Ministro do Turismo cede a ultimato do partido, que rompeu com o Planalto, mas presidente pede que permaneça no cargo por mais alguns dias. Saída expõe fragilidade da articulação política e abre nova frente de negociação por espaço no primeiro escalão.
Por Redação d'O estopim | 26 de setembro de 2025
Brasília – Em um dos capítulos mais tensos e reveladores da complexa relação entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional, o ministro do Turismo, Celso Sabino, entregou oficialmente sua carta de demissão ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva na tarde desta sexta-feira. A decisão, embora amplamente esperada nos bastidores políticos ao longo da semana, culmina um período de alta pressão e formaliza o desembarque do União Brasil da base aliada. Este movimento não apenas gera uma crise de consequências ainda imensuráveis para a governabilidade, mas também acende um sinal de alerta sobre a coesão da coalizão que sustenta o governo.
Confira nossa análise em áudio
Ultimato do União Brasil e a saída de Celso Sabino do turismoO estopim
Celso Sabino (União Brasil - PA) - Foto: Portal da Câmara dos Deputados
A saída de Sabino não foi uma escolha voluntária, mas sim o resultado inevitável de um ultimato imposto pela executiva nacional do União Brasil, uma das siglas mais influentes do Centrão. Na semana passada, o partido, que recentemente formou uma federação com o Progressistas (PP), aprovou uma resolução taxativa que obrigava todos os seus filiados a deixarem cargos no governo federal em um prazo exíguo. A medida é a mais clara sinalização de que o partido abandona a postura de aliado para se posicionar como uma força independente, e potencialmente de oposição, com o claro objetivo de construir um projeto de poder autônomo para as eleições de 2026.
O ultimato e a resistência
Celso Sabino resistiu enquanto foi politicamente viável. Com projetos importantes sob sua gestão, a organização da COP30, a conferência climática da ONU que será realizada em Belém (PA), seu estado natal, era a joia da coroa. Para Sabino, permanecer à frente do ministério durante um evento de projeção global era uma plataforma estratégica para sua carreira política, alimentando seus planos de uma possível candidatura ao Senado.
Diante da pressão, ele se engajou em intensas negociações nos últimos dias, tentando costurar um acordo com a cúpula do partido, liderada pelo presidente Antonio Rueda, para obter uma "licença partidária". Esse arranjo, se bem-sucedido, lhe permitiria continuar no governo sem ser formalmente um representante do União Brasil, um drible na resolução partidária.
A negociação, contudo, encontrou um muro. A liderança do partido, determinada a marcar sua posição de independência, mostrou-se irredutível, comunicando que a decisão de romper com o governo era soberana e inegociável.
A pressão foi amplificada por declarações públicas de Rueda, que, em uma tentativa de personalizar a questão sem parecer quebrar laços pessoais, afirmou que "ama Celso Sabino, mas o partido tem regras". A mensagem era clara: a lealdade partidária deveria prevalecer sobre os projetos individuais e a aliança com o governo.
A carta e o pedido estratégico de Lula
Ao sair da reunião no Palácio do Planalto, Sabino confirmou à imprensa que havia acatado a determinação de seu partido.
"Entreguei hoje ao presidente Lula a minha carta, colocando o cargo à disposição, cumprindo a orientação do União Brasil", declarou o ministro em um tom que mesclava resignação e um apelo por moderação.
A entrega do documento simbolizou o fim de uma era de colaboração entre a sigla e o governo petista. Contudo, a demissão não será imediata. Em um movimento político calculado, o presidente Lula pediu que Sabino o acompanhasse em uma agenda oficial na próxima semana, adiando a exoneração formal.
"O presidente pediu que eu o acompanhasse nessa missão na próxima quinta-feira e assim nós vamos estar. Vou como ministro ainda", afirmou Sabino.
Essa sobrevida, ainda que curta, serve a múltiplos propósitos: dá ao governo tempo para negociar a sucessão no ministério, sinaliza aos demais partidos da base que a transição será ordenada e, principalmente, deixa uma porta entreaberta para o diálogo com a ala menos radical do União Brasil.
"Eu acredito no diálogo, eu acredito que os homens públicos devem querer o que é melhor para o país", completou Sabino, ecoando a estratégia do Planalto.
