificações conservadoras.


Butler permanece como uma das intelectuais mais citadas mundialmente. Recebeu o prestigioso Prêmio Theodor W. Adorno em 2012 por suas contribuições filosóficas, apesar das controvérsias políticas. Suas palestras acadêmicas são "standing room only", evidenciando o reconhecimento científico de seu trabalho. A influência de Butler transcende a academia, "influindo profundamente em movimentos sociais, políticas de identidade e debates culturais em todo o mundo". Sua obra "não solo ha replanteado el género como una construcción social performativa, sino que también ha cuestionado las categorías binarias y la norma heterosexual".


Apesar do reconhecimento acadêmico, Butler continua enfrentando distorções de suas ideias. Como ela observou sobre o ataque no Brasil: "Não parece haver nenhuma evidência de que aqueles que se mobilizaram nesta ocasião tivessem alguma familiaridade com meu texto Problemas de Gênero". A filósofa reconhece que:


"como opositores da teoria crítica de gênero e raça, esses grupos também se opõem às universidades não pelo dogma ostensivo que ensinam, mas pela mente aberta que correm o risco de produzir".

Butler mantém uma postura reflexiva sobre essas controvérsias, observando que:


"quando fui queimado em efígie no Brasil em 2017, pude ver pessoas gritando sobre gênero, e elas entenderam 'gênero' como 'pedofilia'".

Esta distorção exemplifica como suas teorias são sistematicamente mal representadas para fins políticos.


O caso Butler/ideologia de gênero oferece lições cruciais sobre a importância da educação científica e do letramento crítico. Como observa um especialista, "é importante ter essa discussão dentro e fora da academia e trazê-la para os projetos de pesquisa, extensão e divulgação científica". A resistência acadêmica brasileira demonstrou a vitalidade dos estudos de gênero. Iniciativas como a campanha "Fato Certo Não Tem Erro" foram desenvolvidas com o objetivo de "conscientizar famílias, profissionais da educação e a sociedade em geral e dar subsídios teóricos e jurídicos para o debate sobre as identidades de gênero".


A controvérsia revela desafios mais amplos para a democracia brasileira. Como observa um pesquisador, o fenômeno "desafia os direitos das mulheres e da população LGBTQ+, a laicidade do Estado e a própria democracia". A articulação entre fundamentalismo religioso e extremismo político representa uma ameaça às instituições democráticas. A experiência brasileira tornou-se caso de estudo internacional sobre como movimentos antigênero podem capturar aparelhos estatais. A necessidade de "desenvolver a capacidade de dialogar de forma civilizada com quem pensa diferente" permanece urgente para a "superação das diferenças".


Apesar dos retrocessos, a resistência acadêmica e social mantém viva a esperança de reversão deste quadro. O crescimento dos estudos de gênero nas universidades brasileiras, a produção científica robusta na área, e a mobilização de organizações da sociedade civil demonstram a resiliência do conhecimento científico. Como Butler afirma, sua teoria sempre buscou:


"oferecer mais linguagem e reconhecimento àqueles que se viram condenados ao ostracismo por não confirmarem as ideias restritivas do que significa ser homem ou mulher".

Este objetivo humanitário e científico permanece relevante diante dos desafios contemporâneos.


A história de Judith Butler e da fabricação da "ideologia de gênero" no Brasil constitui um episódio exemplar de como teorias acadêmicas sofisticadas podem ser distorcidas para fins políticos, gerando pânico moral e retrocessos nas políticas públicas. Também demonstra, no entanto, a capacidade de resistência da comunidade científica e a importância de defender o conhecimento rigoroso contra a desinformação organizada. O legado de Butler permanece como contribuição fundamental para a compreensão da complexidade humana e para a construção de sociedades mais justas e inclusivas, independentemente das tempestades políticas que possam se formar ao seu redor.

 
 
 

Atualizado: 31 de ago.

Na madrugada silenciosa de sábado, 30 de agosto de 2025, às 00h40, o Brasil perdeu uma de suas vozes literárias mais queridas e reconhecidas. Luis Fernando Veríssimo, o mestre da crônica brasileira, morreu aos 88 anos no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, vítima de complicações decorrentes de uma pneumonia. Estava internado na UTI desde 11 de agosto, travando sua última batalha contra uma doença que se iniciou como um simples princípio de pneumonia, mas que evoluiu gravemente devido às múltiplas fragilidades de saúde que enfrentava nos últimos anos.


Luis Fernando Verissimo é autor de mais de 70 livros publicados (Foto: TV Globo, Reprodução)
Luis Fernando Verissimo é autor de mais de 70 livros publicados (Foto: TV Globo, Reprodução)

O escritor partiu "tranquilo, como sempre viveu", segundo palavras de sua família, rodeado pelo amor incondicional de Lúcia Helena Massa, sua companheira por 61 anos de casamento, e dos três filhos: Pedro, Fernanda e Mariana Veríssimo. Sua partida marca o fim de uma era dourada da literatura nacional, deixando órfãos milhões de leitores que cresceram sorrindo e refletindo com suas crônicas geniais.


O menino que viveu entre dois mundos


Luis Fernando Lopes Veríssimo nasceu em 26 de setembro de 1936, em Porto Alegre, como herdeiro de um dos maiores legados literários do Brasil - era filho de Érico Veríssimo e Mafalda Halfen Volpe. Mas sua formação foi profundamente marcada por uma infância cosmopolita que moldaria para sempre sua visão de mundo e seu estilo único de escrever.


Entre 1941 e 1945, ainda criança, viveu nos Estados Unidos, onde seu pai lecionou literatura brasileira nas prestigiosas universidades de Berkeley e Oakland, na Califórnia. Ali, o pequeno Luis cursou o ensino primário em San Francisco e Los Angeles, absorvendo desde cedo a influência da cultura americana que deixaria marcas permanentes em sua personalidade e obra.


