- Raul Silva

- 22 de ago.
- 10 min de leitura
Atualizado: 27 de ago.
Como uma das intelectuais mais respeitadas do mundo se tornou espantalho da extrema-direita global?

Uma investigação sobre a trajetória real de Angela Yvonne Davis e as distorções sistemáticas que transformaram uma professora universitária em símbolo de ameaça política.
Em outubro de 2022, quando Angela Davis conversou com Mano Brown no programa "Mano a Mano", milhões de brasileiros tiveram acesso pela primeira vez à voz real de uma das figuras mais distorcidas do debate político contemporâneo. Aos 78 anos, a filósofa apareceu articulada, reflexiva, profundamente humana - muito distante da "terrorista comunista" que grupos conservadores insistem em apresentar ao público brasileiro.
A entrevista, que alcançou mais de 2 milhões de visualizações apenas no Spotify, revelou uma contradição fundamental: enquanto Angela Davis se consolidava como uma das intelectuais mais respeitadas globalmente - com mais de 330 mil cópias de seus livros vendidos no Brasil pela editora Boitempo -, a extrema-direita brasileira intensificava o uso de sua figura como espantalho político durante e após o governo Bolsonaro.
Esta investigação busca responder uma pergunta central: quem é a Angela Davis real, e como sua trajetória intelectual foi sistematicamente distorcida para servir a interesses políticos que nada têm a ver com sua obra?
De Dynamite Hill aos corredores de Frankfurt
Para entender as distorções contemporâneas sobre Angela Davis, é fundamental retornar às suas origens. Nascida em 26 de janeiro de 1944, em Birmingham, Alabama, Angela Yvonne Davis cresceu no bairro ironicamente denominado "Dynamite Hill" - assim chamado porque a Ku Klux Klan bombardeava regularmente as residências de famílias negras que ousavam se mudar para aquela área.
Entre 1947 e 1965, mais de cinquenta casas foram bombardeadas na região. Angela testemunhou, aos seis anos, um homem branco cuspir no rosto de sua mãe, a professora Sallye Davis, que teve que engolir a humilhação porque qualquer reação poderia custar a vida da família. Essa experiência visceral de violência racializada moldaria para sempre sua compreensão sobre as articulações entre poder, raça e classe.
Contrariamente às narrativas que a retratam como produto da "doutrinação comunista", a formação política de Davis emergiu diretamente da realidade material de sua comunidade. Sua família fazia parte da pequena classe média negra de Birmingham - seu pai, B. Frank Davis, era dono de um posto de gasolina, e sua mãe era professora e membra ativa da NAACP. A casa dos Davis funcionava como ponto de encontro para ativistas e intelectuais negros que discutiam estratégias de resistência ao regime segregacionista.
Aos 15 anos, Davis organizou um grupo de estudos sobre questões raciais com colegas do ensino médio. O grupo foi descoberto pela polícia local e imediatamente proibido, numa demonstração precoce de como o aparato repressivo estatal criminalizava até mesmo a busca por conhecimento quando protagonizada por jovens negros.
A Escola de Frankfurt e a construção de um Marxismo Não-Ortodoxo
Em 1961, através de um programa de bolsas para jovens negros talentosos, Davis ingressou na Universidade Brandeis, em Massachusetts. Foi lá que conheceu Herbert Marcuse, refugiado alemão e um dos últimos representantes vivos da lendária Escola de Frankfurt.
O encontro foi transformador. Marcuse, impressionado com a inteligência de Davis, criou um tutorial independente especificamente para ela e, posteriormente, escreveu uma carta de recomendação para Theodor Adorno, sugerindo que ela estudasse diretamente na Universidade de Frankfurt.

Entre 1965 e 1967, Davis estudou com Adorno, Jürgen Habermas, Alfred Schmidt e Oscar Negt, mergulhando nas três críticas de Kant, na dialética hegeliana e na economia política marxista. Seu projeto de dissertação, "Towards a Kantian Theory of Force", explorava as contradições entre reivindicações morais universais e determinantes sócio-históricos que impedem sua realização material.
Durante esse período, emergiu uma tensão intelectual que marcaria permanentemente seu pensamento. Adorno defendia que teóricos críticos deveriam aprofundar-se na teoria antes de qualquer engajamento prático, comparando ativistas dos anos 1960 a "técnicos de rádio tentando fazer teoria da mídia". Marcuse, por outro lado, via nos movimentos de libertação o potencial transformador que a teoria crítica havia sempre prometido.
Davis desenvolveu uma síntese original dessa tensão, criando o que se pode chamar de "marxismo interseccional" - muito antes do termo interseccionalidade ser cunhado. Para ela, "classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida."
Esta perspectiva representava uma contribuição revolucionária ao pensamento marxista, superando tanto o reducionismo economicista quanto análises que hierarquizam opressões. Davis demonstrava como "a escravidão e a servidão articularam-se de modo singular com o capitalismo nas mais distintas formações sociais", revelando que o capitalismo nunca foi puramente econômico, mas sempre imbricado com hierarquias raciais e patriarcais.
Panteras Negras: Além das caricaturas midiáticas
Quando Davis retornou aos Estados Unidos em 1967, o país estava literalmente em chamas. Durante os dois anos que estivera na Alemanha, cidades queimavam com revoltas urbanas, universidades eram ocupadas por estudantes radicalizados, e líderes como Malcolm X e Martin Luther King Jr. foram assassinados.

