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A origem e o uso político do termo “marxismo cultural” e sua relação com a Escola de Frankfurt e Antonio Gramsci


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Uma das teorias conspiratórias mais influentes da contemporaneidade tem suas raízes fincadas na propaganda nazista dos anos 1930. O chamado “marxismo cultural” – expressão que ganhou força no discurso político brasileiro contemporâneo – não apenas carece de fundamentação acadêmica rigorosa, como representa uma sofisticada operação de ressignificação ideológica que merece análise crítica detalhada.


Das cinzas do Terceiro Reich ao ressurgimento americano


A genealogia do termo “marxismo cultural” revela uma trajetória sombria que se inicia com o conceito de Kulturbolschewismus (Bolchevismo Cultural), cunhado pela máquina propagandística nazista durante a República de Weimar. Este termo serviu como arma retórica para deslegitimar manifestações artísticas e intelectuais que desafiavam os valores conservadores alemães, particularmente aquelas associadas a judeus, comunistas e demais grupos considerados “degenerados” pelo regime.


A famosa exposição “Arte Degenerada” (Entartete Kunst), inaugurada em Munique em julho de 1937, exemplifica magistralmente como essa construção ideológica operava na prática. Mais de 650 obras de arte moderna foram deliberadamente expostas de forma humilhante – quadros tortos, empilhados, alguns de ponta-cabeça, acompanhados de cartazes alarmistas sobre os perigos que representavam para a “alma alemã”. O público, estimado em mais de dois milhões de visitantes ao longo dos anos seguintes, era convidado a testemunhar o que o governo apresentava como evidência tangível da degeneração cultural promovida por forças anti-alemãs.


O jornalista Carl von Ossietzky, que posteriormente morreria em um campo de concentração, captou com ironia amarga a elasticidade conceitual do termo:


“Bolchevismo cultural é quando o maestro Klemperer toca em ritmos diferentes do seu colega Furtwängler; quando um pintor adiciona uma cor ao seu pôr do sol que não se vê na Pomerânia; quando se favorece o controle de natalidade; quando se constrói uma casa com telhado plano”.

Qualquer manifestação cultural que desafiasse convenções estabelecidas podia ser rotulada como “bolchevismo cultural”.


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A ironia histórica mais cruel reside no fato de que os teóricos posteriormente acusados de orquestrar uma conspiração mundial foram, precisamente, vítimas dessa mesma propaganda. Quando Hitler consolidou o poder em 1933, os intelectuais da Escola de Frankfurt – Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin – não permaneceram para testemunhar os desdobramentos. Literalmente empacotaram suas vidas e atravessaram o Atlântico, estabelecendo-se como refugiados na Universidade Columbia, em Nova York.


Após décadas de relativo ostracismo acadêmico, o termo ressurgiu em 1992 através de um artigo peculiar: “The New Dark Age: The Frankfurt School and Political Correctness”, de autoria de Michael Minnicino. Este texto, publicado na revista Fidelio, órgão do movimento político marginal liderado por Lyndon LaRouche, apresentou ao público americano uma narrativa delirante segundo a qual a Escola de Frankfurt teria abandonado a revolução econômica tradicional do marxismo para se dedicar à destruição sistemática da civilização ocidental através da cultura.


Minnicino não era um acadêmico respeitado nem um intelectual de renome. Integrava um círculo conspiratório liderado por LaRouche, ex-trotskista convertido em guru de extrema-direita, conhecido por suas obsessões com supostas conspirações judaicas mundiais. Não obstante, o artigo encontrou terreno fértil na América dos anos 1990, sendo refinado e popularizado por conservadores como Paul Weyrich e William S. Lind.


Weyrich, fundador de organizações influentes como a Heritage Foundation, possuía conexões profundas com a direita cristã americana. Lind, teórico militar que flertava com ideias conspiratórias, contribuiu para criar uma versão mais “palatável” da teoria, substituindo o antissemitismo explícito por ataques aos “globalistas” e “cosmopolitas” – termos que, para conhecedores da história, funcionam como códigos antissemitas bem estabelecidos.