Em 1953, a família Veríssimo retornou à América quando Érico assumiu a direção do Departamento Cultural da União Pan-Americana, em Washington, só regressando definitivamente ao Brasil em 1956. Durante esses anos formativos nos Estados Unidos, Luis Fernando estudou no Roosevelt High School, em Washington, período crucial onde desenvolveu sua paixão inabalável pelo jazz e aprendeu a tocar saxofone - instrumento que se tornaria uma constante em sua vida, chegando a formar o grupo musical "Jazz 6" décadas depois.


Essa experiência bicultural foi fundamental para moldar sua sensibilidade literária única: Luis Fernando cresceu dominando perfeitamente o inglês - tanto que, ironicamente, nos seus últimos anos, após o AVC de 2021, as poucas palavras que conseguia pronunciar eram em inglês, como se a doença o tivesse reconectado com suas raízes americanas da juventude.


Os primeiros assos na literatura e no jornalismo


De volta a Porto Alegre, Luis Fernando inicialmente trabalhou na Editora Globo, no departamento de artes. Em 1960, revelando sua face musical, passou a integrar o conjunto "Renato e seu Sexteto", que se apresentava profissionalmente na capital gaúcha. Era um jovem em busca de sua identidade, dividido entre a música - sua verdadeira paixão - e a escrita, que parecia estar em seu DNA familiar.


Em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como tradutor e redator publicitário. Foi nesta fase que conheceu Lúcia Helena Massa, uma carioca por quem se apaixonou perdidamente e com quem se casou em 1963, construindo um dos relacionamentos mais sólidos e duradouros da literatura brasileira - união que duraria impressionantes 61 anos.


O ano de 1967 marcou um divisor de águas em sua carreira: retornou a Porto Alegre e ingressou no jornal Zero Hora como revisor de textos - função aparentemente modesta que se revelaria o pontapé inicial de uma trajetória extraordinária. A partir de 1969, conseguiu assinar sua própria coluna diária, inicialmente focada no Internacional, clube pelo qual nutria uma paixão fanática que duraria toda a vida.


Paralelamente, começou a trabalhar na agência de publicidade MPM Propaganda, desenvolvendo suas habilidades criativas em múltiplas frentes. Entre 1970 e 1975, expandiu sua atuação jornalística trabalhando no jornal Folha da Manhã, escrevendo sobre esporte, música, cinema, literatura e política - sempre com o humor bem-humorado que se tornaria sua marca registrada.


O nascimento de um fenômeno editorial


Em 1971, juntamente com um grupo de amigos da imprensa e da publicidade porto-alegrense, Luis Fernando criou o semanário alternativo "O Pato Macho", com textos de humor. Era uma publicação irreverente que já mostrava sinais do que viria a ser seu estilo inconfundível: crítica social envolvida em humor inteligente.


O ano de 1973 marcou oficialmente o nascimento do escritor Luis Fernando Veríssimo com a publicação de "O Popular", seu primeiro livro. A obra abriu caminho para uma produção literária consistente que se estenderia por mais de cinco décadas. Desde então, construiu uma marca literária indissociável do humor crítico e da ironia leve, características que sustentaram o interesse constante de editoras, jornais e do público leitor.


Sua capacidade de transformar o cotidiano banal em extraordinário logo se tornou evidente. Luis Fernando tinha o dom raro de fazer os leitores rirem de suas próprias fraquezas e absurdos, criando uma identificação profunda com a classe média brasileira. Suas crônicas publicadas no Zero Hora, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e na revista Veja transformaram-no no cronista mais lido do país.


Os personagens que conquistaram o brasil


O universo criativo de Veríssimo deu vida a personagens que transcenderam as páginas dos livros para se tornarem patrimônio cultural nacional. O Analista de Bagé, criado em 1981, foi um fenômeno editorial e cultural sem precedentes - um psicanalista de formação freudiana ortodoxa, mas com sotaque, linguajar e costumes típicos da fronteira gaúcha. O livro teve a primeira edição esgotada em apenas uma semana, revelando a fome do público por aquele tipo de humor inteligente.


O personagem inspirou histórias em quadrinhos desenhadas por Edgar Vasques e chegou até mesmo ao cinema, consolidando Veríssimo como um criador de personagens memoráveis. O Analista representava a genialidade do autor em combinar o erudito com o popular, o universal com o regional, criando algo genuinamente brasileiro e ao mesmo tempo universalmente compreensível.


A Velhinha de Taubaté, lançada em 1983, era "a única pessoa que ainda acreditava no governo" durante os estertores da ditadura militar. Com essa criação, Veríssimo demonstrou sua capacidade excepcional de usar o humor como instrumento de crítica social e política, sempre de forma sutil e inteligente, nunca panfletária ou agressiva.


Ed Mort, o detetive criado em 1979, tornou-se protagonista de tiras em quadrinhos e ganhou adaptação cinematográfica com Paulo Betti no papel-título. O personagem representava a versão brasileira e bem-humorada dos detetives noir americanos, mais uma demonstração da habilidade de Veríssimo em antropofagiar influências estrangeiras e criar algo genuinamente nacional.


A Família Brasil, criada em 1988 e publicada no Estadão por quase três décadas, tornou-se um retrato definitivo da classe média brasileira. Composta por personagens arquetípicos - o pai de profissão desconhecida, a mãe dona de casa, o filho adolescente, a filha e o namorado Boca - a tirinha acompanhou e comentou as transformações do país por quase 30 anos, até ser encerrada pelo próprio autor em agosto de 2017.


O império literário de um Mestre


Ao longo de sua carreira, Luis Fernando Veríssimo construiu um verdadeiro império editorial, publicando mais de 80 livros que somaram impressionantes 5,6 milhões de exemplares vendidos. Suas obras foram traduzidas para mais de 15 idiomas, levando o humor brasileiro para o mundo inteiro.


Entre suas obras mais significativas estão "Comédias da Vida Privada" (1994), que se tornou um marco da literatura brasileira e foi adaptada para a televisão pela Rede Globo entre 1995 e 1997. A série, com roteiros de Jorge Furtado e direção de Guel Arraes, foi um marco na televisão nacional, provando que era possível fazer entretenimento inteligente e de qualidade. O sucesso foi tão grande que gerou uma sequência: "Novas Comédias da Vida Privada" (1996).