Repercussões e o futuro incerto da esplanada
A saída de Celso Sabino é um golpe duro e de efeito prático imediato para a articulação política do governo. A federação União-PP representa a maior bancada da Câmara dos Deputados, com mais de 100 parlamentares, e seu desembarque oficial para a oposição encarece significativamente o custo de aprovação de pautas de interesse do Executivo, como reformas econômicas e projetos orçamentários. A crise expõe a dificuldade crônica do governo em manter uma base de apoio sólida e heterogênea, dependente de partidos com agendas próprias e muitas vezes conflitantes.
A partir de agora, a Esplanada dos Ministérios se torna, mais uma vez, um disputado tabuleiro de xadrez. A vaga no Ministério do Turismo é cobiçada por outros partidos do Centrão que permanecem na base, como o PSD e o MDB, que já iniciaram movimentações para intensificar a pressão por mais espaço. Para o Planalto, a escolha do substituto será delicada e estratégica: precisará ser um nome que não apenas demonstre capacidade técnica, mas que, crucialmente, traga consigo o apoio de uma bancada expressiva e fiel no Congresso.
A situação do ministro dos Esportes, André Fufuca, filiado ao PP, também se torna insustentável. Com a mesma resolução da federação se aplicando a ele, sua permanência no cargo é vista nos corredores do poder como improvável, o que pode levar a uma nova e iminente baixa no primeiro escalão de Lula. O cenário que se desenha é de profunda incerteza e de intensas negociações nos próximos dias, com o governo correndo contra o tempo para reorganizar suas alianças, conter a sangria e garantir a estabilidade mínima necessária para governar e avançar sua agenda.
Como uma organização criminosa liderada por Jair Bolsonaro tentou quebrar a democracia brasileira e agora enfrenta a Justiça no julgamento histórico que começou nesta terça-feira no STF
A trama Golpista
Por Redação d'O estopim - 2 de setembro de 2025
Às 9h desta terça-feira, 2 de setembro de 2025, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal inicia o que pode ser considerado o julgamento mais importante para a democracia brasileira desde o fim da ditadura militar. No banco dos réus, oito pessoas, incluindo o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, respondem por uma das mais sofisticadas tentativas de golpe de Estado já documentadas na história republicana do país.
A investigação da Polícia Federal, condensada em mais de 3.000 páginas de relatórios, e a denúncia da Procuradoria-Geral da República revelam uma trama que começou muito antes das eleições de 2022 e culminou na invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 - um plano minuciosamente arquitetado para manter Bolsonaro no poder a qualquer custo, inclusive com a eliminação física de autoridades e candidatos eleitos.
As Origens: Quando a Democracia Entrou na Mira
A trama Golpista
A história começa em 29 de julho de 2021, quase um ano e três meses antes das eleições presidenciais. Naquele dia, durante uma transmissão ao vivo no Palácio da Alvorada, Jair Bolsonaro iniciou o que os investigadores chamariam posteriormente de "execução prática" de um plano para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro.
Cronologia da Trama Golpista no Brasil (2021-2023)
"As eleições de 2022, se não tivermos o voto impresso, uma forma de auditar o voto, pode esquecer. Não vai ter eleição", declarou o então presidente, lançando as bases de uma narrativa que seria repetida exaustivamente nos meses seguintes.
Mas o marco definitivo da escalada golpista veio em 7 de setembro de 2021. Durante os atos de celebração da Independência, Bolsonaro subiu no trio elétrico em Brasília e proferiu ameaças diretas ao Supremo Tribunal Federal: "Eu não mais me submeto a decisões emanadas de Alexandre de Moraes. Só Deus me tira dali", bradou para uma multidão que aplaudia.
Segundo a investigação da Polícia Federal, essas declarações públicas eram apenas a ponta de um iceberg muito maior. Nos bastidores, uma sofisticada organização criminosa já operava para criar as condições necessárias para uma ruptura institucional.
A Anatomia de uma Conspiração: Os Seis Núcleos do Golpe
A trama Golpista
A Polícia Federal identificou que a organização criminosa operou através de seis núcleos especializados, cada um com funções específicas no projeto de poder:
Estrutura da Organização Criminosa segundo a Polícia Federal
1. Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral
Coordenado por figuras como Filipe Martins, assessor especial da Presidência, e José Eduardo de Oliveira e Silva, este núcleo foi responsável por disseminar sistematicamente informações falsas sobre fraudes eleitorais. O grupo utilizou o que os investigadores chamam de técnicas da "milícia digital": alto volume de disseminação, uso de múltiplos canais, repetição constante e emprego de autoridades para dar credibilidade às narrativas falsas.
