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Da redação do Radar Literário.


Nos últimos anos, os vestibulares das principais universidades brasileiras têm passado por uma transformação significativa, refletindo uma mudança cultural e social que busca valorizar a representatividade feminina na literatura. Autoras brasileiras, antes relegadas a um segundo plano, agora ocupam um espaço central nas listas de leituras obrigatórias, trazendo à tona narrativas que exploram temas como identidade, gênero, raça e desigualdade social. Essa tendência não apenas enriquece o repertório literário dos estudantes, mas também resgata vozes que foram historicamente silenciadas.


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A Fuvest, responsável pelo vestibular da Universidade de São Paulo (USP), deu um passo ousado ao anunciar que, a partir de 2026, sua lista de obras obrigatórias será composta exclusivamente por autoras mulheres. Essa decisão, que abrange os vestibulares de 2026 a 2028, inclui nomes como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz, Conceição Evaristo, Nísia Floresta, Narcisa Amália, Julia Lopes de Almeida, Paulina Chiziane e Djaimilia Pereira de Almeida. A iniciativa visa não apenas corrigir uma lacuna histórica, mas também destacar a importância das mulheres na construção do cânone literário brasileiro.


Clarice Lispector, uma das mais celebradas escritoras do século XX, está presente na lista com sua obra "A Paixão segundo G.H." (1964), um romance introspectivo que mergulha nas profundezas da psique humana. Já Lygia Fagundes Telles, conhecida por sua habilidade em retratar personagens complexos, é representada por "As Meninas" (1973), um livro que explora a vida de três jovens em meio à repressão política dos anos 1970. Rachel de Queiroz, pioneira na literatura regionalista, traz à lista "Caminho de Pedras" (1937) e "João Miguel" (1932), obras que refletem as lutas e desafios do Nordeste brasileiro.


Conceição Evaristo, uma das vozes mais importantes da literatura contemporânea, é destaque com "Canção para Ninar Menino Grande" (2018), uma obra que aborda as complexidades da masculinidade negra e suas interseções com gênero e raça. Sua presença nos vestibulares da USP, Unicamp e outras universidades reforça o papel da literatura como ferramenta de reflexão social.


Nísia Floresta, considerada a primeira feminista brasileira, é lembrada por suas obras "Opúsculo Humanitário" (1853) e "Conselhos à Minha Filha" (1842), que defendem os direitos das mulheres e a educação feminina. Narcisa Amália, por sua vez, é representada por "Nebulosas" (1872), uma coletânea de poemas que mescla temas íntimos com críticas sociais e políticas.


A Unicamp, outra instituição de prestígio, também tem ampliado a presença de autoras em suas listas de leituras obrigatórias. Para o vestibular de 2025, a universidade incluiu "Olhos D’Água" (2014), de Conceição Evaristo, e "Niketche: Uma História de Poligamia" (2002), da moçambicana Paulina Chiziane, que aborda questões de gênero e tradição em Moçambique. Em 2026, a lista ganha mais uma obra internacional: "No Seu Pescoço" (2017), da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que explora temas como migração, identidade e desigualdade.


Outras universidades, como a UFPR, UFSC, UFRGS e UESB, também têm seguido essa tendência, incluindo obras de autoras como Ruth Guimarães, Eliana Alves Cruz e Pagu (Patrícia Galvão) em suas listas. Ruth Guimarães, por exemplo, é destaque com "Água Funda" (1946), um romance que retrata a decadência das fazendas de café no Vale do Paraíba.


Essa mudança nos vestibulares reflete um movimento mais amplo de valorização da diversidade e da representatividade na literatura. Segundo Gustavo Monaco, diretor executivo da Fuvest, a escolha por autoras mulheres não nega a importância dos autores homens, mas busca trazer à luz obras que, por muito tempo, foram negligenciadas. "Trata-se de destacar a importância das mulheres no cânone literário, em diferentes períodos históricos e gêneros", afirma.


Além disso, a inclusão de obras que abordam temas contemporâneos e globais, como as de Chimamanda Ngozi Adichie e Paulina Chiziane, amplia o repertório cultural dos estudantes, incentivando uma leitura crítica e contextualizada. José Alves de Freitas Neto, diretor da Comvest, ressalta que o objetivo é "fugir da superficialidade e mergulhar no universo da literatura".


