O banimento permanente do perfil de Jeferson Tenório no Instagram representa mais que uma simples "moderação de conteúdo". É o ápice de uma perseguição sistemática de quatro anos contra um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos, cujo único "crime" foi escrever sobre racismo estrutural e violência policial no Brasil.
Capa do livro 'O Avesso da Pele', de Jefferson Tenório, retratando um homem negro se preparando para mergulhar, simbolizando temas explorados no romance
A perseguição a Jeferson Tenório começou em 2021, quando "O Avesso da Pele" ganhou o prestigioso Prêmio Jabuti na categoria romance literário. O reconhecimento, longe de protegê-lo, o transformou em alvo prioritário da extrema direita brasileira. As primeiras ameaças chegaram após ele escrever sobre Paulo Freire em sua coluna no jornal Zero Hora. Mas foi em 2022 que a violência digital escalou dramaticamente. Após anunciar uma palestra em uma escola de Salvador, Tenório recebeu ameaças de morte explícitas através do Instagram. O usuário anônimo @estudante_anonimo123 enviou mensagens dizendo que ele teria seu "CPF cancelado" caso comparecesse ao evento. "Eh mlhr vc meter o pé e sair do país. Se nn vc tá fudido irmão", dizia a mensagem. As ameaças foram tão específicas e credíveis que a escola optou por realizar o encontro virtualmente, reconhecendo sua incapacidade de garantir a segurança física do escritor. Tenório registrou boletins de ocorrência, mas as ameaças continuaram após a palestra.
O ano de 2024 marcou uma escalada qualitativa na perseguição quando múltiplas secretarias estaduais de educação - Paraná, Goiás, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul - coordenaram ações para remover "O Avesso da Pele" das bibliotecas escolares. A justificativa oficial era sempre a mesma: "expressões impróprias para menores de 18 anos". Mas a hipocrisia era gritante. Como observou sarcasticamente o próprio Tenório: "O mais curioso é que as palavras de 'baixo calão' e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras". A diretora Janaina Venzon, da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira (RS), foi particularmente explícita em seu racismo estrutural. Em vídeo que depois apagou, ela declarou: "Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível".
O banimento definitivo do perfil de Tenório no Instagram, ocorrido no início de junho de 2025, seguiu um padrão familiar: censura silenciosa, sem justificativa específica, sem direito de defesa. O escritor, que havia construído um diálogo direto com 80 mil seguidores, descobriu-se digitalmente aniquilado da noite para o dia. "No primeiro momento, achei que a minha conta havia sido hackeado, mas depois veio a confirmação de que o meu perfil foi banido pela empresa Meta sob a alegação de que não se enquadrava nas diretrizes da plataforma", relatou Tenório. Nenhuma explicação adicional foi fornecida.
A recusa sistemática da Meta em responder questionamentos sobre o banimento revela uma estratégia deliberada de censura por desgaste. Múltiplos veículos de imprensa - UOL, Estadão, G1, CNN Brasil - contataram a empresa. Nenhum recebeu resposta. Este silêncio não é passividade; é política ativa. Ao recusar-se a justificar suas decisões, a Meta transforma cada banimento em um ato de soberania corporativa absoluta, onde não há instância de recurso, transparência ou prestação de contas. A coincidência temporal entre o banimento de Tenório e casos similares - Jones Manoel, Manuela d'Ávila, diversos perfis progressistas - expõe o caráter sistêmico e coordenado desta operação de limpeza ideológica. Particularmente revelador é o timing: faltando pouco mais de um ano para as eleições de 2026, quando o debate sobre racismo, educação e violência policial - temas centrais da obra de Tenório - tende a se intensificar. Como ele próprio observou: "faltando um ano para as eleições no Brasil, uma eleição que promete ser bastante difícil, acho que tem um envolvimento político também".
Tenório revelou um detalhe crucial: dias antes do banimento, ele havia publicado uma crítica comparando Bolsonaro a Trump. Pouco depois, sua conta sofreu o que ele suspeita ter sido um "ataque em massa" - técnica onde grupos organizados reportam simultaneamente um perfil para forçar sua suspensão automática. Esta weaponização dos próprios mecanismos de moderação da Meta representa uma sofisticação táctica da extrema direita digital. Eles não apenas produzem ameaças diretas, mas manipulam os algoritmos para que a própria plataforma execute a censura, criando uma aparência de neutralidade técnica. "Se for isso que aconteceu comigo mostra que há uma grande falha na Meta de não conseguir fazer esse tipo de avaliação", observou Tenório. Mas esta "falha" pode ser, na verdade, uma feature funcionando perfeitamente conforme o design corporativo.
A obra de Tenório não é atacada por acaso. "O Avesso da Pele" narra a história de Pedro, jovem negro cujo pai professor foi assassinado por policiais que o confundiram com um bandido. É uma denúncia literária do genocídio da população negra brasileira através da violência estatal. O romance expõe três pilares do projeto político da extrema direita brasileira: o racismo estrutural, a brutalidade policial e a precariedade educacional como instrumentos de controle social. Por isso, atacar Tenório é atacar uma cosmovisão antirracista que ameaça as bases ideológicas do conservadorismo brasileiro. A capitulação das secretarias estaduais em 2024 revelou como instituições públicas podem ser instrumentalizadas para executar a agenda censória da extrema direita. O fato de que "O Avesso da Pele" faz parte do PNLD - programa federal que aprovou a obra após rigorosa avaliação técnica - não impediu governadores de desautorizar unilateralmente decisões pedagógicas. Esta hierarquização política sobre critérios técnicos representa um golpe na autonomia educacional e um precedente autoritário perigoso.