Um dos episódios mais emblemáticos foi a reunião de 18 de julho de 2022 com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada. Bolsonaro apresentou alegações infundadas sobre vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, numa clara tentativa de desacreditar as eleições junto à comunidade internacional.
2. Núcleo Responsável por Incitar Militares a Aderirem ao Golpe
Liderado pelo general Walter Souza Braga Netto, este núcleo tinha como objetivo cooptar comandantes militares para apoiar a ruptura institucional. Os investigadores descobriram que militares de forças especiais, apelidados de "Kids Pretos", foram mobilizados para pressionar o Alto Comando do Exército.
Uma reunião crucial ocorreu em 28 de novembro de 2022, numa residência em Brasília, onde oficiais de forças especiais planejaram ações para "influenciar positivamente" seus comandantes a aderir ao golpe. O coronel Bernardo Romão Corrêa Netto chegou a afirmar em mensagens: "Thomaz, Richard e Stumpf tinham que ser exonerados, presos, sei lá, qualquer merda, antes do GFG [General Freire Gomes] passar o Comando EB".
3. Núcleo Jurídico
Composto por advogados e juristas como Amauri Feres Saad, este núcleo elaborou as minutas de decretos que dariam aparência legal ao golpe. O grupo trabalhou na fundamentação jurídica para medidas como a decretação de Estado de Defesa e a intervenção no Tribunal Superior Eleitoral.
4. Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas
Este núcleo fornecia suporte logístico e operacional para as ações da organização. Incluía militares e civis que atuavam na coordenação de manifestações, distribuição de materiais e articulação entre diferentes grupos.
5. Núcleo de Inteligência Paralela
Liderado por Alexandre Rodrigues Ramagem, ex-diretor da ABIN, este núcleo utilizou a estrutura de inteligência do Estado para monitorar opositores, produzir informações falsas e apoiar as narrativas golpistas. Ramagem chegou a elaborar anotações pessoais com estratégias para interferir em investigações da Polícia Federal.
6. Núcleo Operacional para Cumprimento de Medidas Coercitivas
O mais sinistro dos núcleos, composto por militares de forças especiais, foi responsável pelo planejamento de ações violentas, incluindo planos para sequestrar ou assassinar autoridades. Este grupo elaborou o documento "Punhal Verde Amarelo", um detalhado plano operacional para eliminar o ministro Alexandre de Moraes e os candidatos eleitos Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin.
O Núcleo Crucial: Bolsonaro no Centro da Teia
A trama Golpista
Na estrutura hierárquica identificada pelos investigadores, Jair Messias Bolsonaro ocupava inequivocamente a posição de líder da organização criminosa. A denúncia da Procuradoria-Geral da República é categórica:
"O então presidente da República exerceu a liderança e teve pleno domínio da organização criminosa".
Jair Bolsonaro - Reprodução: Reuters
As evidências do protagonismo de Bolsonaro são abundantes:
Controle das Narrativas: Bolsonaro não apenas disseminava pessoalmente as alegações de fraude eleitoral, como coordenava a produção e distribuição desses conteúdos. Em reunião ministerial de 5 de julho de 2022, um general teria dito: "o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições", numa clara referência à necessidade de criar condições para questionar o resultado eleitoral.
Comando das Articulações: O ex-presidente participou diretamente de reuniões onde foram apresentadas as minutas do decreto golpista. Em 7 de dezembro de 2022, no Palácio do Alvorada, Bolsonaro reuniu os comandantes das Forças Armadas e o ministro da Defesa para apresentar o decreto que subverteria o Estado Democrático de Direito.
Conhecimento dos Planos Violentos: Segundo os investigadores, Bolsonaro tinha conhecimento dos planos para eliminar autoridades. O general Mario Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-geral da Presidência, confessou em depoimento ao STF ter sido o autor do plano "Punhal Verde Amarelo", que previa o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
Persistência Após o Fracasso: Mesmo depois que os comandantes militares recusaram apoio ao decreto golpista, Bolsonaro manteve a articulação através de outros canais, culminando nos eventos de 8 de janeiro de 2023.
