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No palco do Mundo: a ofensiva diplomática de Lula na ONU em defesa da Soberania Nacional e de uma nova Ordem Global

  • Foto do escritor: Raul Silva
    Raul Silva
  • 23 de set.
  • 9 min de leitura

Por Raul Silva, para O estopim | 23 de setembro de 2025


NOVA YORK | Em uma das falas mais contundentes de um líder brasileiro no palco da Organização das Nações Unidas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu a 80ª Assembleia Geral nesta terça-feira (23) com um discurso que desafiou a ordem global, denunciou o que classificou como "genocídio" em Gaza e estabeleceu um ultimato moral para as nações ricas na questão climática. A fala de Lula reposiciona o Brasil como uma voz ativa e crítica do Sul Global, disposta a confrontar hegemonias e exigir uma reforma profunda nas estruturas de poder que regem o planeta.


Presidente Luís Inácio Lula da SIlva discursa na 80ª Assembleia Geral da ONU e NY - Foto: Ricardo Stuckert/PR
Presidente Luís Inácio Lula da SIlva discursa na 80ª Assembleia Geral da ONU e NY - Foto: Ricardo Stuckert/PR

Em um mundo fraturado por um número recorde de conflitos e crescentes rivalidades geopolíticas, a 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas foi inaugurada em Nova York sob o tema irônico "Melhor juntos: 80 anos e mais pela paz, desenvolvimento e direitos humanos". Foi nesse cenário de profunda desordem global que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu ao púlpito hoje (23).


Cumprindo a tradição diplomática que desde 1955 concede ao Brasil a primeira palavra, seu discurso não foi uma formalidade protocolar, mas uma calculada e contundente ofensiva diplomática. Proferido em um momento de tensão histórica nas relações com os Estados Unidos e com o presidente norte-americano Donald Trump programado para falar em seguida, o pronunciamento de Lula foi um desafio direto à ordem unipolar, um manifesto pela reforma da governança global e uma tentativa de consolidar o Brasil como a voz principal de um Sul Global insatisfeito. 


A importância do momento era tamanha que o texto final da fala permaneceu em aberto até o último instante, ajustado para calibrar a resposta a uma nova rodada de sanções americanas anunciadas na véspera, transformando o discurso em um ato de resistência diplomática em tempo real.   


Confira nossa análise em áudio tópico a tópico do discurso de Lula

Audio cover
Lula na ONU | Enfrentando Trump, Gaza e o Desafio ClimáticoO estopim

"Nossa Soberania é Inegociável": o desafio direto a Washington


O cerne do discurso de Lula foi uma defesa robusta e inequívoca da soberania nacional, articulada como uma resposta direta ao que seu governo considera uma interferência ilegítima da administração Trump nos assuntos internos do Brasil.


O contexto imediato é explosivo. Nessa segunda-feira (22), Washington aplicou novas sanções sob a Lei Magnitsky contra a esposa do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e um instituto ligado à sua família, agravando uma crise que já incluía a imposição de tarifas de 50% sobre diversos produtos brasileiros. A justificativa explícita do governo americano para essas medidas era a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, um aliado de Trump, por tentativa de golpe de Estado e outros crimes.   


Do púlpito da ONU, Lula rebateu sem citar nomes, mas com alvos claros. Ele lamentou que os ideais fundadores da organização estivessem:


"ameaçados como nunca estiveram em toda a sua história", denunciando que "Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais, estão se tornando regra"

A mensagem foi cristalizada em uma frase que ecoou como o principal recado a Washington e seus aliados domésticos:    


"Nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis".   

Essa defesa da soberania, no entanto, transcendeu a mera retórica diplomática, funcionando como um sofisticado instrumento político. Primeiramente, serviu como um chamado à união para outras nações do Sul Global que se sentem pressionadas por ações unilaterais de superpotências, posicionando o Brasil como um defensor de seus interesses coletivos. Em segundo lugar, a estratégia visou o cenário doméstico, ao enquadrar a oposição bolsonarista como alinhada a interesses estrangeiros. Ao afirmar que:


"Essa ingerência em assuntos internos conta com o auxílio de uma extrema-direita subserviente e saudosa de antigas hegemonias" 

Lula vinculou seu adversário externo, Trump, ao seu principal adversário interno, o bolsonarismo, taxando-os de "falsos patriotas" que agem contra o Brasil. Por fim, ao defender o direito do Judiciário brasileiro de julgar e condenar Bolsonaro, Lula reforçou a legitimidade das instituições que garantiram sua própria eleição e que são fundamentais para a estabilidade de seu governo. Assim, uma reação a um ataque externo foi transformada em uma ofensiva política multifacetada.   


A tabela abaixo detalha os principais pontos de atrito que definem o abismo ideológico e político entre as administrações Lula e Trump em 2025, contextualizando a profundidade do confronto diplomático que marcou a abertura da Assembleia Geral.


