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  • Foto do escritor: Raul Silva
    Raul Silva
  • 19 de jul.
  • 7 min de leitura

Um mergulho crítico na Pedagogia do Oprimido e na construção da imagem do “inimigo número um da educação” pela extrema-direita brasileira


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No cenário político brasileiro contemporâneo, poucos nomes concentram tanta controvérsia quanto o de Paulo Freire. Elevado ao posto de Patrono da Educação Brasileira em 2012, sua obra é reconhecida internacionalmente, traduzida em mais de 30 idiomas, discutida em universidades de referência e aplicada em projetos pedagógicos de transformação social em países como Moçambique, Nicarágua, Finlândia e África do Sul. Contudo, no Brasil — o mesmo país que lhe concedeu reconhecimento oficial —, Freire é frequentemente reduzido a um símbolo caricatural de doutrinação ideológica. 


A origem de uma pedagogia para libertar


Paulo Freire nasceu no Recife em 1921, num Brasil marcado pela desigualdade estrutural e pela exclusão sistemática das classes populares do processo educativo formal. A experiência direta com a fome, o analfabetismo e a marginalização social moldou sua visão de mundo e sua ética pedagógica. Desde cedo, compreendeu que o acesso à palavra escrita e à leitura crítica era também acesso ao mundo — e, por consequência, às possibilidades de transformação social. Seu trabalho nos anos 1950 e 60 com alfabetização de adultos, especialmente no Nordeste brasileiro, levou à criação de uma pedagogia fundamentada no diálogo, na escuta ativa e na transformação da realidade a partir da consciência crítica. Essa pedagogia não era uma mera técnica de ensino, mas uma filosofia política comprometida com a dignidade humana.


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Sua principal obra, Pedagogia do Oprimido (1968), escrita durante o exílio após o golpe militar de 1964, propõe uma educação centrada na conscientização — um processo dialético em que o indivíduo deixa de ser objeto e passa a ser sujeito da história. A crítica à “educação bancária”, que trata o aluno como um recipiente passivo a ser preenchido por um conteúdo unilateral, é substituída por uma pedagogia do diálogo, em que professor e estudante se reconhecem mutuamente como inacabados, em constante processo de construção e reconstrução do saber. O objetivo não é “ensinar conteúdos”, mas criar condições para que o educando possa ler o mundo, compreendê-lo e agir sobre ele.


Freire propõe uma revolução epistemológica na relação entre educador e educando, abandonando o modelo vertical e hierarquizado de ensino para propor um processo horizontal, fundado na escuta e na problematização do cotidiano. A pedagogia freireana, portanto, não é um método fechado, mas um gesto político e epistêmico. Trata-se de pensar a educação como prática da liberdade, como intervenção no mundo — e não como adaptação resignada a ele. Isso implica romper com estruturas autoritárias, patriarcais, coloniais e elitistas. Implica, também, reconhecer que toda educação carrega em si um projeto de mundo, e que a pretensa neutralidade, nesse contexto, é apenas o nome dado à adesão silenciosa à ordem vigente.


A construção do espantalho: do educador ao “doutrinador”


É nesse ponto que a figura de Freire se torna profundamente incômoda para determinados setores políticos e econômicos. Uma pedagogia que forma sujeitos críticos, capazes de problematizar a realidade social, é incompatível com modelos autoritários que se sustentam na obediência, na repetição e na despolitização do conhecimento. Ao contrário da falsa premissa de que Freire defendia a doutrinação, sua proposta é justamente antitética à imposição de ideias: ela parte do diálogo com a realidade vivida pelo educando, da leitura do mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Como afirmou em diversas entrevistas, “doutrinar é exatamente o oposto do que proponho”.