Outras obras fundamentais incluem "O Gigolô das Palavras" (1982), "Peças Íntimas" (1990), "Ed Mort, Todas as Histórias" (1997), "Borges e os Orangotangos Eternos" (2000), "O Clube dos Anjos" (1998) e "Comédias para se Ler na Escola" (2000) - esta última particularmente importante por democratizar a literatura, introduzindo gerações de jovens ao prazer da leitura.


O reconhecimento de uma carreira brilhante


Luis Fernando Veríssimo acumulou ao longo da vida diversos prêmios e reconhecimentos que atestavam sua importância na cultura brasileira. Em 1989, recebeu o Prêmio Direitos Humanos da OAB. Em 1995, foi eleito "Homem de Ideias do ano" pelo caderno "Ideias" do Jornal do Brasil.


O ano de 1996 foi especialmente pródigo em homenagens: recebeu a "Medalha de Resistência Chico Mendes" da ONG Tortura Nunca Mais, a "Medalha do Mérito Pedro Ernesto" da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e o "Prêmio Formador de Opinião" da Associação Brasileira de Empresas de Relações Públicas.


Em 1997, coroou essa sequência de reconhecimentos com o "Prêmio Juca Pato" da União Brasileira de Escritores como Intelectual do ano. Em 1999, recebeu ainda o Prêmio Multicultural Estadão. O ápice veio em 2013, quando conquistou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Ficção com "Diálogos Impossíveis", o mais prestigioso reconhecimento da literatura nacional.


A paixão musical que nunca se apagou


Paralelamente à carreira literária, Luis Fernando Veríssimo manteve sempre acesa sua paixão pela música, especialmente o jazz. Em 1995, por iniciativa do contrabaixista Jorge Gerhardt, foi criado o grupo "Jazz 6" - ironicamente "o menor sexteto do mundo", com apenas 5 integrantes. Além de Veríssimo no saxofone e Gerhardt no contrabaixo, faziam parte do grupo Luiz Fernando Rocha (trompete e flugelhorn), Adão Pinheiro (piano) e Gilberto Lima (bateria).


O grupo lançou quatro CDs: "Agora é a Hora" (1997), "Speak Low" (2000), "A Bossa do Jazz" (2003) e "Four" (2006). Como os demais membros eram "músicos em tempo integral", o grupo dependia da agenda de Veríssimo para se apresentar, mas manteve-se ativo por anos, revelando a face musical de um homem que sempre sonhou secretamente em viver apenas da música.


Em 2015, gravou um CD especial com a dupla Kleiton & Kledir, demonstrando que mesmo na velhice mantinha vivo seu amor pelos sons. O saxofone, que aprendeu aos 16 anos quando morava nos Estados Unidos, foi seu companheiro fiel por décadas, só sendo abandonado nos últimos anos devido às limitações impostas pela doença de Parkinson.


O homem por trás do escritor


Luis Fernando Veríssimo era conhecido por sua personalidade extremamente reservada e lacônica. "Nunca fui muito íntimo de mim mesmo, nunca examinei o que eu fiz, o que eu deixo de fazer", declarou quando completou 80 anos. Era um homem de poucas palavras na vida real, contrastando com a verborragia criativa de seus textos.


Lúcia Helena Massa, sua esposa, foi descrita como "sua voz" - ela "fazia as coisas da vida para ele": resolvia problemas, ia aos bancos, entregava as colunas nos jornais nos tempos pré-internet. Era "sua razão de fazer a vida andar com calma e amor", o alicerce que permitia que o gênio criativo de Luis Fernando florescesse sem as preocupações cotidianas.


O casal teve três filhos: Fernanda, a mais velha, que mora perto dos pais e se dedica atualmente à memória do avô Érico Veríssimo no ano em que se comemoram 120 anos de seu nascimento e 50 de sua morte. Fernanda deu ao casal a neta Lucinda, hoje com 17 anos. Mariana mora em São Paulo e presenteou-os com o neto Davi, de 12 anos. Pedro, o caçula, era publicitário e hoje canta e compõe, seguindo as inclinações musicais do pai.


Durante toda a vida, Luis Fernando viveu na mesma casa do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, adquirida por seu pai Érico Veríssimo em 1941. A casa familiar foi o refúgio onde ele criou suas obras mais importantes e onde passou os últimos anos cercado pelo carinho da família.

As convicções políticas e sociais


Politicamente, Luis Fernando nunca escondeu suas convicções de esquerda, chegando a se definir como "um esquerdista desiludido". "Em um país com tanta desigualdade social, ser de esquerda não é uma opção, é decorrência", declarou, resumindo sua visão sobre o papel do intelectual na sociedade brasileira.


Durante a ditadura militar, usou seu humor como forma de resistência sutil mas efetiva. Personagens como A Velhinha de Taubaté eram claras críticas ao regime, mas apresentadas de forma tão inteligente e bem-humorada que escapavam da censura. Era um mestre da crítica social indireta, capaz de denunciar absurdos sem jamais cair no panfleto ou na agressividade gratuita.


Nos últimos anos, no entanto, desinteressou-se pelas questões políticas.


"Nos últimos tempos se desinteressou. Um sábio", comentou Lúcia, "certamente olhando o quadro caótico que vivemos nesta área".

Era como se, na sabedoria da velhice, tivesse compreendido que sua contribuição para o país já estava dada através de sua obra literária.


Os últimos anos: A luta contra as adversidades


Os anos finais da vida de Luis Fernando Veríssimo foram marcados por uma sucessão de problemas de saúde que gradualmente limitaram suas capacidades. Em 2016, foi necessário implantar um marca-passo após complicações cardíacas. Desenvolveu também a doença de Parkinson, que afetou progressivamente seus movimentos.


O golpe mais devastador veio em janeiro de 2021, quando sofreu um grave acidente vascular cerebral (AVC) que afetou sua capacidade cognitiva de ordenar pensamentos, forçando-o a se afastar definitivamente da escrita - atividade que exercera por mais de cinco décadas. "O escritor já não consegue mais escrever e tem dificuldades para falar", informou a família.