A verdadeira Escola de Frankfurt: Desmontando as distorções


Uma análise rigorosa das obras centrais da Escola de Frankfurt revela o abismo que separa a produção intelectual real desses pensadores das caricaturas construídas pelos teóricos conspiratórios. O Instituto para Pesquisa Social, fundado em Frankfurt em 1923, emergiu não como uma célula revolucionária secreta, mas como um centro acadêmico legítimo financiado, ironicamente, pelo filho de um rico comerciante de cereais que desejava promover pesquisas marxistas independentes de pressões partidárias.


Theodor Adorno, nascido em 1903 numa família de classe média alemã, era um homem de cultura refinada: virtuose do piano, compositor, crítico musical. Sua preocupação central não era conspirar contra a civilização ocidental, mas compreender como a própria cultura européia que ele amava profundamente estava sendo destruída pelo fascismo. Junto com Max Horkheimer, produziu “Dialética do Esclarecimento”, uma das obras mais importantes do século XX, que argumentava que a racionalidade instrumental – a lógica de meios e fins dominante no capitalismo moderno – tendia a transformar seres humanos em coisas.


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O conceito adorniano de “indústria cultural” constitui talvez o exemplo mais flagrante de distorção perpetrada pelos conspiracionistas. Adorno desenvolveu essa noção para criticar como a produção cultural de massa estava sendo organizada segundo princípios industriais, resultando numa padronização que anestesiava a capacidade crítica das pessoas. Onde ele diagnosticava o capitalismo produzindo conformismo através da cultura, os teóricos conspiratórios enxergam uma conspiração marxista utilizando a cultura para subverter o capitalismo. A inversão é tão completa que chega a ser ontologicamente perturbadora.


Walter Benjamin, figura mais trágica dessa narrativa, dedicou-se a compreender como as novas tecnologias – fotografia, cinema – transformavam nossa relação com arte e cultura. Seu ensaio seminal “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” não pregava destruição artística, mas investigava como a arte poderia manter sua força crítica num mundo dominado pela reprodução técnica. Benjamin falava da perda da “aura” da obra de arte, mas também vislumbrava possibilidades emancipatórias nas novas tecnologias: o cinema poderia democratizar o acesso cultural e criar novas formas de consciência crítica.


A vida de Benjamin terminou tragicamente em 1940, quando se suicidou na fronteira franco-espanhola, fugindo dos nazistas. Morreu como refugiado, perseguido pelos mesmos fascistas cujos métodos seus detratores contemporâneos, de certa forma, ecoam através da construção de inimigos internos.


Herbert Marcuse, talvez o mais famoso dos frankfurtianos após se tornar referência para movimentos estudantis dos anos 1960, escreveu “O Homem Unidimensional” – uma análise devastadora de como sociedades industriais avançadas conseguiam integrar e neutralizar toda oposição através do consumo. Para Marcuse, o problema das sociedades capitalistas avançadas não era a pobreza material, mas a pobreza espiritual: as pessoas tinham acesso a bens de consumo, mas perdiam a capacidade de desejar algo diferente.


Antonio Gramsci: Do cárcere ao espantalho conspiratório


Se a distorção da Escola de Frankfurt representa uma operação ideológica sofisticada, a transformação de Antonio Gramsci em arquiteto de uma conspiração mundial constitui talvez o exemplo mais perverso de manipulação intelectual. O teórico italiano, nascido em 1891 numa família pobre da Sardenha, possuía deformidade na coluna que o deixava corcunda, mas demonstrava brilhantismo intelectual extraordinário.