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Contudo, a partir dos anos 2000, especialmente com a ascensão de grupos como o movimento Escola Sem Partido, a figura de Paulo Freire passou a ser ressignificada por setores conservadores como símbolo máximo de uma suposta infiltração ideológica nas escolas. Essa narrativa ganhou contornos mais explícitos com a ascensão de Olavo de Carvalho como ideólogo da nova direita brasileira. Misturando teorias conspiratórias sobre “marxismo cultural”, revisionismo histórico e anticomunismo difuso, Olavo resgatou interpretações distorcidas da pedagogia freireana para sustentar a tese de que o sistema educacional brasileiro estaria sendo dominado por uma agenda gramsciana disfarçada de projeto pedagógico.


Freire, então, deixou de ser lido e passou a ser instrumentalizado como inimigo interno. Tornou-se um emblema a ser combatido nos discursos de campanha, nas falas ministeriais e nas redes sociais, sobretudo durante e após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A promessa de “expurgar Paulo Freire das escolas” foi um dos motes centrais da plataforma de governo bolsonarista, sustentada por vídeos virais, memes descontextualizados, frases apócrifas e uma mobilização coordenada de fake news em grupos de WhatsApp e canais de YouTube ligados à extrema-direita.


O mais grave, no entanto, é que essa construção não se deu por engano ou ignorância, mas por conveniência política. O chamado “espantalho freireano” foi erguido como parte de um projeto ideológico que visa substituir a escola crítica por uma escola conformista, esvaziada de pensamento e servil às pautas morais e econômicas da nova direita brasileira — pautas que incluem o revisionismo da ditadura militar, o negacionismo científico, a cruzada contra a discussão de gênero, o ataque ao movimento negro e a defesa de um nacionalismo cristão autoritário. O ataque a Freire é, portanto, apenas a face mais visível de um projeto mais amplo de apagamento da educação como ferramenta de emancipação social.


O que está em jogo: a pedagogia do silêncio


A guerra contra Paulo Freire, portanto, não é uma mera disputa de ideias sobre métodos pedagógicos. Ela é sintoma de algo maior: a recusa ao pensamento crítico como princípio educativo. A ofensiva contra a pedagogia freireana é, na verdade, uma ofensiva contra qualquer forma de educação que se proponha a formar cidadãos e não apenas trabalhadores dóceis. Quando se combate Freire, combate-se o direito de o aluno perguntar, de o professor propor caminhos fora do currículo engessado, de a escola ser um espaço de leitura do mundo — e não apenas de reprodução de conteúdos.


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E aqui reside o núcleo do problema. O que incomoda não é Freire em si, mas o que ele representa: a possibilidade de uma escola pública que emancipa, que forma sujeitos capazes de pensar contra os consensos impostos. Uma escola que, ao invés de formar para o mercado, forma para a vida em sociedade. Que questiona os privilégios, que desafia os dogmas, que não se curva ao poder — seja ele político, religioso ou econômico. Nesse sentido, Freire se torna não um doutrinador, mas um libertador — e exatamente por isso se torna perigoso para os que querem manter tudo como está.


A tentativa de apagar Freire é também a tentativa de apagar um horizonte possível de educação democrática. Uma educação que não se define apenas por resultados em exames internacionais ou por índices de produtividade, mas pela capacidade de formar sujeitos éticos, sensíveis, críticos e comprometidos com a transformação do mundo. Uma educação que reconhece que ensinar não é domesticar, mas libertar. Que compreende que toda prática pedagógica é, em última instância, um ato político — e que negar essa dimensão é entregar a formação das novas gerações às forças que lucram com a ignorância e o conformismo.


a permanência de uma pedagogia insubmissa


Diante do cenário atual, é urgente recuperar Paulo Freire não como fetiche ou mito, mas como pensador radicalmente comprometido com a justiça, a dignidade e a transformação social. Ler Freire hoje é um ato de resistência, não contra um governo ou partido específico, mas contra um projeto de sociedade que privilegia a apatia política, a desinformação e a indiferença diante das desigualdades. Sua pedagogia continua viva em cada sala de aula onde o diálogo é valorizado, onde o conhecimento é construído coletivamente, onde a escuta ativa é tão importante quanto a transmissão de conteúdo. Freire sobrevive onde há professores que recusam o papel de meros reprodutores de currículo e se afirmam como agentes históricos, capazes de intervir, transformar e humanizar a experiência educativa.