Paradoxalmente, uma das sequelas mais curiosas do AVC foi que Luis Fernando mantinha maior facilidade para se comunicar em inglês do que em português - como se a doença o tivesse reconectado com os anos de formação nos Estados Unidos.


"As poucas palavras que conseguia pronunciar eram em inglês", relatou Lúcia à Folha de S. Paulo.

Nos últimos anos, enfrentou ainda outros problemas: câncer na mandíbula (com cirurgia em novembro de 2020), câncer de pele, herpes zoster e diversas infecções. Em 2013, já havia passado por uma grave internação na UTI devido a uma gripe que evoluiu para infecção generalizada.


"Para quem passou a vida escrevendo, fazendo humor através das palavras, sendo escritor, cartunista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista, os últimos tempos de LFV foram difíceis, complicados e de sofrimento, embora ele nunca se queixasse", relatou o jornal Brasil de Fato.

Os últimos dias: A pneumonia fatal


Em 11 de agosto de 2025, Luis Fernando Veríssimo deu entrada no Hospital Moinhos de Vento com o que inicialmente parecia ser um "princípio de pneumonia leve". Segundo informações divulgadas pela família em 17 de agosto, ele estava internado "desde a semana anterior por conta de uma pneumonia leve que foi piorando".


O quadro, que inicialmente não parecia grave, foi se complicando progressivamente. O boletim médico de 17 de agosto já classificava seu estado como "grave", informando que o paciente "encontra-se internado no Centro de Terapia Intensiva Adulto da instituição, em estado grave, recebendo todas as medidas de suporte necessárias".


Durante os 19 dias de internação, Luis Fernando lutou contra as complicações da pneumonia, agravadas por suas múltiplas comorbidades: Parkinson, problemas cardíacos, sequelas do AVC de 2021 e a idade avançada de 88 anos. Era uma batalha desigual contra um organismo já debilitado por anos de luta contra diversas enfermidades.


Na madrugada de sábado, 30 de agosto de 2025, às 00h40, o coração do grande cronista parou de bater.


"O Hospital Moinhos de Vento comunica o falecimento do escritor e cronista Luis Fernando Verissimo, às 00h40 deste sábado (30), devido a complicações decorrentes de uma pneumonia", informou a nota oficial da instituição.

A filosofia diante da morte


Ao longo de sua vida, Luis Fernando Veríssimo sempre encarou a morte com a mesma mistura de melancolia e ironia que caracterizava toda sua obra. Em 2011, declarou à Folha de S. Paulo:


"A morte é uma injustiça, essa é a melhor descrição. Mas temos que viver com ela". "Estamos nos tornando mais lentos de pensamento. Nesse aspecto, sinto a velhice. Mas o que resta é tentar aproveitar a vida da melhor forma. Enquanto eu puder aproveitar minha janela, ir ao cinema, viajar, vou levando".

Dois anos depois, em 2013, após uma grave internação na UTI, foi ainda mais contundente: "A morte é uma sacanagem. Estou cada vez mais contra". Era uma declaração típica de seu humor: transformar o drama existencial em uma frase ao mesmo tempo profunda e engraçada.


Em outra ocasião, demonstrou sua visão filosófica da existência:


"Uma vez me perguntaram o que eu achava da passagem do tempo, e eu disse: sou contra. Mas, no fim, é o tempo que nos controla".

E completava com sua sabedoria melancólica:


"No fim, pensando bem, a vida é uma grande piada. Acontece tudo isso com a gente, e a gente morre... que piada, né? Que piada de mau gosto. Mas acho que temos que encarar isso com uma certa resignação, uma certa bonomia [bondade]".

O legado imortal de um gênio


Luis Fernando Veríssimo deixa um legado literário inestimável: mais de 80 livros publicados, 5,6 milhões de exemplares vendidos, obras traduzidas para mais de 15 idiomas e uma influência que marca gerações de escritores brasileiros. Mais do que números, deixa a certeza de que a literatura pode ser, simultaneamente, profunda e acessível, crítica e amorosa, universal e intimamente brasileira.


Suas crônicas democratizaram o ato de ler no Brasil, especialmente através de livros como "Comédias Para Se Ler na Escola", que introduziram milhares de jovens ao prazer da literatura. Sua escrita fluida, despojada de preciosismos, conseguia abordar temas complexos - desde relacionamentos amorosos até críticas sociais - com uma leveza que nunca comprometia a profundidade.


Era capaz de fazer o leitor refletir enquanto sorria - uma combinação rara e preciosa na literatura mundial. Seus personagens - O Analista de Bagé, Ed Mort, A Velhinha de Taubaté, A Família Brasil - tornaram-se patrimônio cultural brasileiro, povoando o imaginário coletivo com a mesma força de personagens clássicos da literatura universal.


"Sábio é quem conhece os limites da própria ignorância... e ainda assim se arrisca" - uma de suas frases que resume perfeitamente a trajetória de quem nunca deixou de se surpreender com a vida e de nos surpreender com suas palavras.


A despedida de uma nação agradecida


A morte de Luis Fernando Veríssimo provocou uma comoção nacional raramente vista pela perda de um escritor. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou pesar pela perda de quem classificou como "dono de múltiplos talentos" e criador de "personagens inesquecíveis".


O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, decretou três dias de luto oficial no estado e declarou que "o Rio Grande do Sul se despede de um gênio da escrita, mas suas histórias seguirão entre nós, pois são imortais". O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, afirmou que "a cultura do Rio Grande do Sul e do Brasil tem um lugar reservado para Veríssimo".


O Sport Club Internacional, clube pelo qual Veríssimo declarou paixão durante toda a vida, relembrou um trecho da crônica "Não me acordem", sobre o título do Mundial de Clubes de 2006, chamando-o de "um dos maiores nomes da literatura nacional".


A escritora Martha Medeiros resumiu o sentimento de uma geração inteira:


"Obrigada, mestre, por todas as linhas, reflexões, epifanias, risadas, por toda a sua absoluta e inquestionável genialidade".