Nesse contexto, Davis se aproximou simultaneamente do Partido Comunista Americano (CPUSA) e do Partido dos Panteras Negras. Essa dupla filiação revela a complexidade de seu pensamento político, que não se encaixava em categorias ideológicas simplistas.
Os Panteras Negras, fundados em 1966 por Huey Newton e Bobby Seale, foram sistematicamente distorcidos pela mídia conservadora. Contrariamente às caracterizações como "organização terrorista", os Panteras tinham um programa político estruturado - o "Programa de Dez Pontos" - que incluía demandas por habitação decente, educação que revelasse a verdadeira história afro-americana, fim da brutalidade policial e libertação de presos políticos negros.
Crucialmente, os Panteras não pregavam violência indiscriminada, mas defendiam o direito à autodefesa armada contra violência policial sistemática. A diferença é fundamental: eles respondiam à violência, não a iniciavam. Além disso, desenvolveram programas comunitários impressionantes, incluindo café da manhã gratuito para crianças (depois adotado pelo governo federal), clínicas de saúde gratuitas e programas de educação política.
A relação de Davis com os Panteras foi sempre "permanentemente ambígua", alternando entre "filiada e companheira de luta", como ela própria descreveu. Participava especialmente do programa de educação política, mas mantinha distância crítica das disputas internas, eventualmente se afastando da organização em 1969 devido a "desacordos ideológicos" - particularmente sobre questões de gênero e diferenças entre nacionalismo negro e análise de classes.
O Caso Soledad: Da solidariedade à criminalização
Foi o afastamento dos Panteras que levou Davis ao trabalho que mudaria sua vida: a campanha pelos "Irmãos Soledad" - George Jackson, Fleeta Drumgo e John Clutchette, presos acusados de assassinar um guarda na Penitenciária de Soledad.
George Jackson havia se tornado uma figura intelectual fascinante. Preso aos 18 anos por roubar 70 dólares - crime que normalmente resultaria em poucos meses de prisão -, recebera sentença indeterminada de "um ano à vida" por comportamento "hostil". Onze anos depois, continuava encarcerado, tendo se transformado em autodidata impressionante que lia Fanon, Marx e Mao, desenvolvendo análise sofisticada sobre prisão como instrumento de controle racial.

Davis estabeleceu correspondência intensa com Jackson, discutindo teoria revolucionária e estratégias de libertação. Era o diálogo intelectual que raramente encontrava - alguém que combinava experiência concreta de opressão com rigor teórico.
Em 7 de agosto de 1970, Jonathan Jackson, irmão mais novo de George, de apenas 17 anos, invadiu o Tribunal do Condado de Marin armado, numa tentativa desesperada de libertar os "Irmãos Soledad" fazendo reféns. No tiroteio que se seguiu, Jonathan Jackson, dois presos e o juiz Harold Haley foram mortos.
Duas das armas usadas por Jonathan estavam registradas em nome de Davis, que as havia comprado legalmente alguns meses antes para proteção pessoal - compreensível, considerando as ameaças de morte constantes que recebia. Em 14 de agosto de 1970, foi emitido mandado de prisão contra ela por assassinato em primeiro grau, sequestro e conspiração.
O detalhe crucial que conservadores sempre omitem: Davis não estava presente durante a tentativa de fuga. As acusações baseavam-se exclusivamente na propriedade das armas e na suposição de conspiração. Era um caso juridicamente frágil, mas politicamente conveniente para criminalizar uma das intelectuais negras mais articuladas do país.
"Free Angela Davis": Solidariedade internacional e absolvição
Compreendendo que não teria julgamento justo, Davis optou pela clandestinidade. Durante dois meses, foi a mulher mais procurada dos Estados Unidos, com recompensa de cem mil dólares por sua captura. O presidente Nixon a chamou publicamente de "terrorista" antes de qualquer julgamento - um linchamento midiático em escala nacional.
Mas emergiu uma das campanhas de solidariedade internacional mais impressionantes da história. "Free Angela Davis" se tornou grito de guerra global. John Lennon e Yoko Ono gravaram "Angela", que chegou ao top 10 americano. Rolling Stones dedicaram "Sweet Black Angel" a ela. James Baldwin, Jean-Paul Sartre, e intelectuais mundialmente respeitados mobilizaram apoio. Na União Soviética, um navio foi batizado com seu nome.