Essa transformação nos vestibulares não apenas prepara os estudantes para os desafios acadêmicos, mas também os convida a refletir sobre questões sociais e culturais que continuam relevantes hoje. Ao dar visibilidade a autoras brasileiras e estrangeiras, as universidades estão reescrevendo a história da literatura, mostrando que as mulheres sempre estiveram presentes, mesmo que suas vozes tenham sido silenciadas por séculos.


Em um país onde a desigualdade de gênero e raça ainda é uma realidade, essa mudança nos vestibulares é um passo importante para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. As autoras brasileiras, com suas narrativas poderosas e transformadoras, estão finalmente recebendo o reconhecimento que merecem, inspirando uma nova geração de leitores e escritores.

 
 
 

Enquanto o mundo celebra sua atuação brilhante em Ainda Estou Aqui (2024), filme que lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama, Fernanda Torres consolida outro legado: o de escritora. Desde 2013, quando lançou seu primeiro romance, Fim, a artista carioca expandiu sua voz para além dos palcos e telas, conquistando leitores com narrativas que exploram a fragilidade humana, o tempo e as contradições da vida moderna. Sua trajetória literária, composta por três obras até o momento, revela uma autora que domina tanto a ironia afiada quanto a profundidade emocional, tecendo histórias que dialogam com a alma brasileira e universal.


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A estreia literária: Fim (2013), um retrato cru do envelhecer

Publicado pela Companhia das Letras, Fim é um marco na carreira de Torres. O romance acompanha cinco amigos cariocas — Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro — em suas últimas décadas de vida, entrelaçando memórias de festas, casamentos fracassados e frustrações. Cada personagem carrega uma carga existencial única: Álvaro, hipocondríaco e solitário; Sílvio, viciado em drogas e sexo; Ribeiro, que prolonga sua virilidade com Viagra; Neto, o marido fiel; e Ciro, o Don Juan que sucumbe ao câncer. A trama, ambientada no Rio de Janeiro entre 1968 e 2012, não apenas critica o machismo enraizado nas relações sociais, mas também expõe a melancolia de quem enfrenta a finitude sem encontrar redenção.


O livro, aclamado por sua maturidade narrativa, vendeu mais de 150 mil cópias e foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2014. Em 2018, ganhou o Jabuti de Livro Brasileiro Publicado no Exterior, consolidando Torres como uma voz relevante na literatura contemporânea. Uma década após seu lançamento, Fim ganhou vida nova como série do Globoplay (2023), adaptada com ajustes que ampliaram o protagonismo feminino, reflexo das transformações sociais que a própria autora observou ao revisitar a obra.


Crônicas e confissões: Sete Anos (2014), o humor como espelho social

Se Fim é um mergulho na ficção, Sete Anos revela a Fernanda Torres cronista. A coletânea reúne textos publicados em veículos como a revista Piauí, a Folha de S.Paulo e a Veja Rio entre 2007 e 2014. Com humor ácido e olhar perspicaz, a autora discute cinema, teatro, política e cotidiano, como em No Dorso Instável de um Tigre, crônica sobre o medo de subir ao palco, ou Dercy, perfil irreverente da atriz Dercy Gonçalves. O livro inclui ainda Despedida, texto inédito e comovente sobre a morte do pai, onde Torres equilibra luto e ironia, mostrando sua capacidade de transitar entre o pessoal e o universal.


O teatro como metáfora da vida: A Glória e seu Cortejo de Horrores (2017)

Em seu segundo romance, Torres constrói uma alegoria sobre a fugacidade da fama através de Mário Cardoso, ator sessentão que tenta ressuscitar a carreira encenando Rei Lear. A narrativa percorre décadas da cultura brasileira — do Cinema Novo às telenovelas dos anos 1980 — enquanto expõe a decadência de um artista que vê seus ideais artísticos serem engolidos pela superficialidade do mercado. A obra é tanto uma crítica ao culto à juventude quanto uma homenagem ao teatro, com referências a Tchékhov e ao movimento hippie. A prosa de Torres brilha na ironia com que descreve as trapalhadas de Mário, transformando sua queda em um espelho das ilusões de toda uma geração.


Literatura como extensão da arte: uma autora multifacetada

Fernanda Torres não separa suas facetas de atriz e escritora. Em entrevistas, ela afirma que a escrita a ajuda a compreender melhor os personagens que interpreta, numa simbiose entre palavra e ação. Seus livros, assim como seus papéis no cinema, são marcados por personagens complexos e diálogos precisos, herança de sua formação nas artes cênicas. Essa conexão fica evidente em A Glória..., onde o protagonista Mário Cardoso parece ecoar suas próprias reflexões sobre o envelhecimento no meio artístico.