A eternidade do verbo


Luis Fernando Veríssimo morreu, mas sua palavra permanece viva e vibrante. Em cada página que escreveu, em cada personagem que criou, em cada sorriso que provocou, em cada reflexão que despertou, ele conquistou a única imortalidade possível para um escritor: viver eternamente na memória e no coração de seus leitores.


Hoje, quando se cala para sempre a voz que nos ensinou a rir de nós mesmos e a encontrar poesia no cotidiano mais prosaico, o Brasil perde não apenas um escritor, mas um intérprete sagaz de sua própria alma. Partiu o homem que transformou o ordinário em extraordinário, que fez do riso uma forma de resistência e da crônica uma arte maior.


Nas palavras que ele mesmo poderia ter escrito: partiu o cronista que soube, como poucos, capturar a essência do que significa ser brasileiro. Seu nome permanecerá eternamente ligado àqueles que compreenderam que a literatura não é um ornamento da cultura, mas sua própria essência.


Luis Fernando Veríssimo: 26 de setembro de 1936 - 30 de agosto de 2025.


O cronista da vida privada brasileira que se tornou patrimônio público de uma nação inteira. O gigante das letras que nos fez gigantes no riso e na reflexão. O mestre que nos ensinou que, mesmo diante dos absurdos da vida, sempre é possível encontrar uma razão para sorrir.


Descanse em paz, mestre. Suas palavras são eternas.

 
 
 

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Instituto Nacional do Seguro Social (CPMI do INSS), instalada em agosto de 2025, emerge em um contexto de fraudes bilionárias que atravessaram três governos e expõem uma teia complexa de interesses políticos, empresariais e corporativos. Longe de ser apenas uma investigação técnica, a CPMI revela-se como um teatro político onde alguns dos próprios protagonistas das irregularidades tentam controlar a narrativa e encobrir suas responsabilidades históricas.


Evolução dos descontos fraudulentos no INSS de 2016 a 2024, mostrando como o esquema cresceu durante diferentes governos
Evolução dos descontos fraudulentos no INSS de 2016 a 2024, mostrando como o esquema cresceu durante diferentes governos

A anatomia de um esquema bilionário


O esquema de fraudes no INSS representa uma das maiores sangrias de recursos públicos da história recente do Brasil. Entre 2019 e 2024, estima-se que R$ 6,3 bilhões foram desviados através de descontos irregulares nas aposentadorias e pensões de milhões de brasileiros. O prejuízo potencial pode chegar a R$ 10 bilhões considerando todo o período investigado.


A operação criminosa funcionava através de um sistema aparentemente legítimo de Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) entre o INSS e entidades associativas. Essas organizações, muitas delas de fachada, descontavam mensalidades diretamente dos benefícios previdenciários sob o pretexto de oferecer serviços como assistência jurídica, odontológica e descontos comerciais.


A realidade, porém, era bem diferente. Investigações da Controladoria-Geral da União (CGU) revelaram que 97,6% dos beneficiários entrevistados afirmaram não ter autorizado os descontos. A falsificação de assinaturas era sistemática, com "fábricas" dedicadas exclusivamente à produção de documentos fraudulentos.


No centro do escândalo encontra-se a Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer), presidida pelo empresário mineiro Carlos Roberto Ferreira Lopes. A entidade, que se apresenta como defensora de indígenas e pequenos agricultores, é na verdade controlada por um proeminente pecuarista do agronegócio com extensos negócios pessoais.


Conafer - Foto: Reprodução
Conafer - Foto: Reprodução

A Conafer recebeu R$ 688 milhões em repasses do INSS até o começo de 2025, tornando-se a entidade que mais arrecadou através dos descontos fraudulentos. O crescimento da organização foi explosivo: passou de 231 mil associados em 2021 para 641 mil em 2023, representando um aumento de quase 180% em dois anos.


Durante a pandemia de COVID-19, quando os brasileiros enfrentavam suas maiores dificuldades, a Conafer promoveu a inclusão de descontos em 73.108 benefícios em apenas quatro meses (abril a julho de 2020), equivalente a aproximadamente 610 novos "filiados" por dia. Esse crescimento anômalo ocorreu justamente quando as agências do INSS estavam fechadas e os idosos tinham menor capacidade de detectar as fraudes.


A evolução histórica das fraudes


Governo Temer (2016-2018): As sementes da corrupção


Michel Temer - Getty Images
Michel Temer - Getty Images

As fraudes no INSS não surgiram do nada. Suas raízes remontam ao governo de Michel Temer, quando as bases legais e operacionais foram criadas ou flexibilizadas para permitir o esquema. Durante esse período, os descontos fraudulentos saltaram de R$ 413 milhões em 2016 para R$ 617 milhões em 2018.


Um marco crucial foi a implementação da "transformação digital" em 2017, que suspendeu o envio de extratos em papel e transferiu tudo para o aplicativo Meu INSS. Embora apresentada como modernização, essa medida deixou milhões de idosos sem meios eficazes de acompanhar seus descontos, criando um ambiente propício para as fraudes.


Já em 2016, servidores do INSS denunciavam repasses suspeitos a associações, mas essas denúncias foram sistematicamente abafadas. Um servidor responsável por contratos denunciou à Polícia Federal repasses irregulares a uma associação de peritos médicos, mas não apenas não houve investigação como o próprio denunciante foi transferido para um setor conhecido como "cemitério de elefantes brancos".


Governo Bolsonaro (2019-2022): A consolidação criminal


O ex-presidente Jair Bolsonaro  • 09/06/2025 - Ton Molina
O ex-presidente Jair Bolsonaro  • 09/06/2025 - Ton Molina

Se o governo Temer plantou as sementes, foi durante o mandato de Jair Bolsonaro que o esquema floresceu e se consolidou em escala industrial. Os números são eloquentes: os descontos fraudulentos mantiveram-se relativamente estáveis entre R$ 604 milhões em 2019 e R$ 706 milhões em 2022.


