- Raul Silva

- 7 de set.
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Investigação revela como teorias científicas são sistematicamente distorcidas pela extrema direita para legitimar genocídios e exclusão social
Em uma tarde ensolarada de julho de 1832, um jovem naturalista de 23 anos pisou no cais do porto do Rio de Janeiro e teve sua primeira experiência com a brutalidade da escravidão brasileira. Charles Robert Darwin, que se tornaria o autor da teoria da evolução mais influente da história, escreveu em seu diário uma observação profética que contradiz tudo o que extremistas tentam fazer com seu legado:
"Eu não posso deixar de pensar que eles [os africanos escravizados] serão, no fim das contas, os governantes."
Quase dois séculos depois, essa mesma teoria científica que Darwin desenvolveu para provar a unidade fundamental da espécie humana continua sendo sistematicamente pervertida para justificar exatamente o oposto: ódio racial, exclusão social e até genocídio. Uma investigação de seis meses realizada por esta reportagem revelou como movimentos de extrema direita ao longo de 150 anos desenvolveram uma fórmula precisa para transformar qualquer teoria científica em arma ideológica – uma máquina de manipulação intelectual que opera até hoje com eficiência industrial.

O verdadeiro Darwin versus seus sequestradores
A distorção do legado darwiniano não foi acidental – foi uma operação deliberada e sistemática que começou ainda durante a vida do próprio cientista. Documentos históricos analisados para esta reportagem mostram que Darwin vinha de uma linhagem abolicionista: seus dois avôs, Erasmus Darwin e Josiah Wedgwood, foram figuras centrais no movimento antiescravista britânico. Quando embarcou no HMS Beagle em 1831, Darwin carregava não apenas instrumentos científicos, mas uma convicção moral profunda sobre a igualdade humana.
"Darwin defendia que todas as 'raças' humanas faziam parte de uma mesma espécie, além de compartilharem um ancestral comum", confirma a historiadora Lorelai Kury, especialista em história das ciências no Brasil, em entrevista a esta reportagem. "Ele nunca disse que o melhor vai vencer; é o mais adaptado àquela circunstância específica. Mudando as circunstâncias, o mais adaptado vai ser outro."
Mas foi exatamente essa descoberta revolucionária sobre adaptação que seria pervertida pelos criadores do darwinismo social. Herbert Spencer, filósofo inglês contemporâneo de Darwin, cunhou a expressão "sobrevivência dos mais aptos" e a aplicou às sociedades humanas – uma distorção que Darwin nunca endossou. Francis Galton, primo de Darwin, foi ainda mais longe: criou a eugenia, transformando observações sobre hereditariedade em uma pseudociência do "aperfeiçoamento racial".
A fórmula universal da manipulação
A análise de dezenas de casos históricos revela que existe um padrão preciso na forma como a extrema direita sequestra teorias científicas e filosóficas. Nossa investigação identificou cinco passos que se repetem sistematicamente:
1. Descontextualização: Conceitos são removidos de seu contexto original e aplicados a realidades diferentes. Darwin estudava adaptação de organismos ao ambiente; Spencer aplicou isso à competição social humana.
2. Simplificação: Teorias complexas são reduzidas a slogans manipuláveis. Décadas de pesquisa sobre evolução viraram o slogan "sobrevivência do mais forte".
3. Inversão: Ideias originalmente progressistas são invertidas para sustentar projetos reacionários. A teoria que provava unidade humana virou justificativa para hierarquias raciais.
4. Pseudocientificidade: Distorções ganham verniz "científico" para conquistar legitimidade. Institutos com nomes pomposos publicam "estudos" que validam preconceitos preexistentes.
5. Bode Expiatório: Sempre há um grupo minoritário para culpar. No darwinismo social, os "menos aptos" – pobres, negros, pessoas com deficiência – eram responsabilizados por problemas sociais sistêmicos.
Do laboratório ao campo de extermínio
A investigação rastreou como essa fórmula de manipulação se espalhou globalmente com consequências devastadoras. Em 1907, o estado americano de Indiana aprovou a primeira lei de esterilização compulsória moderna, permitindo que pessoas consideradas "deficientes mentais" fossem esterilizadas contra sua vontade. A justificativa oficial citava "aplicação das leis naturais de Darwin às sociedades humanas".
Em duas décadas, essa ideia contaminou todo o mundo "civilizado". Mais de 65.000 pessoas foram esterilizadas à força nos Estados Unidos até 1970. A pesquisadora Alexandra Stern descobriu que uma latina internada na Califórnia tinha 59% mais chances de ser esterilizada que uma mulher branca – não por critérios científicos, mas por preconceito racial sistemático.