Pontos de Contenção entre as Administrações Lula e Trump (2025)

Área Temática

Posição de Lula / Brasil (Conforme Discurso e Contexto)

Ação da Administração Trump / Posição dos EUA

Comércio e Tarifas

Condena o unilateralismo e o protecionismo; defende a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Impõe tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, utilizando-as como ferramenta de pressão política.

Soberania e Justiça

Defende a independência do Judiciário brasileiro e classifica as sanções como "ingerência indevida".

Sanciona autoridades judiciais brasileiras em retaliação ao julgamento e condenação de Jair Bolsonaro.

Mudança Climática

Lidera a agenda do Acordo de Paris, sediando a COP30 e cobrando financiamento dos países ricos.

Retirou os EUA do Acordo de Paris e bloqueia mecanismos de financiamento climático.

Governança Global

Exige a reforma do Conselho de Segurança da ONU e critica o poder de veto como uma "tirania".

Bloqueia resoluções no Conselho de Segurança e prioriza acordos bilaterais em detrimento do multilateralismo.

Questão Palestina

Reconhece o Estado da Palestina, denuncia a situação em Gaza como "genocídio" e defende a solução de dois Estados.

Rejeita o reconhecimento do Estado palestino e mantém um forte alinhamento com as políticas de Israel.

   


O clamor pela Palestina e a "Tirania do Veto"


A questão palestina foi o pilar sobre o qual Lula construiu sua crítica mais ampla à estrutura de poder global. Sua retórica, que já vinha se endurecendo há meses, atingiu um clímax de contundência no palco da ONU. Na conferência sobre a Palestina, realizada um dia antes, ele já havia definido o tom ao afirmar que    


"O que está acontecendo em Gaza não é só o extermínio do povo palestino, mas uma tentativa de aniquilamento de seu sonho de nação"

Ele usou repetidamente o termo "genocídio", uma palavra de enorme peso legal e moral, para descrever as ações de Israel.   


No discurso principal, ele aprofundou a análise, argumentando que o conflito havia se degenerado:


"O que começou como um ato terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes se tornou uma punição coletiva para todo o povo palestino". 

Lula detalhou o custo humano da guerra, condenando a violência indiscriminada:    


"Nada justifica tirar a vida ou mutilar mais de 50 mil crianças, destruir 90% dos lares palestinos e usar a fome como arma de guerra".   

Crucialmente, essa denúncia foi inseparável de uma crítica feroz à paralisia das Nações Unidas. Para Lula, o conflito:


"mostra como a tirania do veto sabota a própria razão de ser da ONU".

Uma acusação direta aos Estados Unidos por bloquearem sucessivas resoluções do Conselho de Segurança que pediam um cessar-fogo. Essa postura verbal é respaldada por ações concretas do governo brasileiro, como o apoio ao caso da África do Sul na Corte Internacional de Justiça, o estudo sobre o rompimento de laços militares com Israel e o esforço diplomático para que mais nações reconheçam o Estado da Palestina.   


A escolha da causa palestina como tema central não foi acidental. Ela representa o ponto nevrálgico da política externa de Lula, funcionando como a principal peça de acusação em seu julgamento da ordem mundial vigente. A reforma do Conselho de Segurança é um objetivo de longa data da diplomacia brasileira, mas apelos abstratos por maior representatividade se mostraram ineficazes. Ao selecionar o conflito mais polarizador e moralmente carregado da atualidade — onde o veto americano impediu repetidamente a ação do Conselho, apesar do clamor da maioria global — Lula encontrou o exemplo perfeito para expor o que considera a falência moral e funcional do sistema. Ao classificar a situação como "genocídio" e conectá-la diretamente à "tirania do veto", ele eleva o debate de uma discussão sobre arquitetura institucional para um imperativo moral. A Palestina, em sua narrativa, torna-se a prova irrefutável de que o sistema está quebrado e precisa ser radicalmente reformado, servindo como a alavanca estratégica para mobilizar o Sul Global em torno de sua agenda de uma nova governança.   


A Amazônia como Mandato e Missão: a Diplomacia Climática do Brasil às vésperas da COP30


No campo da diplomacia climática, o discurso de Lula apresentou uma dupla faceta. Por um lado, posicionou o Brasil de forma assertiva como um líder global indispensável, aproveitando o prestígio de sediar a COP30 em Belém e a riqueza de seus recursos naturais. Por outro, essa postura ambiciosa é assombrada por desafios ambientais domésticos que ameaçam sua credibilidade.


Lula apresentou o Brasil como um "celeiro de oportunidades" na transição energética, destacando que "90% da nossa eletricidade provêm de fontes renováveis". Ele enquadrou a COP30 como um momento decisivo, onde    


"o multilateralismo é o único caminho para superar a urgência climática". Para sustentar essa liderança, apontou para resultados concretos, afirmando que o governo reduziu o desmatamento na Amazônia em 50% no último ano, com a meta de zerá-lo até 2030.   