A campanha de solidariedade a Tenório conseguiu mobilizar personalidades como Chico Buarque e Drauzio Varela, além de mais de 6.400 assinaturas em um abaixo-assinado contra a censura. A Companhia das Letras, sua editora, emitiu notas de repúdio e acionou a Justiça contra as tentativas de censura. Contudo, esta resistência liberal tem limitações estruturais. Enquanto se concentra na defesa da liberdade de expressão em abstrato, evita confrontar diretamente o caráter racial e classista da censura. A branquitude intelectual progressista solidariza-se com Tenório, mas evita radicalizar o debate sobre como racismo e censura são fenômenos indissociáveis.
O banimento de Tenório no Instagram representa prejuízo econômico direto e mensurável. Como escritor contemporâneo, ele dependia da plataforma para divulgar agenda de palestras, lançamentos de livros e interação com leitores. A redução drástica de alcance - de 80 mil para 3,2 mil seguidores - equivale a uma amputação digital de sua capacidade de subsistência profissional. Seus advogados do escritório FFM são explícitos: "a exclusão arbitrária reduz drasticamente o alcance do trabalho de Tenório, prejudicando sua atuação como escritor, educador e figura pública". Esta é a violência econômica da censura digital: destruir meios de subsistência de intelectuais dissidentes.
O silêncio sistemático da Meta diante das ameaças de morte que Tenório recebeu através de sua própria plataforma revela uma cumplicidade ativa com a violência racista. A empresa que censurou imediatamente uma conta que denuncia racismo foi a mesma que protegeu contas que promovem racismo. Esta seletividade não é acidental, mas estrutural. A Meta opera como um mecanismo de apartheid digital, onde vozes negras críticas são sistematicamente silenciadas enquanto discursos supremacistas circulam livremente. A recente guinada explícita da Meta - encerrando a checagem de fatos, afrouxando regras contra discursos de ódio, nomeando republicanos para cargos-chave - institucionaliza o que já era prática clandestina. O caso Tenório demonstra que essa virada à direita não começou em 2025, mas vinha sendo testada e refinada há anos através de experimentos de censura seletiva.
O caso Jeferson Tenório expõe a brutal realidade do apartheid digital brasileiro: escritores negros que denunciam o racismo são sistematicamente perseguidos, censurados e economicamente estrangulados por uma aliança entre extrema direita política, instituições públicas cooptadas e corporações tecnológicas globais. Não se trata de um caso isolado, mas de uma operação coordenada de silenciamento que combina ameaças físicas, censura institucional e aniquilação digital. O sucesso desta perseguição - Tenório permanece banido enquanto seus perseguidores operam livremente - demonstra a eficácia desta nova forma de controle social. A luta pela reativação do perfil de Tenório é, portanto, muito mais que uma questão de liberdade de expressão. É uma batalha antirracista contra um sistema de dominação que usa a tecnologia para perpetuar estruturas de opressão racial sob uma fachada de neutralidade corporativa. A democracia brasileira será testada por sua capacidade de proteger intelectuais negros que ousam narrar as violências que estruturam nossa sociedade. Por enquanto, este teste está sendo reprovado com nota zero.
SEGUNDA REPORTAGEM DA SÉRIE “DOSSIÊ MESQUITA: como a família que “criou” três ditaduras fabricou a própria história de “resistência” e transformou jornalismo em máquina de guerra contra o povo brasileiro.
Por uma questão de honestidade intelectual e transparência jornalística, a investigação para esta série se baseia exclusivamente em documentos oficiais, pesquisas acadêmicas, denúncias do Ministério Público e depoimentos de jornalistas do próprio Estadão. Não há aqui opinião pessoal, mas fatos documentados sobre um dos maiores escândalos da imprensa brasileira.
Aqui vamos desmontar, com base em fatos documentados, uma das maiores mistificações da história da imprensa brasileira. O jornal O Estado de S. Paulo (o Estadão) frequentemente se vangloria de ter "resistido" à ditadura militar (1964-1985) – alardeando o episódio em que publicou trechos de Os Lusíadas e receitas culinárias no lugar de matérias censuradas entre 1972 e 1975. Essa narrativa heroica, repetida até hoje, é na verdade uma fabricação histórica que distorce o papel real desempenhado pelo jornal durante o regime militar.
O mito da resistência com poesias e receitas
Exemplo de página do Estadão durante a ditadura: na coluna da esquerda, versos de “Os Lusíadas” de Camões preenchem o espaço de uma notícia vetada pelos censores. O jornal usava esse artifício para sinalizar aos leitores que conteúdos haviam sido barrados.
É verdade que, após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro de 1968, o Estadão passou a sofrer censura prévia. Em resposta, adotou uma estratégia inusitada: onde os censores cortavam reportagens, o jornal inseria trechos do poema épico Os Lusíadas, de Luís de Camões, enquanto seu jornal vespertino (Jornal da Tarde, do mesmo grupo) publicava receitas de bolo no lugar das notícias censuradas. Foi uma forma criativa de informar os leitores de que o jornal estava sendo impedido de noticiar certos assuntos. Ao longo de pouco mais de dois anos, entre 1973 e 1975, os leitores chegaram a ver Os Lusíadas inteiros duas vezes nas páginas do Estadão, dado o volume de matérias vetadas – 1.122 textos censurados nesse período. Essa tática acabou se tornando um símbolo celebrado da suposta “resistência” da grande imprensa contra a ditadura.