Gramsci tornou-se jornalista e depois um dos fundadores do Partido Comunista Italiano. Em 1926, foi preso pelo regime fascista de Mussolini, com o promotor declarando explicitamente: “Devemos impedir que este cérebro funcione por vinte anos.” Passou onze anos na prisão, a maior parte doente, sofrendo de tuberculose, arteriosclerose e hipertensão. Foi nessas condições terríveis que produziu os “Cadernos do Cárcere” – mais de 3.000 páginas de reflexões sobre política, cultura, história e filosofia.


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Os “Cadernos” foram escritos em linguagem cifrada, pois Gramsci sabia que estavam sendo censurados. Não podia escrever diretamente sobre revolução ou marxismo, então desenvolvia conceitos através de análises históricas, reflexões literárias e comentários folclóricos. Representa uma obra de densidade e complexidade extraordinárias, que demandou décadas de trabalho acadêmico para ser completamente compreendida.


O conceito gramsciano de “hegemonia” – central para sua obra e sistematicamente distorcido pelos conspiracionistas – emerge da observação que o poder nas sociedades modernas não se mantém apenas através da força, mas também através do consenso. Classes dominantes conseguem apresentar seus interesses particulares como interesse geral da sociedade. Quando empresários alegam que “o que é bom para as empresas é bom para todos”, exercem hegemonia. Quando a mídia apresenta individualismo competitivo como única forma natural de organização social, reproduz hegemonia.


Para Gramsci, compreender hegemonia era fundamental para projetos de transformação social. Não bastava tomar o poder estatal; era necessário conquistar hegemonia cultural, criar novo “senso comum”. Mas – e isso é crucial – Gramsci não propunha manipulação das massas. Sugeria que grupos subalternos desenvolvessem sua própria capacidade de produzir cultura, sua própria visão de mundo.


A diferença entre análise acadêmica e teoria conspiratória torna-se cristalina quando contrastamos o Gramsci real com sua versão distorcida. O Gramsci histórico era um prisioneiro político produzindo reflexões teóricas numa cela, tentando compreender como sociedades funcionam. O “Gramsci” conspiratório é apresentado como estrategista maquiavélico criando planos secretos para dominação mundial. O primeiro analisava hegemonia como fenômeno exercido por todas as classes – incluindo dominantes que já a exercem com sucesso. O segundo é apresentado como inventor da manipulação cultural, como se anteriormente ninguém tivesse utilizado cultura para exercer poder.


A tropicalização brasileira: Olavo de Carvalho e a nacionalização da conspiração


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A chegada do “marxismo cultural” ao Brasil representa um caso exemplar de como teorias conspiratórias se adaptam a contextos culturais específicos. Olavo de Carvalho, nascido em 1947 numa família de classe média baixa em Campinas, possuía trajetória intelectual errática: autodidata brilhante que transitou por astrologia, filosofia islâmica, René Guénon e Louis Claude de Saint-Martin. Nos anos 1990, descobriu os textos de Lind e Minnicino, transformando essa descoberta num projeto intelectual que mudaria a política brasileira.


Olavo não se contentou em reproduzir teorias americanas. Criou uma versão tropicalizada que colocava Antonio Gramsci no centro absoluto da narrativa, conectando diretamente a teoria à ascensão do Partido dos Trabalhadores. Na versão olavista, o PT não era simplesmente um partido de esquerda, mas o instrumento brasileiro da revolução gramsciana mundial. Debates políticos concretos foram transformados em batalhas cósmicas entre bem e mal.


A genialidade retórica de Olavo residia na capacidade de oferecer aos seguidores senso de missão épica. Não eram meramente eleitores insatisfeitos, mas guerreiros numa batalha pela alma do Brasil. O site “Mídia sem Máscaras”, lançado em 2002, tornou-se epicentro da nova direita brasileira na internet, oferecendo narrativa que dava sentido às frustrações de pessoas politicamente órfãs.


O timing revelou-se perfeito. Os primeiros anos do governo Lula coincidiram com profundas transformações sociais: políticas afirmativas, programas sociais, mudanças curriculares. Para segmentos da classe média conservadora, isso criava sensação de que o país mudava de formas que não controlavam nem compreendiam. A teoria do “marxismo cultural” oferecia explicação reconfortante: não era evolução social, mas conspiração.