Capturada em outubro de 1970, Davis passou 18 meses na prisão. O isolamento forçado, longe de quebrá-la psicologicamente, proporcionou reflexão profunda sobre o sistema prisional como instrumento de controle social racializado. Foi nessa experiência que nasceu sua posterior análise do complexo industrial-prisional como continuação da escravidão.
O julgamento, iniciado em fevereiro de 1972, durou quatro meses com cobertura internacional diária. Em 4 de junho de 1972, o júri - majoritariamente branco - a declarou inocente de todas as acusações. A absolvição foi recebida com celebrações globais.
A intelectual: Contribuições acadêmicas ignoradas
A Davis que emergiu da prisão em 1972 era uma pessoa transformada. A experiência carcerária havia radicalizado sua compreensão sobre justiça social e definido sua verdadeira missão intelectual: analisar criticamente o sistema prisional americano.
Sua obra "Women, Race & Class" (1981) tornou-se contribuição seminal ao feminismo crítico. Davis desenvolve análise histórica demonstrando como o feminismo branco frequentemente excluiu mulheres negras, revelando que "'mulher' era o critério, mas nem toda mulher parecia estar qualificada". A obra expõe contradições do movimento sufragista, que "privilegiaria apenas mulheres brancas das classes média e alta".

Mais tarde, "Are Prisons Obsolete?" (2003) questionou fundamentalmente: "o aprisionamento é a única maneira de tratar crimes e disfunções sociais?" Seu abolicionismo prisional não se limita à crítica das prisões, mas propõe "democracia da abolição" que exige transformações sociais estruturais.
Como professora na UC Santa Cruz por décadas, Davis desenvolveu perspectiva única articulando história da escravidão, análise do capitalismo racial e crítica do complexo industrial-prisional. Suas contribuições influenciam hoje políticas públicas em vários países e fundamentam estudos criminológicos críticos globalmente.
A recepção brasileira: Respeito Mútuo vs. Distorção Política
A chegada das ideias de Davis ao Brasil contradiz narrativas sobre "imperialismo intelectual americano". Desde sua primeira visita em 1997, ela demonstra respeito profundo pelo feminismo negro brasileiro, reconhecendo intelectuais como Lélia Gonzalez como pioneiras em análises que só desenvolveria posteriormente.
Em 2017, Davis declarou explicitamente: "Os Estados Unidos têm muito a aprender com o feminismo negro brasileiro". Ela citou Carolina Maria de Jesus, destacou a importância do candomblé na preservação de tradições feministas negras, elogiou a organização de empregadas domésticas baianas como exemplo de luta sindical criativa.

Os números revelam recepção extraordinária: 330 mil cópias vendidas pela Boitempo, transformação de "Mulheres, raça e classe" em leitura obrigatória em centenas de universidades, crescimento exponencial de estudos sobre interseccionalidade influenciados por sua obra.
Estudos bibliométricos mostram "aumento contínuo de textos sobre feminismo negro e interseccionalidade a partir dos anos 2010", sugerindo que "maior acesso de estudantes negros ao ensino superior e ampliação do debate público sobre interseccionalidade" geram retroalimentação sobre interesse acadêmico no tema.
A estratégia do Espantalho: Manual de desinformação
Paralelamente à recepção acadêmica respeitosa, setores conservadores brasileiros desenvolveram estratégia sofisticada de desinformação sobre Davis, especialmente intensificada durante o governo Bolsonaro.
A estratégia segue padrões identificados em estudos sobre fake news: "circulação de narrativas dúbias e/ou híbridas, produzidas com junção de fatos verídicos e falsos que resultam em narrativas imprecisas, descontextualizadas e manipuladas".
Primeira técnica: descontextualização histórica. Eventos dos anos 1970 são transplantados para 2024 como ameaças atuais. É como se participante da resistência francesa contra nazismo fosse apresentado hoje como "terrorista perigoso".
Segunda técnica: associação por proximidade. Qualquer movimento social que se inspire em suas ideias é classificado como "terrorista", dispensando análise de práticas concretas.
Terceira técnica: omissão seletiva. Ignoram-se contribuições acadêmicas, produção intelectual respeitada mundialmente, trabalho como professora universitária por décadas.
Quarta técnica: anacronismo ideológico. Usam-se medos da Guerra Fria para assustar pessoas numa época com problemas completamente diferentes.
Durante a visita de Davis ao Brasil em 2019, Bolsonaro comentou sua presença como ameaça à segurança nacional. Deputados bolsonaristas fizeram pronunciamentos sobre "infiltração comunista internacional". Sites conservadores produziram centenas de conteúdos alertando sobre "verdadeiros objetivos" de palestras acadêmicas absolutamente convencionais.
Por que Angela Davis incomoda tanto?
A análise das distorções revela que o problema não são posições políticas específicas de Davis - muito mais nuanceadas do que fazem crer -, mas o que ela representa simbolicamente: possibilidade de mulher negra ser intelectualmente sofisticada, politicamente articulada e moralmente corajosa.