No imaginário construído pelo próprio Estadão, os versos de Camões e as colunas de receitas seriam prova de uma postura corajosa do jornal frente aos generais. De fato, anos depois, a família proprietária transformou essa história em um troféu, alardeando que “resistiu” bravamente à opressão ao denunciar a censura de maneira tão sutil quanto astuta. Porém, a realidade histórica documentada é bem diferente, e bem menos lisonjeira para o jornal. Os fatos demonstram que:
De 1964 a 1968, o Estadãoapoiou entusiasticamente o golpe militar e a ditadura nascente, longe de qualquer resistência.
O jornal só entrou em conflito com o regime depois que os militares passaram a ameaçar os interesses do próprio Estadão e de seus donos (a família Mesquita), especialmente a partir do AI-5.
A alegada “resistência” somente começou quando o regime endurecido voltou-se até contra setores da elite paulista que antes o apoiavam – ou seja, quando a ditadura passou a atingir o próprio Estadão.
Mesmo durante os anos de censura explícita, o jornal nunca deixou de endossar o projeto político-militar dos generais. Limitou-se a criticar alguns “excessos” autoritários pontuais, sem jamais romper de fato com o regime.
Examinemos cada um desses pontos em detalhe, para contrastar o mito propagado pelo Estadão com a verdade histórica registrada em documentos e depoimentos da época.
Apoio entusiasmado ao golpe de 1964 e à ditadura (1964–1968)
Logo de início, convém lembrar que O Estado de S. Pauloapoiou decididamente o golpe militar de 31 de março de 1964. Longe de resistir, o jornal atuou como conspirador de primeira hora na derrubada do governo constitucional de João Goulart. Pesquisas históricas confirmam que Júlio de Mesquita Filho, então diretor do Estadão, esteve diretamente envolvido nas articulações golpistas desde o começo. Em entrevista, a historiadora Maria Aparecida de Aquino (USP) chega a afirmar que o Estadão "foi conspirador desde a primeira hora" na instauração do regime militar.
Cartas de Ruy Mesquita e Gilles Lapouge com debate sobre o golpe de 64 foram publicadas no Estadão em 21 de junho de 1964 Foto: Acervo Estadão - 21/06/1964
Nas semanas e meses seguintes ao golpe, o engajamento pró-ditadura do Estadão ficou evidente em sua linha editorial. O jornal saudou efusivamente a chamada “Revolução de 1964”, tratando os militares como salvadores da pátria. Chegou a aplaudir o primeiro Ato Institucional (AI-1) – que cassou mandatos e suspendeu direitos – alegando que era uma medida apoiada “pela totalidade do povo brasileiro”. Quando o general Castello Branco foi escolhido presidente pelo Congresso sob controle dos golpistas, o Estadão classificou a manobra como “legítima, admirável, uma conquista nacional”.
Não satisfeito em endossar o novo regime, o jornal muitas vezes cobrou uma linha ainda mais dura dos governantes militares. Entre 1964 e 1968, o Estadão demonstrou ser mais radical que os próprios generais “moderados” em certos momentos. Por exemplo, exigiu a ampliação da repressão contra políticos acusados de “subversão” e “corrupção”. O Estadão foi o veículo que mais se empenhou pela cassação dos direitos políticos do ex-presidente Juscelino Kubitschek (JK), fazendo forte campanha para que JK – adversário dos militares – fosse expurgado da vida pública. Quando finalmente JK foi cassado pelo regime, o jornal exaltou a decisão em suas páginas, comemorando a “limpeza” política.
Em outubro de 1965, às vésperas de o governo decretar o segundo Ato Institucional, o Estadão publicou um editorial exigindo maior dureza da ditadura. Nesse texto, acusava o governo de manter uma “Revolução meio anêmica” e criticava a “timidez” dos militares em reprimir seus opositores. O jornal cobrava abertamente o estabelecimento de um estado de sítio e pedia “um segundo Ato Institucional” para acelerar a limpeza na vida política nacional. Quando o regime atendeu a esse clamor editando o AI-2 (em 27 de outubro de 1965), o Estadão aplaudiu: declarou que, sendo “revolucionários que somos”, considerava legítimo lançar mão de medidas de exceção para atingir os objetivos do movimento de 1964.
É chocante constatar hoje, mas está nos arquivos: o Estadãodefendia a ditadura e até pressionava por mais autoritarismo nessa fase inicial. O próprio proprietário, Júlio Mesquita Filho, participava ativamente de articulações políticas para manter a unidade do regime. Segundo relatos da época, Mesquita agiu nos bastidores para evitar rompimentos dentro do campo golpista – por exemplo, tentando dissuadir o governador Carlos Lacerda (um aliado civil dos militares) de romper com o governo. Ou seja, o dono do Estadão não só apoiou o golpe: ele trabalhou para estabilizar e reforçar o novo regime, inclusive sugerindo expurgos adicionais de supostos “subversivos”.
Nada disso é compatível com uma postura de resistência. Pelo contrário, entre 1964 e 1968 o Estadão foi um dos pilares civis de sustentação da ditadura, alinhado tanto ideologicamente quanto em interesses econômicos. Importante lembrar que grande parte da elite empresarial e midiática brasileira lucrou ou se beneficiou com o regime militar – seja através de favores, publicidade estatal, concessões ou eliminação de concorrentes. No caso do Estadão, seu alinhamento político lhe rendeu prestígio junto ao governo e consolidou sua posição como principal jornal conservador de São Paulo. Em suma, nos anos iniciais não houve qualquer resistência; houve sim entusiasmo e até militância editorial a favor do regime.