Além disso, a autora mantém um canal literário no TikTok com mais de 260 mil seguidores, onde discute obras clássicas e compartilha dicas de leitura — prova de que sua relação com a literatura é tão dinâmica quanto sua carreira.


Reconhecimento e legado: além das fronteiras do Brasil

A trajetória literária de Torres transcende prêmios. Seus livros são estudados em universidades e adaptados para outras mídias, como o teatro — caso de A Casa dos Budas Ditosos, monólogo que interpretou por mais de uma década, baseado na obra de João Ubaldo Ribeiro. Internacionalmente, Fim foi traduzido para o francês, espanhol e italiano, levando a literatura brasileira a novos públicos. Para críticos, seu maior mérito está em humanizar temas como a velhice e o fracasso, transformando-os em narrativas que ressoam em qualquer latitude.


Enquanto aguardamos seu próximo projeto literário, Fernanda Torres segue provando que a arte não conhece limites. Seja nas telas ou nas páginas, ela continua a desafiar expectativas, unindo a força da interpretação à delicadeza da escrita — uma verdadeira mestra das emoções humanas.

 
 
 

Por Raul Silva – Especialista em Literatura para o Teoria Literária


A literatura é, por essência, um espaço para a experimentação da realidade, uma arena onde a ficção pode transitar por um campo limítrofe, questionando verdades absolutas e transgredindo as fronteiras do social e do político. No entanto, o lançamento de Diário da Cadeia, de Ricardo Lísias, tornou-se mais do que um simples exercício literário – rapidamente, a obra provocou um frenesi jurídico e midiático que a elevou ao status de símbolo da crise entre liberdade de expressão, poder institucional e a manipulação das narrativas. O livro, que já havia sido publicado sob o pseudônimo de “Eduardo Cunha”, ex-deputado federal que se tornou figura central no impeachment de Dilma Rousseff, assumiu uma tonalidade de polêmica inesperada que fez o nome de Lísias ecoar em uma disputa pela verdade, pela representação e pela honra. O caso revelou que, por vezes, a literatura não é apenas uma forma de expressar ideias – mas, quando mal interpretada ou usada com propósitos controversos, torna-se uma arma.


Capa do Livro - Editora Record
Capa do Livro - Editora Record

Antes de tudo, é importante entender a proposta de Diário da Cadeia. A obra, em sua essência, faz uma releitura ficcional de eventos reais envolvendo a prisão e o processo político de Eduardo Cunha. A construção do livro, com seu tom irônico e, por vezes, desconcertante, é marcada por uma escritura em primeira pessoa que mergulha nas tensões internas e nos dilemas de Cunha, muitas vezes apresentados de maneira surreal e exagerada. Porém, essa abordagem, que faz uso da liberdade criativa do autor, foi entendida de maneira dúbia pelos leitores e, mais ainda, pelo próprio protagonista da história, que sentiu sua imagem distorcida e sua honra questionada.


Em um dos trechos do livro, Lísias escreve: "O que é ser Eduardo Cunha senão um símbolo de um país que se revela podre em suas estruturas?" Aqui, o autor não faz uma biografia ou uma tentativa de documentar os eventos de forma objetiva; ele cria uma construção literária, onde a realidade é atravessada pela ficção e onde a política se mistura com a alegoria. Isso confunde, por um lado, e desperta uma ira pessoal, por outro. Lísias, com sua escrita distorcida e provocadora, nos leva a refletir sobre como as figuras públicas – em especial aquelas como Cunha, com toda sua carga de polarização – se tornam parte de um espectro que vai além do real. Neste ponto, a linha entre o real e o inventado se dilui, gerando um campo fértil para interpretações divergentes.


Ricardo Lísias - Autor
Ricardo Lísias - Autor

O autor, ao fazer uso de Cunha como personagem, insere, sem dúvida, uma crítica a um sistema político em crise, mas o que torna o livro ainda mais intrigante é a forma como ele é lido por diferentes públicos. A ausência de clareza sobre o limite entre o que é ficção e o que é realidade gerou uma série de reações impetuosas, principalmente por parte daqueles que se viam afetados diretamente. Eduardo Cunha, após o lançamento da obra, recorreu à justiça alegando danos à sua honra e à sua imagem, o que culminou em uma decisão controversa de Alexandre de Moraes, do STF, que determinou a retirada do livro de circulação.