O período foi marcado por mudanças legislativas que facilitaram ainda mais as fraudes. A Medida Provisória 871/2019 inicialmente exigia renovação anual das autorizações de desconto, mas a Lei 14.438/2022, sancionada por Bolsonaro sem vetos, eliminou esse requisito de segurança. Como resumiu o ministro Wolney Queiroz: "Entre 2019 e 2022 é que o ladrão entra na casa".


Durante esse período, 10 das 11 entidades hoje investigadas pela Polícia Federal assinaram acordos de cooperação técnica com o INSS entre 2021 e 2022. Essa concentração não é coincidência, mas resultado de uma política deliberada de afrouxamento dos controles.


Governo Lula (2023-2025): A descoberta e o enfrentamento


Lula - Reprodução YouTube
Lula - Reprodução YouTube

Paradoxalmente, foi durante o terceiro governo Lula que tanto ocorreu a explosão final das fraudes quanto sua definitiva exposição e combate. Os números mostram um crescimento vertiginoso: de R$ 706 milhões em 2022 para R$ 1,2 bilhão em 2023 e impressionantes R$ 2,8 bilhões em 2024.


Esse crescimento aparentemente paradoxal explica-se pelo fato de que o governo Lula herdou um sistema completamente comprometido, com acordos fraudulentos já estabelecidos e mecanismos de controle destruídos pelos governos anteriores. As entidades continuaram operando com base nos contratos firmados anteriormente, mas agora em escala exponencial.


A diferença fundamental foi a resposta governamental. Enquanto os governos anteriores ignoraram ou facilitaram as fraudes, o governo Lula desencadeou a Operação Sem Desconto em abril de 2025, suspendeu todos os acordos suspeitos, bloqueou R$ 2,8 bilhões em bens dos fraudadores e já devolveu mais de R$ 1 bilhão aos aposentados lesados.


A rede de proteção interna


Uma das revelações mais chocantes das investigações é o nível de infiltração do esquema criminoso dentro do próprio INSS. A operação contava com uma rede de servidores estrategicamente posicionados que garantiam proteção e continuidade às fraudes.


Alessando Roosevelt
Alessando Roosevelt

Alessandro Roosevelt, diretor de benefícios do INSS, descobriu as irregularidades da Conafer em 2020 e tentou suspender os repasses. Ele identificou que a entidade havia incluído descontos em mais de 95 mil benefícios em apenas quatro meses, exigindo na prática a coleta de mais de 600 autorizações por dia. Roosevelt chegou a alertar o Ministério Público Federal sobre as irregularidades.


No entanto, sua investigação foi sabotada internamente. Em outubro de 2020, uma portaria assinada pelo então presidente do INSS Leonardo José Rolim retirou de Roosevelt a atribuição de fiscalizar a Conafer, transferindo-a para outra diretoria. A nova diretoria, chefiada por Jobson de Paiva Silveira Sales, rapidamente produziu uma nota técnica favorável à Conafer.


Os operadores da Fraude
Os operadores da Fraude

O papel de Jucimar Fonseca da Silva foi particularmente relevante. Conhecido como "Soldado do Proerd", Jucimar era ex-policial militar e ex-vereador pelo PR (atual PL) em Manacapuru, Amazonas. Como Chefe da Divisão de Consignação em Benefícios do INSS, ele liderou um comitê interno que "investigou" as suspeitas sobre a Conafer em 2022.


O relatório final de Jucimar, baseado apenas em documentos fornecidos pela própria Conafer, concluiu não haver "nem grave e nem iminente risco" nos descontos da entidade. Essa "investigação" ocorreu quando já havia um inquérito da Polícia Federal em andamento e múltiplos alertas internos sobre fraudes.


Ingrid Ambrozi, servidora da diretoria de Jobson de Paiva, produziu uma nota técnica defendendo a "presunção da boa-fé" em relação à Conafer. Sua análise, que não tinha poder de decisão mas influenciou fortemente o processo, baseou-se exclusivamente em documentos apresentados pela própria entidade investigada, considerando o "contexto da pandemia" como justificativa para as irregularidades.


A presença de Ingrid Ambrozi nos quadros do INSS desde pelo menos 2003 e sua ascensão a posições-chave coincidindo com o período de maior crescimento das fraudes levanta questões sobre a penetração de longo prazo do esquema na estrutura do órgão.


A CPMI como Cortina de Fumaça


A análise da composição e dos primeiros movimentos da CPMI revela sinais claros de que ela pode servir mais para encobrir responsabilidades do que para esclarecê-las. O senador Carlos Viana (Podemos-MG), eleito presidente da comissão, foi figura central na onda bolsonarista de 2018 e mantém posições críticas ao governo Lula.


Viana, que teve pouco protagonismo durante seu mandato, subitamente ganhou destaque ao assumir a presidência da CPMI. Suas declarações iniciais, embora prometendo "isenção", revelam um foco narrativo específico: concentrar as investigações no período mais recente (governo Lula) quando as fraudes se tornaram visíveis, evitando aprofundar as responsabilidades históricas dos governos que criaram e consolidaram o esquema.


Carlos Viana preside a CPMI, ao lado do vice-presidente, Duarte Jr., e do relator, Alfredo Gaspar - Fonte: Agência Senado
Carlos Viana preside a CPMI, ao lado do vice-presidente, Duarte Jr., e do relator, Alfredo Gaspar - Fonte: Agência Senado

Uma das principais estratégias da "cortina de fumaça" é inverter a narrativa temporal. Embora os dados mostrem claramente que as fraudes começaram no governo Temer e se consolidaram sob Bolsonaro, parte da comissão tenta focar exclusivamente no período 2023-2024, quando os números explodiam devido aos contratos fraudulentos já estabelecidos.


Como observou o deputado Pedro Campos (PSB-PE), líder do PSB na Câmara: "Vê-se um escândalo de corrupção que começou num governo e continuou no seguinte [...] Achar que o melhor lugar para investigar isso é dentro de uma CPI, no próprio Congresso Federal, não me parece inteligente. O que a gente vê, na verdade, é uma tentativa de criar uma cortina de fumaça".