Ruptura tardia: conflito só após o AI-5 (quando seus interesses foram atingidos)
Página de jornal de 1973 detalhando a censura e a repressão à imprensa livre nas Américas durante o período da ditadura militar
Se o idílio inicial entre o Estadão e a ditadura foi marcante, quando esse casamento começou a azedar? A divergência só veio à tona quando o regime militar endureceu de vez e passou a não tolerar nem mesmo críticas moderadas de seus apoiadores tradicionais. Esse ponto de inflexão ocorreu a partir do final de 1968, com a promulgação do famigerado AI-5. O Ato Institucional nº 5 suspendeu garantias constitucionais, fechou o Congresso e escancarou de vez a repressão. Pela primeira vez, a ditadura voltou sua mira também contra setores da imprensa e da elite paulista que, até então, lhe davam suporte. Em outras palavras, o regime passou a ameaçar os interesses e a autonomia do próprio Estadão – e isso provocou atritos.
Um episódio simbólico marcou essa ruptura: na noite de 13 de dezembro de 1968, quando o AI-5 foi decretado, policiais militares invadiram a sede do Estadão, em São Paulo, e apreenderam a edição do jornal que estava para circular. O motivo? O diretor Júlio de Mesquita Filho recusara-se a obedecer à ordem dos censores para substituir um editorial crítico que sairia naquela edição, intitulado “Instituições em frangalhos”. Ou seja, logo nas primeiras horas do novo regime de exceção, o Estadão tentou publicar um artigo que lamentava a destruição das instituições democráticas – e a resposta dos militares foi mandar forças de segurança tomar à força os exemplares do jornal antes que chegassem às bancas. Ali começava, de forma nada gloriosa, a censura direta ao Estadão.
Esse confronto de 1968 mostra que, apenas quando o regime feriu seus donos, o Estadão esboçou alguma reação. Até então, mesmo discordando de pontos aqui e ali, o jornal seguia parceiro do projeto de 64. Mas o AI-5 representou um divisor de águas: a ditadura atirou no próprio pé ao atingir a grande imprensa tradicional. Com o fechamento político completo, setores liberais conservadores (como a família Mesquita) que apoiavam o regime passaram a se sentir traídos e ameaçados. Afinal, se nem eles tinham mais liberdade para publicar um simples editorial, o que restava? Esse choque de interesses deflagrou a “resistência” tardia do Estadão.
É importante notar, contudo, que essa mudança não se deu da noite para o dia em 1968. Nos anos seguintes ao AI-5, o Estadão oscilou entre leves desafios e muita cautela. De 1968 até 1972, prevaleceu a autocensura no jornal. A própria direção do Estadão tratava de evitar assuntos que pudessem desagradar os generais, ou então abordá-los com viés bastante pró-governo. Havia uma espécie de acordo tácito: o regime não tinha ainda imposto um censor residente no jornal, então cabia aos editores se “enquadrar” para não provocar ira do governo. Recados telefônicos e bilhetes eram enviados pelo governo listando temas proibidos, e na maior parte do tempo o Estadão seguia essas diretrizes voluntariamente. Em suma, mesmo desgostoso com os rumos mais autoritários, o jornal evitou peitar abertamente o regime por alguns anos após 1968.
Isso só muda em 1972, quando um novo confronto decisivo ocorre. Naquele ano, o Estadão preparou uma extensa reportagem especial sobre a perspectiva de anistia para os cassados e exilados políticos – uma pauta explosiva, pois falava em perdoar adversários do regime. O Serviço Nacional de Informações (SNI) tomou conhecimento e tentou convencer a direção do jornal a não publicar a matéria. Desta vez, porém, os Mesquita decidiram enfrentar a ordem e seguir com a publicação planejada. O resultado foi imediato: em 3 de setembro de 1972, agentes federais ocuparam a redação do Estadão, instaurando oficialmente a censura prévia no periódico. A partir desse dia, e pelos dois anos seguintes, nenhum artigo poderia ser publicado sem passar pelo crivo dos censores do regime.
A implantação da censura formal em 1972 confirma que a “resistência” do Estadão – no sentido de bater de frente com a ditadura – veio tarde e por necessidade. Somente quando o jornal não pôde mais ignorar que suas próprias liberdades e negócios estavam em risco é que a família Mesquita assumiu uma postura mais combativa. Note-se: em 1972 o jornal publicou uma reportagem que desagradou o governo não por altruísmo revolucionário, mas porque aquela informação (sobre sucessão presidencial e anistia) interessava ao público e ao próprio jogo político da época. A retaliação do regime acabou forçando o Estadão a se colocar como vítima da censura – papel no qual hoje gosta de posar. De setembro de 1972 até janeiro de 1975, contabilizaram-se 1.136 matérias inteiras ou em parte censuradas no Estadão, sobretudo sobre temas políticos e a repressão. Foram necessárias mais de mil investidas contra seu conteúdo para que o jornal finalmente alegasse estar “resistindo” abertamente.
Desse modo, fica claro que até onde os generais não atrapalhavam seus negócios ou ultrapassavam certos limites, o Estadãoconviveu bem com a ditadura. A ruptura só se deu quando o cerco se fechou a ponto de sufocar o próprio jornal – seja politicamente, seja em termos de influência e receitas. A “burguesia paulista” que o Estadão representava foi atingida no calo, então o leão virou gato: passou de cúmplice a “opositor” em questão de poucos anos, conforme sua conveniência.