No Brasil, a eugenia encontrou terreno fértil através do médico Renato Kehl, que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo em 1918. Kehl criou a Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923, promovendo exames pré-nupciais obrigatórios e políticas de "branqueamento" populacional. Durante o governo Vargas, a Constituição de 1934 incluiu dispositivos eugênicos restringindo imigração de grupos considerados "indesejáveis".
Mas foi na Alemanha nazista que a manipulação darwiniana atingiu seu ápice genocida. Adolf Hitler elogiava publicamente as leis eugênicas americanas e californianas como modelos a seguir. Em julho de 1933, os nazistas promulgaram a "Lei para Prevenção de Doenças Hereditárias", permitindo esterilização forçada de pessoas com esquizofrenia, deficiência mental, epilepsia e outras condições.
Documentos do Arquivo Federal alemão revelam que tribunais especiais processavam casos de esterilização com eficiência industrial. Até 1945, estima-se que 400.000 pessoas foram esterilizadas à força; 6.000 morreram por complicações cirúrgicas. Pior: esses mesmos médicos, técnicas e justificativas "científicas" seriam depois aplicados ao programa Aktion T4, que assassinou 275.000 pessoas com deficiência, servindo de ensaio para o Holocausto.
Nietzsche: De anti-antissemita a ícone nazista
A fórmula de manipulação não se limitou a Darwin. Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, exemplifica como qualquer pensador pode ser pervertido posthumamente. Nietzsche desprezava o antissemitismo e o nacionalismo alemão – chegou a se recusar a comparecer ao casamento da própria irmã em protesto contra as ideias antissemitas do cunhado.
Mas após sua morte em 1900, sua irmã Elisabeth Förster-Nietzsche assumiu controle do espólio intelectual do filósofo. Elisabeth era uma antissemita convicta, casada com um líder do movimento antissemita alemão. Ela sistematicamente suprimiu passagens onde Nietzsche criticava o antissemitismo, reorganizou fragmentos fora de contexto, e fabricou conexões inexistentes, criando obras como "A Vontade de Poder" que Nietzsche jamais escreveu.
O resultado foi transformar um filósofo cosmopolita em patrono intelectual do nazismo. Quando Hitler chegou ao poder, fez questão de visitar Elisabeth posando para fotos ao lado do busto de Nietzsche. Soldados alemães levavam "Assim Falou Zaratustra" para as trincheiras, convencidos de aplicar filosofia nietzschiana.
"Marxismo Cultural": A teoria conspiratória antissemita moderna
Talvez o caso mais perturbador de manipulação contemporânea seja a criação da teoria do "marxismo cultural". Em 1992, o ativista William Lind alegou que intelectuais judeus da Escola de Frankfurt desenvolveram um plano secreto para destruir a civilização ocidental através da "guerra cultural".
A teoria é reciclagem quase literal da propaganda nazista dos anos 1930 sobre "bolchevismo cultural" judaico. Lind apenas removeu linguagem explicitamente antissemita, substituindo por termos aparentemente neutros como "intelectuais de esquerda". Mas a estrutura conspiratória permanece idêntica: judeus intelectuais supostamente conspirando contra cristãos ocidentais.
As consequências foram mortíferas. Em 22 de julho de 2011, o terrorista norueguês Anders Breivik matou 77 pessoas após enviar um manifesto de 1.500 páginas citando extensivamente a teoria do "marxismo cultural". Para Breivik, não era terrorismo – era defesa da civilização contra conspiração marxista judaica.
A teoria se espalhou globalmente: Jordan Peterson a promove no Canadá, Viktor Orbán a usa na Hungria, chegou ao Brasil através de Olavo de Carvalho. Durante o governo Bolsonaro, ministros como Ricardo Vélez Rodríguez e Ernesto Araújo citavam publicamente o "marxismo cultural" como ameaça nacional.
Julius Evola: O guru secreto da nova direita
Nossa investigação identificou outro personagem crucial na fundamentação intelectual da extrema direita contemporânea: Julius Evola (1898-1974). Intelectual italiano que colaborou com as SS nazistas, Evola criou o que chamava de "tradicionalismo" – síntese entre esoterismo, crítica antimoderna e ação política radical.
Após a guerra, Evola desenvolveu teoria do "suprafascismo": superação dialética do fascismo histórico que mantinha princípios fundamentais adaptados à sociedade contemporânea. Era forma de permitir que movimentos neofascistas reivindicassem legitimidade sem assumir herança nazista direta.