Davis desafia estereótipos raciais e de gênero fundamentais para manutenção de hierarquias sociais tradicionais. Demonstra que pessoas historicamente marginalizadas podem produzir conhecimento de alta qualidade, influenciar debates acadêmicos internacionais, ser respeitadas por competência intelectual independentemente de origem social.
Isso é profundamente ameaçador para setores que dependem da manutenção dessas hierarquias para preservar privilégios. Se uma mulher negra que cresceu sob segregação racial pode se tornar uma das intelectuais mais respeitadas mundialmente, hierarquias raciais e de gênero não são naturais ou inevitáveis - são construções sociais questionáveis e transformáveis.
A obra de Davis mantém relevância particular para movimentos sociais contemporâneos. Como observa Patricia Hill Collins, participantes do movimento Black Lives Matter "tiveram acesso à teoria racial crítica assim como ao feminismo negro que tem sido central para desenvolvimento da interseccionalidade".
No Brasil, onde a população carcerária é a terceira maior mundial, suas contribuições sobre complexo industrial-prisional são especialmente relevantes para debater alternativas à punição como resposta à violência social.
Davis tem sido crítica consistente da ascensão de extrema-direita globalmente. Durante visitas ao Brasil, apontou "semelhanças entre governos de Bolsonaro e Trump", observando que Bolsonaro "parece se identificar com ditaduras militares".
Descolonizando o pensamento crítico
Esta investigação revela que Angela Davis representa síntese original entre marxismo dialético, teoria crítica da Escola de Frankfurt, feminismo negro e abolicionismo prisional. Sua trajetória desafia categorizações simplistas e oferece ferramentas analíticas sofisticadas para compreender articulações complexas entre capitalismo, racismo e patriarcado.
A utilização de sua figura como espantalho reflete estratégias de desinformação que buscam deslegitimar análises críticas sobre estruturas de poder. Essas distorções são particularmente perniciosas porque obscurecem contribuições teóricas relevantes para enfrentar desafios como violência policial, encarceramento em massa e múltiplas formas de opressão.
A crescente recepção acadêmica de Davis no Brasil, evidenciada pelo aumento de publicações sobre feminismo negro e interseccionalidade, demonstra vitalidade de suas contribuições para compreensão crítica da realidade brasileira. Seu diálogo respeitoso com intelectuais brasileiras como Lélia Gonzalez exemplifica abordagem decolonial ao conhecimento que reconhece produção teórica do Sul Global.

A obra de Davis oferece não apenas análises críticas de estruturas de dominação, mas horizontes utópicos para sociedades mais justas. Seu conceito de "democracia da abolição" aponta possibilidades transformadoras que transcendem limitações de sistemas punitivos atuais.
Compreender adequadamente suas contribuições - para além de caricaturas promovidas por detratores - é fundamental para fortalecer movimentos emancipatórios contemporâneos e construir alternativas aos autoritarismos que ameaçam democracias globalmente.
A trajetória de Davis demonstra que é possível articular rigor teórico e compromisso político, contribuindo simultaneamente para produção de conhecimento crítico e transformação social. Seu legado continua inspirando gerações que buscam compreender e transformar realidades de opressão persistentes nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Desmistificar distorções sobre sua obra é tarefa fundamental para todos comprometidos com justiça social e emancipação humana. Porque, em última instância, conhecimento sério continua sendo a melhor arma contra manipulação política - e Angela Davis continua sendo um dos exemplos mais poderosos de como essa arma pode ser usada para transformar o mundo.