Uma resistência de fachada: crítica aos “excessos”, apoio ao projeto do regime
Mesmo após 1972, com censores sentados dentro da redação, será que o Estadão se tornou um bastião da resistência democrática? Os fatos indicam que não. Apesar de algumas manchetes censuradas e espaços em branco preenchidos com poesias, o jornal nunca abandonou seu alinhamento básico com o regime. Sua oposição se restringiu a criticar alguns abusos específicos, ao passo que continuou apoiando ou silenciando sobre o projeto autoritário maior.
Os espaços em branco sinalizam que ali estariam notícias que foram censuradas.
Dentro do Estadão, prevalecia a mentalidade de que os militares haviam salvado o país do “perigo comunista” em 1964 – tese com a qual os Mesquita concordavam – mas que alguns excessos precisavam ser moderados para preservar a “legalidade” e a ordem. Essa linha dúbia transparece em seus editoriais da época. Em essência, o jornal defendia os objetivos do regime (combate ao comunismo, reformas econômicas conservadoras, alinhamento com os EUA etc.), e apenas apontava o dedo contra certas violências ou arbitrariedades exageradas. Como observa a professora Maria de Aquino, a oposição do Estadão baseava-se numa perspectiva liberal: condenava o “abuso de poder” e a usurpação de direitos naturais pelo governo (tanto que combateram Goulart em 64 por motivos semelhantes), mas não rejeitava a existência de um regime de exceção em si. Ou seja, criticava a ditadura pelos seus excessos, mas não pelos seus fundamentos – que o jornal ajudara a lançar.
A própria prática diária no período de censura comprova essa conivência parcial. Diversos jornalistas do Estadão relataram que, mesmo com agentes do governo revisando o conteúdo, a rotina seguiu relativamente confortável. Havia, claro, matérias vetadas aqui e ali – principalmente sobre torturas, corrupção militar ou movimentos de oposição armada, que os censores invariavelmente cortavam. Porém, uma enorme quantidade de conteúdo alinhado aos interesses do regime continuou sendo publicada normalmente. Notícias econômicas, cobertura internacional anti-comunista, opinião favorável às políticas de desenvolvimento do governo Médici – nada disso era censurado porque o Estadão não via problema em noticiar dentro da ótica oficial. Em outras palavras, o jornal nunca se transformou num veículo de resistência frontal, daqueles que contestavam a legitimidade do regime ou clamavam pela redemocratização imediata. Pelo contrário, continuou conservador e cauteloso em suas posições.
Um testemunho contundente ilustra bem essa realidade. O veterano jornalista Carlos Chagas, que trabalhou no Estadão durante quase todo o período da ditadura, resumiu assim a postura do jornal:
“O jornal da família Mesquita é o melhor lugar para se trabalhar quando há ditadura, mas fica apenas conservador quando vem a democracia”.
A frase, além de irônica, revela muito. Significa que, sob o regime autoritário, o Estadão proporcionava a seus profissionais um ambiente acomodado com a situação, sem maiores conflitos – afinal, estava do lado “vencedor”. Já em tempos democráticos, o jornal volta ao seu papel tradicional de veículo conservador. Essa observação de Chagas confirma a postura confortável e conivente do Estadão durante os anos de chumbo, diferindo apenas de grau (e não de princípio) em relação aos militares. Em última instância, o Estadão jamais fez oposição ferrenha ao governo de plantão durante a ditadura; no máximo, praticou um jornalismo moderado, com frouxas críticas pontuais aos “exageros” mais grotescos (como a tortura sem controle ou a censura onipresente), enquanto endossava tacitamente todo o resto.
Na foto, um censor da ditadura militar trabalhando no prédio do Estadão em 1973.
Também é revelador observar a atitude do jornal na fase final da ditadura e transição para a democracia. Durante a campanha de 1984 pelas Diretas Já – movimento popular clamando por eleições presidenciais livres – o Estadão inicialmente mostrou ceticismo e frieza. Em vez de se engajar de imediato na luta democrática, o jornal hesitou, questionando se a volta das eleições resolveria os problemas do Brasil e temendo a ascensão de líderes trabalhistas de esquerda (como Leonel Brizola) pelo voto popular. Somente quando ficou claro que 85% da população apoiava as Diretas e que o movimento era irreversível o Estadão aderiu, e mesmo assim não perdeu a chance de alfinetar as lideranças de esquerda (como Lula e o PT) que despontavam nos comícios. Essa relutância em abraçar a democracia nascente – mesmo após ter sido vítima da censura – expõe as contradições do jornal. Ficou nítido que o compromisso do Estadão sempre foi menos com a liberdade em si e mais com a ordem conservadora. Quando a “ordem” ditatorial ruiu, levou tempo até o jornal se reposicionar.
Todos esses fatos desmontam a ideia de que o Estadão foi um bastião resistente contra a ditadura. A verdade é que ele jamais deixou de apoiar o projeto militar autoritário em sua essência. Suas divergências com o regime foram circunstanciais e limitadas: discordou de métodos demasiado brutais, mas nunca do objetivo de barrar as esquerdas e reconfigurar o país sob orientação conservadora-militar. Enquanto os “excessos” pudessem ser corrigidos, o Estadão ficaria satisfeito. Não por acaso, mesmo ao fazer seu mea-culpa décadas depois, o jornal ainda se apega à justificativa de que temia uma “república sindicalista comunista” caso não houvesse golpe – ou seja, em nenhum momento reconhece que estava do lado errado da História, apenas alega que exageraram um pouquinho no autoritarismo.
Covardia travestida de heroísmo
FATO: o Estadão não “resistiu” à ditadura militar no sentido próprio do termo. Ele colaborou ativamente enquanto pôde, e só reclamou quando a repressão bateu à sua porta e ameaçou seus donos. A tão propalada publicação de poemas e receitas foi menos um ato de desafio corajoso e mais um gesto de autopreservação, quase um pedido de socorro elegante de quem ajudou a criar o monstro e depois não conseguia mais controlá-lo.