Hoje, ideias de Evola influenciam Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), Aleksandr Dugin (ideólogo do putinismo), Alain de Benoist (Nova Direita europeia). No Brasil, foram filtradas através de Olavo de Carvalho, chegando a círculos próximos ao governo Bolsonaro. Bannon mencionou Evola publicamente numa conferência no Vaticano, descrevendo-o como influência do "movimento tradicionalista" moderno.
A Era Digital: Manipulação em velocidade Industrial
A internet transformou essa máquina de manipulação numa arma de destruição em massa. Antigamente, distorcer legado de um pensador exigia controle de editoras, universidades, meios de comunicação. Era processo lento, custoso, que demorava décadas. Hoje, uma distorção pode ser criada numa manhã e compartilhada por milhões antes do almoço.
Algoritmos do YouTube levam usuários que começam assistindo vídeos sobre Darwin para canais supremacistas brancos em questão de horas. Busca sobre Nietzsche inevitavelmente recomenda conteúdo da alt-right. Pesquisa sobre Escola de Frankfurt leva a vídeos sobre "marxismo cultural".
Influenciadores sem formação acadêmica fazem vídeos de duas horas "explicando" Darwin ou Nietzsche para milhões de seguidores, perpetuando distorções históricas. Plataformas como Telegram, Discord, TikTok viraram laboratórios para novas formas de manipulação intelectual. Memes transformam teorias complexas em piadas simplistas.
A resistência possível
Combater essa manipulação sistemática exige mais que fact-checking pontual. Demanda educação que desenvolva pensamento crítico sobre fontes, contextos, interesses por trás das informações. Como observou Theodor Adorno:
"A exigência de que Auschwitz não se repita deve ser a primeira de todas para a educação."
Acadêmicos e jornalistas têm responsabilidade especial de contextualizar teorias científicas adequadamente, evitando simplificações que facilitam apropriações extremistas. A mídia mainstream foi criticada por normalizar teorias como "marxismo cultural" sem esclarecer sua natureza conspiratória antissemita.
A apropriação de Darwin pela extrema direita revela verdade perturbadora: não foram monstros óbvios que implementaram políticas genocidas, mas médicos respeitáveis, professores universitários, intelectuais bem-intencionados que genuinamente acreditavam servir ao progresso científico. Tinham diplomas prestigiosos, citavam pesquisas "sérias", usavam terminologia sofisticada. Mas perpetravam atrocidades históricas.
A distorção de teorias científicas pela extrema direita não é fenômeno do passado – é estratégia contemporânea adaptada à era digital. Darwin vira darwinismo social, Nietzsche vira nazismo, Escola de Frankfurt vira "marxismo cultural", Martin Luther King vira conservador. Sempre a mesma fórmula: descontextualizar, simplificar, inverter, pseudocientificar, criar bodes expiatórios.
Quando o conhecimento é sistematicamente pervertido em serviço do ódio, não perdemos apenas teorias científicas – perdemos a capacidade de distinguir verdade de falsidade, conhecimento de propaganda, educação de manipulação. E essa pode ser a maior ameaça que nossa democracia já enfrentou: não apenas manipulação da informação, mas manipulação sistemática do próprio conhecimento que deveria nos proteger dessa manipulação.
A luta contra a distorção intelectual não é apenas acadêmica – é batalha pela preservação da possibilidade de uma sociedade baseada na razão, evidência e dignidade humana universal. Porque quando teorias científicas são transformadas em armas ideológicas, o resultado não é evolução, mas extinção da própria capacidade de conhecer.
Metodologia da Investigação
Esta reportagem baseou-se em análise de documentos históricos de arquivos nacionais e internacionais, entrevistas com 15 especialistas em história da ciência, filosofia e movimentos de extrema direita, revisão de literatura acadêmica sobre eugenia e darwinismo social, análise de propaganda histórica nazista e contemporânea, monitoramento de plataformas digitais onde ocorre disseminação de teorias conspiratórias, e cruzamento de dados sobre legislação eugênica em diferentes países.
Fontes consultadas incluem: BBC Brasil, Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, arquivos da Fundação Oswaldo Cruz, Museu do Holocausto dos Estados Unidos, Archive.org, além de pesquisadores da USP, Unicamp, UFRJ, Fiocruz e instituições internacionais especializadas em história das ciências e movimentos extremistas.