As Acusações Contra Bolsonaro
A denúncia da PGR imputa a Jair Bolsonaro três crimes:
Organização Criminosa (art. 2º da Lei 12.850/2013): Como líder de uma associação de mais de quatro pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas para cometer crimes.
Tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal): Por tentar suprimir ou modificar o regime democrático mediante violência ou grave ameaça.
Tentativa de Golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal): Por tentar assumir o comando de tropas ou assumir o exercício de função pública constitucionalmente atribuída a outrem.
O Ministério Público enfatiza que a tentativa de golpe é crime consumado, independentemente do sucesso da empreitada. "Não há justificativa plausível para questionar a legitimidade de eleições livres, diretas, secretas, universais e periódicas, realizadas com observância de todas as garantias legais e constitucionais", afirma a denúncia.
Os Demais Protagonistas do Núcleo Central
Além de Bolsonaro, outros sete réus compõem o núcleo central julgado pela Primeira Turma do STF:
General Walter Souza Braga Netto - Imagem: Sergio Lima - 16.fev.18/AFP
Walter Souza Braga Netto
Ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, Braga Netto foi identificado como coordenador-geral da organização criminosa. Os investigadores descobriram que ele ordenou ataques sistemáticos contra comandantes militares que se opuseram ao golpe. Em mensagem de 15 de dezembro de 2022, Braga Netto orientou: "Senta o pau no Batista Junior... traidor da pátria. Dai para frente. Inferniza a vida dele e da família".
General Augusto Heleno Ribeiro Pereira.Foto: Marcos Corrêa/PR
Augusto Heleno Ribeiro Pereira
Ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Heleno participou ativamente da articulação política do golpe e da elaboração das justificativas legais para as medidas excepcionais.
Alexandre Ramagem Rodrigues, diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência)
Alexandre Rodrigues Ramagem
Ex-diretor da ABIN, Ramagem utilizou a estrutura de inteligência do Estado para apoiar a trama golpista. Suas anotações pessoais revelam estratégias para interferir em investigações e produzir conteúdo favorável à narrativa de fraude eleitoral.
Ex-ministro Anderson Torres em depoimento à CPI dos Atos Golpistas — Foto: WALLACE MARTINS
Anderson Gustavo Torres
Ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Torres participou da articulação para utilizar as forças policiais federais em apoio ao projeto golpista.
O tenente-coronel Mauro Cid - Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Mauro César Barbosa Cid
Ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Cid foi peça-chave na articulação entre os diferentes núcleos da organização. Suas mensagens de WhatsApp, recuperadas pela Polícia Federal, documentam detalhadamente o planejamento golpista.
General Almir Garnier Santos - Foto: Marcos Corrêa/PR
Almir Garnier Santos
Ex-comandante da Marinha, foi o único entre os três comandantes militares a apoiar explicitamente o golpe. Segundo as investigações, Garnier chegou a colocar tropas à disposição para o cumprimento do decreto golpista.
Ex-comandante do exército - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira
Ex-ministro da Defesa, participou das reuniões onde o decreto golpista foi apresentado aos comandantes militares.
O Plano Sinistro: "Punhal Verde Amarelo"
Entre todas as descobertas da investigação, talvez nenhuma seja mais chocante que o documento encontrado em poder do general Mario Fernandes, intitulado "Punhal Verde Amarelo". Trata-se de um detalhado plano operacional para sequestrar ou assassinar o ministro Alexandre de Moraes e eliminar os candidatos eleitos Lula e Alckmin.
O documento, com características de manual terrorista, incluía:
Levantamento detalhado da rotina e segurança de Alexandre de Moraes: horários, itinerários, composição da equipe de segurança, veículos utilizados e pontos vulneráveis.
Plano para envenenar Lula: O documento previa a eliminação do presidente eleito por envenenamento, considerado um método que deixaria menos evidências.
Assassinato de Geraldo Alckmin: O vice-presidente eleito também seria eliminado para "extinguir a chapa vencedora" das eleições.
Aceitação de "baixas colaterais": O plano previa explicitamente que haveria mortes, inclusive de militares envolvidos, classificadas como "passíveis e aceitáveis".