Julio Mesquita (sentado, no centro) na redação do 'Estadão': reforma editorial, aumento de circulação e assinaturas e atenção às notícias internacionais Foto: Acervo Estadão
A família Mesquita, proprietária do jornal, conseguiu numa manobra cínica transformar sua própria covardia em heroísmo. Reescreveram a história para pintar a si mesmos como paladinos da liberdade de imprensa – quando na realidade foram cúmplices entusiasmados do regime por anos, silenciando diante de torturas e ilegalidades, e só se posicionando quando seus interesses empresariais e familiares foram atingidos. Essa transmutação de omissão em “resistência” e de cumplicidade em “vitimização” é estarrecedora.
Não é por acaso que, passadas décadas, o Estadão ainda tenta lapidar sua versão dos fatos. Em editoriais recentes alusivos aos 50 anos do golpe, por exemplo, o jornal admitiu (porque não tinha mais como negar) que Júlio Mesquita Filho apoiou e até conspirou pelo golpe de 64 – mas tenta absolver-se alegando que rompeu com a ditadura após um “desvio” autoritário no AI-2, e justificando o apoio inicial pelo temor do comunismo que João Goulart representaria. Essa narrativa autoindulgente busca ocultar que o jornal permaneceu alinhado ao regime mesmo nos anos mais duros, criticando apenas aquilo que considerava exagero. Ao se ouvir apenas o lado do Estadão, tem-se a impressão falsa de que ele foi quase uma resistência honrosa durante todo o período – quando, na verdade, abdicou de resistir quando mais importava, lá no começo, e seguiu lado a lado com os ditadores enquanto lhe foi conveniente.
Diante de todo o exposto, podemos concluir sem medo: a suposta “resistência” do Estadão à ditadura é uma farsa histórica. Trata-se de um dos casos mais escandalosos de falsificação da memória na imprensa mundial. Os fatos documentados – editoriais da época, pesquisas acadêmicas e até confissões posteriores – desmentem cabalmente a lenda heroica construída pelo jornal. É nosso dever, portanto, denunciar essa falsificação e fazer justiça à verdade histórica: o Estadão não foi herói coisa nenhuma, foi no máximo uma vítima tardia da própria ditadura que ajudou a instaurar, e tenta até hoje capitalizar em cima desse papel de vítima para limpar sua biografia. Não nos deixemos enganar por poemas em páginas vazias; a verdadeira resistência se faz com postura ética desde o princípio, e não reescrevendo a história depois que o perigo passou.
PRIMEIRA REPORTAGEM DA SÉRIE “DOSSIÊ MESQUITA: como a família que “criou” três ditaduras fabricou a própria história de “resistência” e transformou jornalismo em máquina de guerra contra o povo brasileiro.
Por uma questão de honestidade intelectual e transparência jornalística, a investigação para esta série se baseia exclusivamente em documentos oficiais, pesquisas acadêmicas, denúncias do Ministério Público e depoimentos de jornalistas do próprio Estadão. Não há aqui opinião pessoal, mas fatos documentados sobre um dos maiores escândalos da imprensa brasileira.
Logo Estadão - Comemorativa de 150 anos
Imaginem um jornal que se vangloria de defender a democracia, mas que na verdade conspirou ativamente para derrubar três governos democraticamente eleitos. Um veículo que se apresenta como "independente", mas serve historicamente aos interesses de uma única família de oligarcas paulistas. Uma empresa jornalística que prega ética profissional, mas praticou o maior caso de plágio da história do jornalismo brasileiro e fabrica notícias falsas contra ministros de Estado.
Este jornal existe. Chama-se O Estado de S. Paulo, conhecido como Estadão. E sua história é muito diferente da narrativa heroica que ele próprio construiu sobre si mesmo.
Durante seis meses, esta investigação reuniu mais de 50 fontes documentais - pesquisas acadêmicas, arquivos históricos, denúncias do Ministério Público, depoimentos de jornalistas e documentos oficiais - para reconstituir 150 anos de atuação contra os interesses nacionais de um veículo que deveria informar, mas que sistematicamente desinforma, manipula e conspira.
O resultado é chocante: o Estadão não é um jornal. É um aparelho ideológico de dominação a serviço das elites econômicas, disfarçado de jornalismo.
Linha do tempo da evolução política do jornal O Estado de S. Paulo (1875-2025)
O DNA GOLPISTA: CONSPIRAÇÕES E DITADURA
1932: O Batismo de Sangue da Família Mesquita
A vocação golpista do Estadão nasceu cedo. Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, a sede do jornal foi transformada em um verdadeiro quartel-general. Como mostram Capelato e Prado em O Bravo Matutino (1980), a redação do periódico funcionava como base revolucionária, onde eram feitos recrutamentos de combatentes e distribuídas armas em apoio ao levante contra o governo de Getúlio Vargas. Não se tratava de jornalismo, mas de insurreição armada organizada a partir das páginas e dos corredores do diário.
O diretor do jornal, Júlio de Mesquita Filho, não se limitou a registrar os fatos: tornou-se um dos principais líderes civis da revolta, articulando intelectuais, empresários e setores militares em defesa da causa paulista. O Estadão atuava como porta-voz dos constitucionalistas, produzindo editoriais que mais pareciam manifestos de guerra. Sua tipografia imprimia panfletos e comunicados para as frentes de batalha, enquanto a redação era usada para convocar voluntários. Como observa Maria Helena Capelato, a palavra impressa passou a funcionar como uma arma tão importante quanto os fuzis.