A decisão do STF é emblemática, não apenas pela censura a uma obra literária, mas porque revela a complexidade do espaço jurídico na proteção da liberdade de expressão versus o direito à imagem e à honra de um indivíduo. "O que é ficção para um, é realidade para outro" – essa frase, ao longo do caso, ressoou como uma verdade amarga para muitos, pois expôs a fragilidade de um sistema de justiça que parece vulnerável a interpretações personalistas e à manipulação da própria narrativa. A prisão de Cunha, sua figura controversa e seus embates políticos não poderiam ser ignorados, mas ao mesmo tempo, o livro de Lísias nunca se colocou como um documento histórico. Ele, antes, flertava com a fantasia, o grotesco e o absurdo.


Outro aspecto central de Diário da Cadeia é a sua estrutura narrativa, construída sobre uma desconstrução de figuras públicas e um jogo literário com a psique de seu protagonista. Mas o que essa estrutura revela, mais do que tudo, é uma crítica à manipulação das narrativas – algo que é particularmente pertinente ao mundo contemporâneo, onde as informações, frequentemente desconexas, tornam-se o meio pelo qual os indivíduos e as ideias se tornam poderosos. "Estamos todos, de certa forma, aprisionados em nossas próprias versões da verdade" – Lísias reflete, em seu livro, sobre o dilema da relativização da verdade, um tema que se alinha ao momento político brasileiro de uma década atrás, e que, no caso do autor, se transforma em uma análise da desconstrução das figuras políticas tradicionais.


Não obstante, a obra também revela as angústias do próprio autor em relação ao espaço da ficção. Lísias, ao se deparar com a reação do público e da justiça, viu-se imerso em um processo de legitimação literária, onde a obra foi colocada não apenas como um produto artístico, mas como uma guerra simbólica entre liberdade criativa e poder judiciário. O episódio de censura, portanto, assume uma ironia peculiar: a tentativa de silenciar a obra apenas tornou-a mais visível, mais imponente, mais questionada.


É aqui, na sobreposição de discursos e na manipulação de figuras públicas como Cunha, que Lísias constrói sua crítica. O autor não é apenas um observador passivo do processo – ele é um provocador, um crítico que utiliza a literatura para questionar as estruturas de poder, especialmente quando estas se tornam autoritárias, como ficou claro com a retirada do livro. A ironia é palpável: "Censuram o livro, mas a história já foi contada" – uma linha de pensamento que, ao final, sugere que a censura se volta contra si mesma. A obra, ao ser retirada de circulação, ganha uma nova dimensão, se tornando mais do que uma simples narrativa sobre Cunha; ela passa a ser um símbolo da luta pela liberdade de expressão.


Alexandre de Moraes - STF
Alexandre de Moraes - STF

O tratamento dado à figura de Cunha, por fim, é meticulosamente calculado. Ao distorcê-lo, Lísias o liberta de suas amarras sociais e o converte em um personagem literário que, na ficção, se torna maior do que a soma de seus feitos políticos. A prisão de Cunha, sua figura impositiva, sua retórica ameaçadora e seu domínio de narrativas políticas são diluídos e transformados em um produto que não visa apenas criticar, mas redescobrir um espaço mais amplo onde ficção e realidade se mesclam.


Em Diário da Cadeia, a crítica de Ricardo Lísias é clara: em um país onde as narrativas oficiais são constantemente manipuladas e distorcidas, o papel da literatura se torna o de desmantelar a ficção oficial e criar novas representações da realidade, onde a arte e o questionamento da verdade ganham voz e poder. Ao ser censurado, o livro não perdeu seu impacto; pelo contrário, tornou-se ainda mais relevante, ampliando as questões que ele levanta sobre o direito à liberdade, à criação e ao papel do autor na construção de um mundo mais justo.


Ao final, Diário da Cadeia não se resume a um confronto entre literatura e direito, mas revela, com grande destreza, como a ficção pode servir como um espelho para o real, tornando-se, ela própria, um campo de batalha onde ideias, figuras e valores se enfrentam e, muitas vezes, se distorcem. O livro de Lísias é um exercício de poder literário que não pode ser silenciado, e sua mensagem continua viva em cada debate, em cada questionamento, em cada reflexão que ele desperta.



 
 
 
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