A institucionalização dessa narrativa ocorreu através do movimento Escola sem Partido, criado em 2004 por Miguel Nagib. O procurador paulista conseguiu transformar teoria conspiratória em projeto de lei concreto, focando numa ansiedade genuinamente percebida por muitos pais: a sensação de que filhos estavam sendo “doutrinados” por professores esquerdistas.


O momento decisivo chegou em 2014, quando Nagib encontrou-se com a família Bolsonaro. A partir dessa conexão, projetos baseados no modelo do Escola sem Partido proliferaram em câmaras municipais e assembleias legislativas por todo o país. A teoria conspiratória havia encontrado sua máquina política.


A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 marcou a transformação definitiva de uma teoria conspiratória marginal em doutrina oficial de governo. Ricardo Vélez Rodríguez, primeiro ministro da Educação, deixou isso explícito: “Combateremos o marxismo cultural, hoje presente em instituições de educação básica e superior. Trata-se de uma ideologia materialista alheia aos nossos mais caros valores.” Abraham Weintraub foi ainda mais direto, sugerindo que conservadores adotassem os métodos olavistas: “Quando um comunista chegar para você com o papo, xinga.”


Ernesto Araújo, chanceler do período, escreveu sobre sua missão de “libertar o Itamaraty” do “marxismo cultural”, demonstrando como a teoria havia se tornado narrativa oficial sobre a realidade brasileira e mundial. Os efeitos foram devastadores: professores perseguidos, universidades atacadas, artistas demonizados. O próprio conceito de pensamento crítico foi deslegitimado.


A anatomia de uma mentira persistente


Esta investigação revela um fenômeno intelectualmente fascinante e politicamente perigoso: como uma construção retórica nazista conseguiu se reinventar e prosperar em contextos democráticos contemporâneos. O “marxismo cultural” funciona como sistema perfeito de auto-validação conspiratória – qualquer crítica à teoria torna-se automaticamente prova de sua veracidade.


A análise detalhada das obras originais da Escola de Frankfurt e Antonio Gramsci demonstra não apenas a falsidade das acusações conspiratórias, mas revela a inversão ontológica operada pelos propagandistas: transformaram vítimas do fascismo em precursores do “fascismo cultural”, críticos do capitalismo em agentes do capitalismo financeiro global, defensores da emancipação humana em conspiradores totalitários.


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Mais que desmontar uma teoria conspiratória específica, este estudo ilumina mecanismos pelos quais o medo e a desinformação operam na política contemporânea. Em tempos de crescente polarização e erosão da confiança em instituições democráticas, compreender a genealogia e o funcionamento de teorias como o “marxismo cultural” torna-se imperativo não apenas acadêmico, mas cívico.


A verdadeira herança da Escola de Frankfurt e de Gramsci não reside em supostos planos para dominação cultural, mas num convite permanente ao pensamento autônomo, à crítica informada, à recusa de aceitar explicações simplistas para problemas complexos. Paradoxalmente, é exatamente isso que as teorias conspiratórias procuram minar: nossa capacidade de pensar criticamente sobre o mundo que habitamos.


Fontes

[1] Uma vida por trás da teoria Histórico-Cultural https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8673785

[2] Psicologia histórico-cultural e Teoria da Aprendizagem Desenvolvimental: contribuições do grupo de Kharkiv https://seer.ufu.br/index.php/emrevista/article/view/74812

[3] Teoria desenvolvimental, teoria histórico-cultural e materialismo histórico dialético: intersecções e desafios https://ojs.revistacontribuciones.com/ojs/index.php/clcs/article/view/13973

[4] Gestão sanitária da COVID-19 e o conspiracionismo do “marxismo cultural” https://jmphc.com.br/jmphc/article/view/1324