Fachada histórica da sede do jornal "O Estado de S. Paulo" na São Paulo do início do século XX
O preço dessa aventura foi alto. Quando a Revolução Constitucionalista foi derrotada pelo Exército de Vargas, a própria família Mesquita pagou o custo. Segundo Capelato (1980), membros da família se envolveram diretamente na articulação e no front de combate. Ao final, Júlio de Mesquita Filho foi preso, exilado em Portugal, e o Estado de S. Paulo passou a ser administrado sob intervenção federal por mais de um ano. O que era apresentado como jornalismo serviu, na prática, de plataforma para a insurreição — e quem apostou nela sofreu as consequências da derrota.
Esse episódio marcou para sempre o caráter político do jornal. Mesmo após a intervenção, o Estadão preservou sua identidade antipopulista e seguiu atuando como um ator político, e não apenas como veículo de informação. Como lembram Capelato e Prado, ao longo das décadas seguintes a família Mesquita se opôs a qualquer política de cunho popular ou trabalhista, consolidando um padrão editorial de resistência às transformações sociais. O batismo de sangue de 1932 não foi um acidente: foi o início de um DNA golpista que faria da imprensa um instrumento de conspiração permanente contra governos que ousassem enfrentar os interesses das elites.
1964: O Estadão como “Ministério do Golpe”
Foi em 1964 que o jornal O Estado de S. Paulo – o Estadão – revelou sua verdadeira face. Pesquisas históricas e testemunhos da época comprovam que seu diretor Júlio de Mesquita Filho esteve entre os artífices do golpe militar, envolvido até o último fio na conspiração. O jornalista Carlos Chagas, que cobriu aqueles eventos, aponta Mesquita Filho como “um dos artífices do golpe de 1964, metido até o pescoço na conspiração”, ao lado de Roberto Marinho (dono de O Globo). Em outras palavras, o Estadão não foi um observador passivo – ele participou ativamente da queda de João Goulart.
Conspiração e Golpe: O Estadão no centro
Os fatos documentados são estarrecedores e desmontam de vez o mito de uma imprensa “apolítica” naquele período:
Diretrizes para o golpe: já em 1962, oficiais conspiradores (como Cordeiro de Farias e Orlando Geisel) reuniram-se com Júlio de Mesquita Filho em São Paulo e lhe entregaram um documento com “normas” para orientar o governo militar após a queda de Jango. O dono do Estadão não apenas apoiou a ideia – entusiasmou-se e sugeriu nomes para compor um futuro ministério “revolucionário” (oito nomes, incluindo Roberto Campos e Milton Campos, quatro dos quais acabariam realmente integrando o novo governo).
“Roteiro da Revolução”: Mesquita Filho esteve diretamente envolvido na elaboração do plano golpista. Junto com o jurista Vicente Rao (advogado ligado a grupos empresariais), ele redigiu um documento intitulado “Roteiro da Revolução”, que delineava medidas extremas a serem tomadas logo após a tomada do poder. Nesse roteiro – enviado a generais conspiradores como Emílio Garrastazu Médici – defendia-se, por exemplo, dissolver o Congresso Nacional (Senado e Câmara), cassar mandatos de governadores e prefeitos e suspender o habeas corpus. Em suma, o diretor do Estadão ajudou a escrever, antes mesmo do golpe, o esboço do autoritarismo que seria imposto ao país. De fato, Mesquita e Rao chegaram a preparar o rascunho de um Ato Institucional nesses moldes, antecipando o que o regime militar logo faria virar realidade.
Base da conspiração: as instalações e recursos do Estadão foram colocados a serviço dos golpistas. A sede do jornal tornou-se base conspiratória, onde civis e militares tramavam a derrubada do governo legítimo. Em junho de 1963, por exemplo, após um grande comício oposicionista no estádio do Pacaembu, um grupo seleto de conspiradores reuniu-se no apartamento de Júlio Mesquita Filho – que ficara encarregado de coordenar o apoio midiático aos ativistas . Ou seja, o próprio diretor do jornal oferecia espaço e suporte logístico para a conspiração. Décadas depois, seu irmão Ruy Mesquita admitiria sem rodeios: “Não só apoiamos, como conspiramos”.
Em outras palavras, o Estadão não apenas apoiou o golpe militar – ele ajudou a escrevê-lo e operacionalizá-lo. Júlio de Mesquita Filho usou a pena e a influência do jornal para pavimentar o caminho do regime de força.
Clamando por mais Ditadura
Após a queda de João Goulart, o Estadão não se contentou em celebrar a vitória dos golpistas – passou a exigir uma ditadura ainda mais dura. Desde os primeiros dias do novo regime, seus editoriais assumiram tom eufórico e beligerante. O jornal propagava que “toda a população brasileira aplaudia” a “Revolução” de 31 de Março e incitava os militares a levar “às últimas consequências” a “operação de limpeza” no Estado brasileiro. Em textos virulentos, o Estadão pregava a “necessidade de erradicação total” dos “soviets da Petrobrás” e a “decapitação da hidra vermelha” – metáforas para aniquilar por completo os focos de esquerda (sindicatos, estudantes, comunistas) remanescentes no país.
Capa do jornal O Estado de S. Paulo logo após o golpe, exaltando o “movimento democrático” vitorioso. O próprio periódico divulgou que o país teria sido “salvo” e clamava por uma “limpeza” geral dos inimigos internos.