A própria dinâmica da CPMI favorece essa inversão narrativa. Com mais de 800 requerimentos já apresentados, muitos focam exclusivamente em figuras do atual governo, como o irmão do presidente Lula, José Ferreira da Silva (Frei Chico), que é vice-presidente do Sindnapi, uma das entidades investigadas.


Analistas políticos alertam que a CPMI será marcada por "forte debate e tentativas de politização das investigações". Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP) chegou a alertar explicitamente para o risco de o governo usar a CPMI como "cortina de fumaça" para desviar a atenção das pautas da oposição.


O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) já sinalizou que usará a comissão para "cobrar investigações rigorosas", mas sem mencionar as responsabilidades históricas dos governos de direita que criaram as condições para o esquema.


As conexões políticas obscuras


Carlos Lopes
Carlos Lopes

A figura de Carlos Roberto Ferreira Lopes, presidente da Conafer, revela conexões profundas com o sistema político brasileiro. Além de ser um proeminente pecuarista do agronegócio, Lopes construiu uma rede de influência que atravessa diferentes espectros políticos.


Um de seus principais aliados é o senador Francisco Rodrigues (PSB-RR), a quem Lopes chama de "amigo e orientador". Rodrigues já foi flagrado com dinheiro na cueca em operação da Polícia Federal e defendeu o garimpo em terras indígenas. Seu avião foi flagrado circulando em garimpo ilegal em terra Yanomami em 2018.


Lopes também manteve relações próximas com diferentes governos. Em novembro de 2024, cinco meses antes da Operação Sem Desconto, ele assinou um Protocolo de Intenções com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A Conafer conseguiu 31 reuniões oficiais com representantes do governo federal só em 2024, a maioria com os ministérios da Agricultura e das Comunicações.


Enquanto a Conafer recebia centenas de milhões em repasses fraudulentos do INSS, Carlos Lopes diversificava agressivamente seus negócios pessoais. Entre 2020 e 2024, ele abriu empresas de genética bovina, uma loja de arte indígena, uma mineradora e até uma holding nos Estados Unidos chamada Farmlands.


Terra Bank logo
Terra Bank logo

Mas o mais revelador foi a criação do Terra Bank em outubro de 2021, no auge do aumento dos repasses do INSS à Conafer. Embora oficialmente pertencesse ao empresário Cícero Santos, documentos obtidos pelo Intercept mostram que o verdadeiro dono do banco digital é o próprio Lopes através de sua holding americana.


A Polícia Federal identificou transferências diretas entre a Conafer, Carlos Lopes, Cícero Santos e sua esposa no valor de R$ 812 mil entre 2021 e julho de 2023. O Terra Bank opera como fintech sem autorização do Banco Central, oferecendo serviços bancários voltados para o agronegócio e utilizando a imagem de indígenas em sua propaganda.


Nelson Wilians
Nelson Wilians

Uma das revelações mais explosivas das investigações é o envolvimento do escritório do advogado Nelson Wilians, um dos mais famosos do país. Relatórios do Coaf apontam movimentações suspeitas na ordem de R$ 4,3 bilhões entre 2019 e 2023 envolvendo o escritório.


O montante bilionário justificou pedidos de convocação de Wilians na CPMI, especialmente devido à sua relação com o empresário Maurício Camisotti, um dos principais alvos da Operação Sem Desconto. Investigadores suspeitam de lavagem de dinheiro através de transações aparentemente legítimas, como a compra de imóveis e "adiantamentos de honorários" de valores astronômicos.


A blindagem institucional


Leonardo Rolim, que presidiu o INSS durante período crucial das fraudes (2020-2021), desempenhou papel fundamental na proteção do esquema criminoso. Foi ele quem assinou a portaria que retirou de Alessandro Roosevelt a atribuição de fiscalizar a Conafer, transferindo-a para uma diretoria mais "amigável".


Rolim justificou sua decisão como parte de uma "reestruturação" organizacional, mas a cronologia sugere motivação bem diferente. A mudança ocorreu exatamente quando Roosevelt estava descobrindo e documentando as fraudes da Conafer. Dois meses depois, a nova diretoria liberou os repasses que Roosevelt havia bloqueado.


Posteriormente, Rolim foi promovido novamente à Secretaria de Previdência, demonstrando que sua proteção ao esquema fraudulento não apenas não foi punida como foi recompensada com ascensão na carreira.


José Carlos Oliveira representa talvez o caso mais emblemático de como o esquema de fraudes foi protegido e premiado institucionalmente. Como diretor de benefícios do INSS, ele criou o comitê que "investigou" e absolveu a Conafer em 2022.


A investigação comandada por Oliveira foi uma farsa completa. Liderada por Jucimar Fonseca da Silva (o ex-vereador do PL), baseou-se exclusivamente em documentos fornecidos pela própria entidade investigada e ignorou completamente os inquéritos policiais e alertas técnicos já existentes.


O resultado da "investigação" foi usado pelo próprio Carlos Lopes para tentar escapar de intimação da Polícia Federal, alegando já ter sido "inocentado" pelo INSS. Longe de ser punido por essa farsa, Oliveira foi posteriormente promovido a presidente do INSS e depois a ministro do Trabalho e Previdência no governo Bolsonaro.


O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou transações suspeitas entre um sócio de Oliveira e sócios de Carlos Lopes, sugerindo benefícios financeiros pela proteção oferecida.


As vítimas silenciadas


Por trás dos números bilionários estão milhões de brasileiros idosos que tiveram seus parcos recursos subtraídos por organizações criminosas. A auditoria da CGU revelou que 97,6% dos beneficiários entrevistados não autorizaram os descontos, demonstrando a natureza massivamente fraudulenta do esquema.


Muitos aposentados vivem com apenas um salário mínimo e viram descontos de até R$ 79 mensais sendo retirados de suas aposentadorias. Para uma pessoa que recebe R$ 1.412 (salário mínimo), isso representa mais de 5% de sua renda mensal sendo desviada para enriquecer organizações criminosas.


O perfil das vítimas torna o crime ainda mais hediondo: idosos, muitos com baixa escolaridade e dificuldades com tecnologia, que foram deliberadamente escolhidos como alvos por sua vulnerabilidade. A suspensão dos extratos em papel durante a "transformação digital" de 2017 deixou milhões deles sem meios de acompanhar seus benefícios.