[5] DA DITADURA MILITAR À REDEMOCRATIZAÇÃO: CAMINHOS DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL NA PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO BRASILEIRAS (ANOS 1970 A 1990) https://periodicos.uniarp.edu.br/index.php/professare/article/view/3074

[6] Articulações de demandas educativas (im)possibilitadas pelo antagonismo ao “marxismo cultural” https://epaa.asu.edu/index.php/epaa/article/view/4881

[7] Os usos da teoria de Pierre Bourdieu para estudar corpo e saúde no campo acadêmico-científico da educação física https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevEducFis/article/view/72149

[8] Prototipagem de máquinas térmicas a vapor utilizando materiais de baixo custo: um relato de experiência STEAM no estágio de docência do doutorado à luz da Teoria Histórico-Cultural https://ojs.cuadernoseducacion.com/ojs/index.php/ced/article/view/5579

[9] Conspiracionismo do “marxismo cultural” enquanto processo fascistizador no capitalismo contemporâneo e suas repercussões na saúde https://jmphc.emnuvens.com.br/jmphc/article/view/1416

[10] Subversivos em toda parte: como funciona uma teoria da conspiração http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742024000100402&tlng=pt

[11] ANÁLISES E EMBATES MARXISTAS DA/NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO https://portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/download/23639/14907

[12] RAYMOND WILLIAMS E A CULTURA COMO PROBLEMA ORDINÁRIO https://www.scielo.br/j/sant/a/3p89JHssWb4FQKY3qHmCzLf/?format=pdf&lang=pt

[13] As formas invisíveis do visível: fetichismo e fantasmagoria em Marx e Benjamin https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/download/67956/751375156628

[15] REFLEXÕES SOBRE MARXISMO E PERSPECTIVA TEÓRICO-METODOLÓGICA PARA A PESQUISA EM POLÍTICAS EDUCACIONAIS. https://portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/download/16439/13090

[16] Dependência e marxismo: história, teoria e práxis revolucionária https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/download/49178/26682

[17] BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E A “PÓS- MODERNIDADE DE CONTESTAÇÃO”: Algumas notações marxistas http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/aurora/article/download/1265/1125

[20] CONTRIBUIÇÕES MARXISTAS PARA TEORIA DA HISTÓRIA: A RELAÇÃO ENTRE ESTRUTURA E HISTÓRIA. https://portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/download/14170/14882

[21] [PDF] A teoria da conspiração que dominou o Brasil - IE/UFRJ https://www.ie.ufrj.br/images/IE/IEnaMidia/08/%C3%89poca%2001-08%20Eduardo%20Costa%20Pinto.pdf

[22] Direita radical sequestrou as pautas do trabalho e do desejo, diz ... https://www.bbc.com/portuguese/articles/c20njj712y0o

[23] [PDF] O PENSAMENTO CRÍTICO DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A ... http://repositorio.unifap.br/bitstream/123456789/244/4/TCCE_PensamentoCriticoEscola.pdf

[24] [PDF] Cultura, ideologia e hegemonia: Antonio Gramsci e o campo de ... https://revistas.usp.br/incid/article/download/148808/153394/350388

[25] [PDF] O Flerte entre Literatura e política: uma dissociação (im)possível https://publicacoes.unigranrio.edu.br/reihm/article/download/1435/932

[26] O feitiço da extrema direita - Outras Palavras https://outraspalavras.net/blog/o-feitico-da-extrema-direita/

[29] CRÍTICA E CRISE: TEORIA DA LITERATURA E HISTÓRIA ... - SciELO https://www.scielo.br/j/rblc/a/XrDWDj3HXYDXhjzLSnsXcvf/

[31] O que é o 'plano de Kalergi', a teoria da conspiração que partidos ... https://www.bbc.com/portuguese/geral-46017467

[32] [PDF] ANÁLISE À LUZ DA TEORIA CRÍTICA FRANKFURTIANA - TEDE https://tede2.pucgoias.edu.br/bitstream/tede/4711/2/Nelma%20Roberto%20Gon%C3%A7alves%20Mendes.pdf