Redesenhando a arquitetura global: Desigualdade, Fome e Fronteiras Digitais


Lula dedicou uma parte significativa de seu discurso para atualizar sua tradicional crítica ao neoliberalismo, conectando as lutas históricas contra a fome e a desigualdade com as novas batalhas pela soberania digital e pela governança da Inteligência Artificial (IA). Ele apresentou esses temas como frentes interligadas de um mesmo combate contra um sistema global que perpetua a concentração de riqueza e poder.


Recorrendo a dados alarmantes, que ecoam relatórios como os da Oxfam, Lula pintou um quadro sombrio da desigualdade global:


"A fortuna dos cinco maiores bilionários do mundo mais do que dobrou desde o início desta década, enquanto 60% da humanidade ficou mais pobre". 

Ele ressaltou que a fome no mundo aumentou, atingindo mais 152 milhões de pessoas desde 2019. No Brasil, esse cenário se reflete em números igualmente extremos, com 1% da população detendo 63% da riqueza do país.   


O presidente então estendeu essa análise para a nova fronteira tecnológica, alertando para a formação de um "oligopólio do saber" na IA, com uma:"concentração sem precedentes nas mãos de um pequeno número de pessoas e empresas, sediadas em um número ainda menor de países"). Em resposta, ele defendeu a soberania digital como um pilar da soberania nacional, afirmando que os Estados devem ter:    


"o direito de legislar, julgar disputas e aplicar regras dentro de seu território, incluindo o ambiente digital". 

Essa declaração é uma clara alusão às disputas em curso no Brasil com plataformas digitais como o X (antigo Twitter) sobre moderação de conteúdo e responsabilidade legal.   


Ao conectar esses pontos, Lula articula uma ideologia coerente que pode ser descrita como um "nacionalismo progressista". Essa doutrina funde os objetivos progressistas de redução da desigualdade e defesa dos direitos humanos com o imperativo nacionalista de fortalecer a soberania do Estado diante do capital e da tecnologia globalizados.


É a sua proposta de terceira via, uma alternativa tanto ao "nacionalismo de falsos patriotas" da extrema-direita, que ele considera subserviente, quanto às "experiências ultraliberais" que, em sua visão, aprofundam a pobreza. Ao defender um Estado ativo que regula mercados e defende a soberania em todas as frentes, da Amazônia ao ciberespaço, Lula oferece um projeto político que busca ressignificar o nacionalismo para um propósito de esquerda e desenvolvimentista no século XXI.   


As altas apostas do retorno do Brasil


O discurso do presidente Lula na Assembleia Geral da ONU de 2025 foi mais do que um pronunciamento; foi uma declaração de intenções e uma aposta de alto risco. Ao posicionar o Brasil como um líder confrontador de um Sul Global cada vez mais insatisfeito, ele busca não apenas restaurar o prestígio diplomático do país, mas fundamentalmente redesenhar a ordem global e assegurar um legado. A visão é ambiciosa: um mundo multipolar onde o Brasil, à frente de coalizões como o BRICS+ e em parceria estratégica com potências como a China, atua como um dos polos de poder, e não como um ator secundário na esfera de influência ocidental.   


No entanto, essa ousada política externa se desenrola sobre um cenário doméstico complexo e instável. A governabilidade no Brasil depende de um Congresso fragmentado e de alianças pragmáticas, a economia enfrenta incertezas e a sociedade permanece profundamente polarizada, com o "bolsonarismo" se mantendo como uma força política relevante e antagônica. A força de Lula no exterior está intrinsecamente ligada à sua capacidade de manter a estabilidade e o progresso em casa.   


Os riscos dessa estratégia são consideráveis. A postura de confronto pode alienar nações ocidentais poderosas, especialmente os Estados Unidos, expondo o Brasil a retaliações econômicas e diplomáticas ainda mais severas. O sucesso do projeto depende da coesão de um Sul Global heterogêneo e, crucialmente, da capacidade do Brasil de cumprir suas promessas, sobretudo na agenda climática, onde a credibilidade é medida por dados de satélite, não por discursos.   


Em última análise, a fala de Lula na ONU foi um testemunho de sua ambição de devolver o Brasil ao centro do tabuleiro mundial. Foi um manifesto declarando que o país não aceitará o papel de parceiro júnior em uma ordem que considera injusta, mas lutará para ser um arquiteto de uma nova estrutura, mais equitativa e multipolar. Resta saber se essa visão audaciosa é um roteiro viável para o futuro ou uma aposta que excede a capacidade política e econômica do Brasil, arriscando deixá-lo vulnerável no fogo cruzado das potências globais.

 
 
 

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