Nos anos seguintes, o diário paulistano continuou cobrando mais radicalização do regime que ajudara a instaurar. Em outubro de 1965 – apenas um ano e meio após o golpe – um editorial do Estadão acusou o governo Castelo Branco de manter “em banho-maria esta Revolução meio anêmica”. O jornal protestava que os militares ainda não haviam decretado nem mesmo um estado de sítio para acelerar a “limpeza” política, reclamando das “tibiezas, hesitações e subterfúgios” dos governantes. Exigia-se abertamente a edição de “um segundo Ato Institucional” para permitir mais cassações de políticos “subversivos” e “corruptos” que ainda restavam.
Dias depois, atendendo a esses clamores, o marechal Castelo Branco decretou o Ato Institucional nº 2 (AI-2), endurecendo de vez o regime. E qual foi a reação do Estadão? Puro regozijo. “Revolucionários que somos, admitimos o recurso a medidas de exceção”, anunciou o jornal, justificando o AI-2 – já que, segundo ele, era impossível atingir “pela via legalista” os objetivos que motivaram o Movimento de 1964. Em editorial triunfante, o Estadão aplaudiu o novo Ato Institucional, mesmo reconhecendo, em tom quase cínico, que
“essas medidas de exceção representam uma faca de dois gumes” e poderiam “abrir o caminho para a ditadura”.
Mas essa ressalva final soava hipócrita: o próprio jornal havia incitado os ditadores a serem mais ditatoriais. De fato, o Estadão literalmente pediu mais ditadura – e os ditadores obedeceram.
O VEREDICTO DA HISTÓRIA CONTRA OS TRAIDORES DA DEMOCRACIA
O Estadão não é apenas mais um jornal — é o arquivo vivo de 150 anos de traição à democracia brasileira. Todos os fatos aqui apresentados, respaldados por documentos oficiais, pesquisas acadêmicas, denúncias do Ministério Público e testemunhos de jornalistas do próprio Estadão, atestam que este veículo, longe de ser guardião da liberdade, foi agente direto de golpes, manipulações e crimes contra a República.
Desde 1932, quando transformou sua redação em quartel-general golpista, recrutando combatentes e distribuindo armas para insurreições armadas, o Estadão tornou-se protagonista de episódios que mudaram o curso do país não pela força da verdade, mas pela força do interesse privado. Em 1964, repetiu o script: atuou como cérebro conspirador do golpe militar, redigiu diretrizes para generais, ofereceu sua infraestrutura ao plano golpista, e exigiu, por meio de editoriais, não só a deposição do governo legítimo, mas a radicalização do regime; clamou abertamente por medidas autoritárias e a extinção dos adversários políticos. Não foi jornalismo. Foi insurreição aliada ao terrorismo de Estado.
Só mudou seu discurso — e iniciou sua farsa de “resistência” — quando o regime que ajudou a consolidar passou a ameaçar os interesses da própria família Mesquita, como veremos a seguir. Assim, o Estadão converteu sua covardia em heroísmo, sua omissão em resistência, sua cumplicidade em vitimização, em um dos maiores golpes de falsificação histórica já perpetrados por um veículo da imprensa mundial.
O padrão criminoso se perpetua: seja através da fabricação de notícias falsas, do maior caso de plágio já relatado no jornalismo brasileiro, de campanhas sistemáticas de perseguição política e manipulação da opinião pública, de ataques canalizados a instituições do Estado Democrático de Direito, o Estadão atuou e atua como máquina de guerra contra governos populares e políticas que contrariam os interesses de uma aristocracia midiática. Não apenas conspirou contra três governos eleitos democraticamente, mas construiu, ao longo das décadas, uma estrutura de poder capaz de decidir presidentes, fabricar crises institucionais e promover golpes sob a máscara da liberdade de imprensa.
O perigo do Estadão não é coisa do passado. A cada ciclo histórico, seus métodos mudam, mas o DNA golpista permanece: editoriais virulentos, manipulação escancarada dos fatos, articulação ativa com forças antidemocráticas e uma posição sistematicamente contrária aos avanços sociais. O jornalismo é abandonado em nome da manutenção do poder da família Mesquita e seus aliados, enquanto o público brasileiro, mantido sob o véu da desinformação, é conduzido a apoiar projetos que sabotam os próprios interesses nacionais.
O Estadão é apenas mais um rosto de uma doença estrutural: a concentração quase feudal dos meios de comunicação nas mãos de poucas famílias. O resultado é uma democracia frágil, refém de interesses privados, incapaz de garantir ao povo acesso à verdade — e, portanto, de materializar a soberania popular.
O tempo da ingenuidade acabou. Não há mais desculpas. Os arquivos estão livres, as vozes dos que viveram o terror golpista se multiplicam, e a própria família Mesquita já admitiu, sem pudor, sua participação nos maiores ataques à democracia do Brasil. O Estadão é instrumento de dominação, fábrica de golpes, produtor de mentiras institucionalizadas.
Cabe a nossa geração decidir: aceitaremos esse pacto tácito com a traição ou vamos enfrentar de vez os inimigos internos da democracia? A luta agora é pela proteção do espaço público contra a manipulação e pelo fim do monopólio do discurso. Ou o país exige uma imprensa livre, ética, plural e verdadeiramente democrática — ou será condenado a repetir, indefinidamente, os ciclos de falsificação, autoritarismo e tragédia.
A máscara caiu. O rei está nu. E agora a verdade clama por justiça e ação. O futuro da democracia brasileira depende da coragem de olhar para os fatos, romper com o silêncio cúmplice e conquistar, finalmente, uma imprensa digna, do povo e para o povo.