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No Brasil — um país marcado por uma desigualdade educacional histórica, onde 33 milhões de pessoas voltaram à insegurança alimentar, em que a evasão escolar cresce principalmente nas periferias urbanas e zonas rurais, onde professores são submetidos a censura institucional, violência simbólica e ameaças físicas e morais —, seguir Paulo Freire é, paradoxalmente, resistir à acusação de doutrinação. É insistir na radicalidade da esperança, como ele próprio definia. É defender que a educação pode e deve ser libertadora. Uma educação que, como ele escreveu, é “ato de amor, e por isso, ato de coragem”. E também um ato de justiça social, porque se recusa a naturalizar as estruturas de opressão que silenciam vozes, restringem horizontes e destroem o futuro de gerações inteiras.


Freire não propõe uma utopia ingênua. Ele oferece um projeto ético e político de formação que reconhece o ser humano como sujeito de direitos, de história e de cultura. Em tempos de ataques à liberdade de cátedra, ao pluralismo de ideias e à escola pública, seu pensamento se torna ainda mais necessário. Não se trata de erigir um altar ao patrono da educação brasileira, mas de resgatar a atualidade e a potência transformadora de seu legado. Ele continua sendo um guia para aqueles que acreditam que ensinar é um gesto de compromisso com a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática.


A resposta à pergunta que dá título a este artigo, portanto, não é ambígua nem relativizável. Freire não foi — e nunca será — doutrinador. Freire é, por essência, libertador. E é exatamente por isso que ele continua sendo temido por aqueles que se alimentam da ignorância como projeto de poder. Porque uma sociedade que pensa é uma sociedade que resiste. Uma sociedade que lê o mundo é uma sociedade que não aceita calar-se diante da injustiça. E uma educação que liberta é, sempre, o primeiro passo para o fim de qualquer tirania. Defender Paulo Freire hoje é defender o direito de sonhar com um país onde o conhecimento não seja mercadoria, mas um bem comum. Onde educar não seja apenas preparar para o trabalho, mas formar para a cidadania, para a convivência e para a emancipação coletiva.


Referências: Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, 1968); Dermeval Saviani (Escola e Democracia, 1983); Miguel Arroyo (Ofício de Mestre, 2000); entrevista de Freire à Folha de S. Paulo (1987); Dicionário Paulo Freire (org. Walter Kohan); DW Brasil (2021); Intercept Brasil (2019); documentos do Escola Sem Partido; estudos de Daniel Cara, Gaudêncio Frigotto, Nita Freire, Henry Giroux, Noam Chomsky, e outros.


 
 
 

Por: Raul Silva - Jornalista do Radar Literário


O fenômeno da ascensão da apologia ao nazismo no Brasil, evidenciado por um aumento de 242% nos últimos cinco anos, reflete um complexo conjunto de fatores sociopolíticos e culturais que demandam uma análise aprofundada. Dados da Polícia Federal e de organizações como a SaferNet indicam uma escalada preocupante no volume de ocorrências, predominantemente concentradas em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro. O crescimento desse fenômeno não ocorre de maneira isolada, mas sim inserido em um contexto global de recrudescimento de movimentos ultraconservadores, impulsionados por discursos revisionistas e pela reinterpretação da liberdade de expressão como um salvo-conduto para a propagação do ódio.