[33] Gramsci e a política cultural: Estado, cultura e hegemonia https://www.niepmarx.com.br/index.php/MM/article/view/543

[34] [PDF] CRÍTICA LITERÁRIA E RESISTÊNCIA AO AUTORITARISMO ... https://www.seer.ufrgs.br/brasilbrazil/article/viewFile/117393/63930

[35] [PDF] a reificação da crítica da Escola de Frankfurt e dos Estudos Culturais https://sistemas.intercom.org.br/pdf/submissao/nacional/17/06282024234245667f74a56bfb5.pdf

[37] [PDF] O PENSAMENTO CRÍTICO DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A ... https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/9989120.pdf

[38] Hegemonia cultural – Wikipédia, a enciclopédia livre https://pt.wikipedia.org/wiki/Hegemonia_cultural

[39] Teoria e prática da crítica literária dialética - Portal de Livros da UnB https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/133

[40] [PDF] ofensiva burguesa em tempos de golpe: o “marxismo cultural” na https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/10090151.pdf

 
 
 
  • Foto do escritor: Raul Silva
    Raul Silva
  • 19 de jul.
  • 7 min de leitura

Um mergulho crítico na Pedagogia do Oprimido e na construção da imagem do “inimigo número um da educação” pela extrema-direita brasileira


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No cenário político brasileiro contemporâneo, poucos nomes concentram tanta controvérsia quanto o de Paulo Freire. Elevado ao posto de Patrono da Educação Brasileira em 2012, sua obra é reconhecida internacionalmente, traduzida em mais de 30 idiomas, discutida em universidades de referência e aplicada em projetos pedagógicos de transformação social em países como Moçambique, Nicarágua, Finlândia e África do Sul. Contudo, no Brasil — o mesmo país que lhe concedeu reconhecimento oficial —, Freire é frequentemente reduzido a um símbolo caricatural de doutrinação ideológica. 


A origem de uma pedagogia para libertar


Paulo Freire nasceu no Recife em 1921, num Brasil marcado pela desigualdade estrutural e pela exclusão sistemática das classes populares do processo educativo formal. A experiência direta com a fome, o analfabetismo e a marginalização social moldou sua visão de mundo e sua ética pedagógica. Desde cedo, compreendeu que o acesso à palavra escrita e à leitura crítica era também acesso ao mundo — e, por consequência, às possibilidades de transformação social. Seu trabalho nos anos 1950 e 60 com alfabetização de adultos, especialmente no Nordeste brasileiro, levou à criação de uma pedagogia fundamentada no diálogo, na escuta ativa e na transformação da realidade a partir da consciência crítica. Essa pedagogia não era uma mera técnica de ensino, mas uma filosofia política comprometida com a dignidade humana.


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Sua principal obra, Pedagogia do Oprimido (1968), escrita durante o exílio após o golpe militar de 1964, propõe uma educação centrada na conscientização — um processo dialético em que o indivíduo deixa de ser objeto e passa a ser sujeito da história. A crítica à “educação bancária”, que trata o aluno como um recipiente passivo a ser preenchido por um conteúdo unilateral, é substituída por uma pedagogia do diálogo, em que professor e estudante se reconhecem mutuamente como inacabados, em constante processo de construção e reconstrução do saber. O objetivo não é “ensinar conteúdos”, mas criar condições para que o educando possa ler o mundo, compreendê-lo e agir sobre ele.


Freire propõe uma revolução epistemológica na relação entre educador e educando, abandonando o modelo vertical e hierarquizado de ensino para propor um processo horizontal, fundado na escuta e na problematização do cotidiano. A pedagogia freireana, portanto, não é um método fechado, mas um gesto político e epistêmico. Trata-se de pensar a educação como prática da liberdade, como intervenção no mundo — e não como adaptação resignada a ele. Isso implica romper com estruturas autoritárias, patriarcais, coloniais e elitistas. Implica, também, reconhecer que toda educação carrega em si um projeto de mundo, e que a pretensa neutralidade, nesse contexto, é apenas o nome dado à adesão silenciosa à ordem vigente.