Uma das facetas mais perversas do esquema foi o uso de comunidades indígenas como fachada para legitimar as operações da Conafer. Carlos Lopes se apresenta como "liderança indígena" e usa cocares e adereços em eventos públicos, embora não tenha reconhecimento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).


Líderes indígenas relataram ao Intercept que o "modo operante" da Conafer é "oferecer caminhonete locada e salário para as lideranças" em troca de apoio e legitimidade. A organização bancava atividades sociais, campeonatos de futebol e assembleias nas comunidades, criando uma rede de dependência e cooptação.


A Conafer chegou ao ponto de organizar mutirões previdenciários com Unidades Móveis Flutuantes da Previdência Social, criando a impressão de que ajudava indígenas a acessar benefícios quando na verdade estava preparando o terreno para descontos fraudulentos.


A resposta governamental


A diferença fundamental entre os governos anteriores e o atual foi a resposta às fraudes descobertas. Enquanto Temer e Bolsonaro ignoraram, facilitaram ou protegeram o esquema, o governo Lula desencadeou uma resposta imediata e eficaz.


A Operação Sem Desconto, deflagrada em abril de 2025, foi resultado de dois anos de investigações coordenadas entre a Polícia Federal, a CGU e outros órgãos de controle. A operação resultou em:


  • Suspensão imediata de todos os acordos suspeitos

  • Bloqueio de R$ 2,8 bilhões em bens dos fraudadores

  • Prisão de 8 pessoas ligadas ao esquema

  • Afastamento de 5 dirigentes do INSS

  • Devolução de mais de R$ 1 bilhão aos aposentados em tempo recorde


Uma das ações mais significativas foi o acordo firmado pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Supremo Tribunal Federal para ressarcimento imediato das vítimas. Em menos de um mês, mais de 1,6 milhão de beneficiários receberam R$ 1,084 bilhão em suas contas, valores corrigidos pela inflação.


Essa solução evitou que cada vítima tivesse de entrar com ação individual na Justiça, processo que levaria anos e deixaria milhões de idosos sem reparação. A transparência foi assegurada por auditorias internas e acompanhamento dos órgãos de controle.


O governo também implementou medidas preventivas para evitar novos golpes:

  • Biometria obrigatória para toda autorização de desconto

  • Redução drástica no número de servidores com acesso a senhas críticas (de mais de 3.000 para apenas 6 pessoas)

  • Novos sistemas de monitoramento em tempo real

  • Campanhas de orientação para aposentados e pensionistas


Por que a CPMI é uma Farça: A inversão da responsabilidade temporal


A análise detalhada das evidências revela que a CPMI do INSS corre o risco de se tornar exatamente aquilo que seus críticos denunciam: uma cortina de fumaça para proteger os verdadeiros responsáveis pelas fraudes. A tentativa de focar as investigações no período 2023-2025, quando as fraudes se tornaram visíveis devido aos contratos estabelecidos anteriormente, representa uma inversão deliberada da responsabilidade temporal.


Os dados são inequívocos: as fraudes começaram no governo Temer, consolidaram-se sob Bolsonaro e foram descobertas e combatidas no governo Lula. Qualquer investigação séria deveria concentrar-se nos períodos de 2016-2018 e 2019-2022, quando as bases legais foram flexibilizadas e os mecanismos de proteção foram destruídos.


A composição da CPMI e seus primeiros movimentos sugerem uma estratégia deliberada de proteger figuras-chave que facilitaram ou protegeram o esquema. Nomes como Leonardo Rolim, José Carlos Oliveira, e os próprios ex-presidentes que criaram as condições para as fraudes parecem estar sendo poupados do escrutínio mais rigoroso.


Ao mesmo tempo, há uma concentração desproporcional de atenção em figuras marginais ou simbólicas, como o irmão do presidente Lula, que embora deva ser investigado se houver indícios, representa uma fração mínima do problema real.


O timing da criação da CPMI também levanta suspeitas. A comissão foi instalada exatamente quando as investigações da Polícia Federal e da CGU estavam avançando rapidamente e produzindo resultados concretos. Em vez de fortalecer esses órgãos técnicos, optou-se por criar uma arena política onde a narrativa pode ser mais facilmente manipulada.


Como observaram diversos analistas, a própria existência da CPMI pode prejudicar as investigações em curso, criando conflitos de competência e dando aos investigados múltiplas instâncias para protelar ou confundir os processos.


A verdadeira agenda por trás da CPMI parece ser tripla:

  1. Desviar a atenção das responsabilidades históricas dos governos Temer e Bolsonaro

  2. Criar narrativas alternativas que responsabilizem o governo que descobriu e combateu as fraudes

  3. Proteger a rede de interesses políticos e empresariais que se beneficiou do esquema


Para que a CPMI cumpra seu papel constitucional de esclarecer a verdade, seria necessário:


  1. Foco temporal correto: Concentrar as investigações nos períodos 2016-2018 e 2019-2022

  2. Convocação dos verdadeiros responsáveis: Leonardo Rolim, José Carlos Oliveira, e outros que protegeram o esquema

  3. Análise das mudanças legislativas: Investigar quem promoveu e aprovou as flexibilizações que facilitaram as fraudes

  4. Rastreamento completo dos recursos: Seguir o dinheiro até seus beneficiários finais, incluindo as redes de lavagem

  5. Responsabilização política: Identificar quais autoridades tinham conhecimento das fraudes e optaram por não agir


A atual configuração da CPMI, com sua composição política e agenda aparente, sugere que nada disso acontecerá de forma adequada. O que se vislumbra é mais um capítulo da longa tradição brasileira de investigações que servem mais para encobrir do que para esclarecer, protegendo os poderosos enquanto punem os subalternos.


A farça está montada. Resta saber se o público brasileiro se deixará enganar novamente por essa cortina de fumaça ou se exigirá uma investigação verdadeiramente séria sobre uma das maiores sangrias de recursos públicos da história recente do país.

 
 
 
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