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A Lei nº 7.716/89, criada para coibir manifestações que incitam o racismo e o neonazismo, enfrenta desafios imensos na contemporaneidade, especialmente no cenário digital. A multiplicação de conteúdos extremistas em plataformas como Twitter, Instagram e TikTok evidencia a ineficácia dos mecanismos de controle, exacerbada pela lógica algorítmica que privilegia o engajamento em detrimento da responsabilidade ética. Estudos da SaferNet demonstram que mais de 20 mil denúncias anuais envolvem crimes de ódio, dos quais uma parcela significativa está vinculada à difusão de símbolos e ideologias neonazistas. A fragilidade das regulações e a ambiguidade das diretrizes de moderação dessas plataformas contribuem para a consolidação desse cenário.


O crescimento exponencial das ocorrências, que saltaram de um patamar residual em 2020 para mais de 80 casos registrados formalmente em 2023, ilustra uma perigosa banalização de discursos racistas e antidemocráticos. O fenômeno apresenta variações regionais relevantes, com grandes centros urbanos despontando como epicentros da radicalização, exigindo políticas públicas que sejam tanto nacionais quanto localmente calibradas. Além disso, investigações apontam para a existência de redes organizadas que promovem encontros clandestinos e disseminam propaganda extremista em ambientes digitais subterrâneos, como fóruns na deep web e grupos de mensagens criptografadas.


A vulnerabilidade da juventude nesse processo é um dos aspectos mais alarmantes. Estudos indicam que jovens, em busca de pertencimento e identidade, são alvos preferenciais de grupos neonazistas que operam por meio de estratégias sofisticadas de recrutamento digital. Esses espaços promovem uma construção narrativa que mescla revisionismo histórico, teorias conspiratórias e um discurso de exclusividade, prometendo aos adeptos uma posição de distinção dentro de uma suposta elite racial e ideológica. O acesso precoce a essas comunidades, muitas vezes facilitado pela negligência institucional na educação digital, acelera processos de radicalização e dificulta intervenções preventivas.


No âmbito político, a ascensão de discursos extremistas reflete uma deterioração do debate público. Pesquisas da Fundação Getulio Vargas (FGV) indicam que, em anos eleitorais, há um aumento na circulação de simbologia nazista e discursos de ódio nas redes sociais, muitas vezes instrumentalizados por candidatos e grupos políticos que buscam deslegitimar adversários e amplificar divisões sociais. Essa instrumentalização revela a insuficiência da regulação digital e a necessidade de mecanismos mais eficazes de responsabilização de agentes públicos que, de forma deliberada ou negligente, fomentam discursos que relativizam ou normalizam manifestações neonazistas.


O enfrentamento dessa tendência requer um esforço multidimensional, que perpassa desde o fortalecimento das políticas de regulação digital até a implementação de estratégias educativas robustas, focadas no letramento crítico e na cidadania digital. A desconstrução do discurso neonazista deve ser conduzida por meio de uma abordagem interdisciplinar, que envolva historiadores, sociólogos, educadores e especialistas em segurança digital. Além disso, a cooperação entre organismos governamentais, instituições acadêmicas e sociedade civil se torna imprescindível para a criação de programas eficazes de monitoramento e intervenção.


O Brasil, ao longo de sua história, consolidou-se como uma nação plural e marcada por uma rica diversidade cultural. Entretanto, a crescente presença do neonazismo e a normalização do discurso de ódio representam um desafio crítico para a manutenção dos princípios democráticos. O combate a essa ameaça exige não apenas a repressão jurídica e o endurecimento das penalidades legais, mas também um compromisso coletivo com a educação para a cidadania, a preservação da memória histórica e a valorização da diversidade como fundamento de uma sociedade justa e equitativa.


A escalada da apologia ao nazismo no Brasil não pode ser subestimada. Cada ocorrência registrada deve ser compreendida não apenas como um evento isolado, mas como parte de uma conjuntura que, se não contida, pode corroer as bases democráticas do país. A sociedade brasileira precisa transformar cada dado alarmante em um chamado à ação, convertendo o enfrentamento ao extremismo em uma prioridade nacional, sustentada por políticas públicas eficazes, regulação digital responsável e um compromisso inegociável com os valores humanistas e democráticos.


Fontes:



 
 
 
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