A construção do espantalho: do educador ao “doutrinador”


É nesse ponto que a figura de Freire se torna profundamente incômoda para determinados setores políticos e econômicos. Uma pedagogia que forma sujeitos críticos, capazes de problematizar a realidade social, é incompatível com modelos autoritários que se sustentam na obediência, na repetição e na despolitização do conhecimento. Ao contrário da falsa premissa de que Freire defendia a doutrinação, sua proposta é justamente antitética à imposição de ideias: ela parte do diálogo com a realidade vivida pelo educando, da leitura do mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Como afirmou em diversas entrevistas, “doutrinar é exatamente o oposto do que proponho”.


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Contudo, a partir dos anos 2000, especialmente com a ascensão de grupos como o movimento Escola Sem Partido, a figura de Paulo Freire passou a ser ressignificada por setores conservadores como símbolo máximo de uma suposta infiltração ideológica nas escolas. Essa narrativa ganhou contornos mais explícitos com a ascensão de Olavo de Carvalho como ideólogo da nova direita brasileira. Misturando teorias conspiratórias sobre “marxismo cultural”, revisionismo histórico e anticomunismo difuso, Olavo resgatou interpretações distorcidas da pedagogia freireana para sustentar a tese de que o sistema educacional brasileiro estaria sendo dominado por uma agenda gramsciana disfarçada de projeto pedagógico.


Freire, então, deixou de ser lido e passou a ser instrumentalizado como inimigo interno. Tornou-se um emblema a ser combatido nos discursos de campanha, nas falas ministeriais e nas redes sociais, sobretudo durante e após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A promessa de “expurgar Paulo Freire das escolas” foi um dos motes centrais da plataforma de governo bolsonarista, sustentada por vídeos virais, memes descontextualizados, frases apócrifas e uma mobilização coordenada de fake news em grupos de WhatsApp e canais de YouTube ligados à extrema-direita.


O mais grave, no entanto, é que essa construção não se deu por engano ou ignorância, mas por conveniência política. O chamado “espantalho freireano” foi erguido como parte de um projeto ideológico que visa substituir a escola crítica por uma escola conformista, esvaziada de pensamento e servil às pautas morais e econômicas da nova direita brasileira — pautas que incluem o revisionismo da ditadura militar, o negacionismo científico, a cruzada contra a discussão de gênero, o ataque ao movimento negro e a defesa de um nacionalismo cristão autoritário. O ataque a Freire é, portanto, apenas a face mais visível de um projeto mais amplo de apagamento da educação como ferramenta de emancipação social.


O que está em jogo: a pedagogia do silêncio


A guerra contra Paulo Freire, portanto, não é uma mera disputa de ideias sobre métodos pedagógicos. Ela é sintoma de algo maior: a recusa ao pensamento crítico como princípio educativo. A ofensiva contra a pedagogia freireana é, na verdade, uma ofensiva contra qualquer forma de educação que se proponha a formar cidadãos e não apenas trabalhadores dóceis. Quando se combate Freire, combate-se o direito de o aluno perguntar, de o professor propor caminhos fora do currículo engessado, de a escola ser um espaço de leitura do mundo — e não apenas de reprodução de conteúdos.


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E aqui reside o núcleo do problema. O que incomoda não é Freire em si, mas o que ele representa: a possibilidade de uma escola pública que emancipa, que forma sujeitos capazes de pensar contra os consensos impostos. Uma escola que, ao invés de formar para o mercado, forma para a vida em sociedade. Que questiona os privilégios, que desafia os dogmas, que não se curva ao poder — seja ele político, religioso ou econômico. Nesse sentido, Freire se torna não um doutrinador, mas um libertador — e exatamente por isso se torna perigoso para os que querem manter tudo como está.


A tentativa de apagar Freire é também a tentativa de apagar um horizonte possível de educação democrática. Uma educação que não se define apenas por resultados em exames internacionais ou por índices de produtividade, mas pela capacidade de formar sujeitos éticos, sensíveis, críticos e comprometidos com a transformação do mundo. Uma educação que reconhece que ensinar não é domesticar, mas libertar. Que compreende que toda prática pedagógica é, em última instância, um ato político — e que negar essa dimensão é entregar a formação das novas gerações às forças que lucram com a ignorância e o conformismo.


a permanência de uma pedagogia insubmissa


Diante do cenário atual, é urgente recuperar Paulo Freire não como fetiche ou mito, mas como pensador radicalmente comprometido com a justiça, a dignidade e a transformação social. Ler Freire hoje é um ato de resistência, não contra um governo ou partido específico, mas contra um projeto de sociedade que privilegia a apatia política, a desinformação e a indiferença diante das desigualdades. Sua pedagogia continua viva em cada sala de aula onde o diálogo é valorizado, onde o conhecimento é construído coletivamente, onde a escuta ativa é tão importante quanto a transmissão de conteúdo. Freire sobrevive onde há professores que recusam o papel de meros reprodutores de currículo e se afirmam como agentes históricos, capazes de intervir, transformar e humanizar a experiência educativa.


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No Brasil — um país marcado por uma desigualdade educacional histórica, onde 33 milhões de pessoas voltaram à insegurança alimentar, em que a evasão escolar cresce principalmente nas periferias urbanas e zonas rurais, onde professores são submetidos a censura institucional, violência simbólica e ameaças físicas e morais —, seguir Paulo Freire é, paradoxalmente, resistir à acusação de doutrinação. É insistir na radicalidade da esperança, como ele próprio definia. É defender que a educação pode e deve ser libertadora. Uma educação que, como ele escreveu, é “ato de amor, e por isso, ato de coragem”. E também um ato de justiça social, porque se recusa a naturalizar as estruturas de opressão que silenciam vozes, restringem horizontes e destroem o futuro de gerações inteiras.


Freire não propõe uma utopia ingênua. Ele oferece um projeto ético e político de formação que reconhece o ser humano como sujeito de direitos, de história e de cultura. Em tempos de ataques à liberdade de cátedra, ao pluralismo de ideias e à escola pública, seu pensamento se torna ainda mais necessário. Não se trata de erigir um altar ao patrono da educação brasileira, mas de resgatar a atualidade e a potência transformadora de seu legado. Ele continua sendo um guia para aqueles que acreditam que ensinar é um gesto de compromisso com a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática.


A resposta à pergunta que dá título a este artigo, portanto, não é ambígua nem relativizável. Freire não foi — e nunca será — doutrinador. Freire é, por essência, libertador. E é exatamente por isso que ele continua sendo temido por aqueles que se alimentam da ignorância como projeto de poder. Porque uma sociedade que pensa é uma sociedade que resiste. Uma sociedade que lê o mundo é uma sociedade que não aceita calar-se diante da injustiça. E uma educação que liberta é, sempre, o primeiro passo para o fim de qualquer tirania. Defender Paulo Freire hoje é defender o direito de sonhar com um país onde o conhecimento não seja mercadoria, mas um bem comum. Onde educar não seja apenas preparar para o trabalho, mas formar para a cidadania, para a convivência e para a emancipação coletiva.


Referências: Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, 1968); Dermeval Saviani (Escola e Democracia, 1983); Miguel Arroyo (Ofício de Mestre, 2000); entrevista de Freire à Folha de S. Paulo (1987); Dicionário Paulo Freire (org. Walter Kohan); DW Brasil (2021); Intercept Brasil (2019); documentos do Escola Sem Partido; estudos de Daniel Cara, Gaudêncio Frigotto, Nita Freire, Henry Giroux, Noam Chomsky, e outros.


 
 
 
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