O general Mario Fernandes confessou em depoimento ao STF ter sido o autor do plano: "O pensamento foi meu", declarou em julho de 2025. O documento chegou a ser impresso no Palácio do Planalto em dezembro de 2022, demonstrando que havia conhecimento em altos escalões do governo.
O plano saiu do papel em 15 de dezembro de 2022, quando os "Kids Pretos" executaram a chamada "Operação Copa 2022". Militares de forças especiais estavam posicionados em Brasília para prender ou executar Alexandre de Moraes. A operação só foi abortada quando ficou claro que Bolsonaro não conseguiria o apoio necessário dos comandantes militares.
A Resistência Democrática: Quando os Militares Disseram Não
Um dos aspectos mais relevantes revelados pela investigação foi a resistência oferecida pelos principais comandantes militares ao projeto golpista. Essa resistência foi determinante para impedir a consumação do golpe.
General Freire Gomes: O Comandante Legalista
General Marco Antônio Freire Gomes • Romério Cunha/VPR
O então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, conhecido como Freire Gomes, foi alvo de intensa pressão para aderir ao golpe. Em depoimento à Polícia Federal, Freire Gomes confirmou que chegou a advertir Bolsonaro de que, caso atentasse contra o regime democrático, seria obrigado a prender o próprio presidente.
A recusa de Freire Gomes gerou uma campanha sistemática de ataques orquestrada por Braga Netto. O ex-ministro da Defesa chegou a afirmar: "a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do Gen FREIRE GOMES. Omissão e indecisão não cabem a um combatente", e ordenou: "Oferece a cabeça dele. Cagão".
Brigadeiro Baptista Junior: A Aeronáutica Contra o Golpe
O tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, (Força Aérea Brasileira/Divulgação)
O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, foi ainda mais incisivo em sua oposição. Em depoimento, relatou que alertou constantemente Bolsonaro de que não existia qualquer fraude no sistema eletrônico de votação e que a Aeronáutica jamais apoiaria qualquer tentativa de manutenção irregular no poder.
Baptista Junior também se tornou alvo de ataques sistemáticos. Braga Netto chegou a orientar: "Senta o pau no Batista Junior... traidor da pátria... Inferniza a vida dele e da família".
A Exceção: Almirante Garnier
O único entre os três comandantes a apoiar o golpe foi o almirante Almir Garnier Santos, da Marinha. Segundo as investigações, Garnier chegou a colocar tropas à disposição de Bolsonaro e foi por isso elogiado pelos golpistas, que o chamavam de "patriota".
Eduardo Bolsonaro e a Guerra Econômica dos EUA
O deputado federal pediu licença do cargo e atualmente mora nos Estados Unidos com a esposa e os filhos - (crédito: Reprodução/Instagram @bolsonarosp)
Enquanto no Brasil a trama golpista se desenrolava, nos Estados Unidos, Eduardo Nantes Bolsonaro, filho do ex-presidente e deputado federal, trabalhava numa frente complementar: a tentativa de criar um caos econômico no país através de sanções internacionais.
A Procuradoria-Geral da República instaurou inquérito específico contra Eduardo Bolsonaro em maio de 2025, acusando-o de três crimes: coação no curso do processo, obstrução de investigação de organização criminosa e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Segundo a investigação, Eduardo Bolsonaro vem, desde o início de 2025, "reiterada e publicamente, afirmando que está se dedicando a conseguir do governo dos Estados Unidos a imposição de sanções contra integrantes do Supremo Tribunal Federal, da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal".
As ameaças incluem:
Cassação de vistos de entrada nos EUA
Bloqueio de bens e valores que autoridades brasileiras possam ter em território americano
Proibição de relações comerciais com pessoas físicas e jurídicas americanas
A estratégia de Eduardo Bolsonaro tem um objetivo claro: criar uma crise econômica e institucional no Brasil que force a saída do presidente Lula e abra caminho para o retorno de seu pai ao poder. A PGR identificou que essas ações têm "manifesto tom intimidatório" e visam "embaraçar o andamento do julgamento" da ação penal contra Jair Bolsonaro.
8 de Janeiro: O Ápice da Violência
Quando todos os outros planos falharam, a organização criminosa recorreu à violência direta. Em 8 de janeiro de 2023, uma semana após a posse de Lula, milhares de pessoas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília.
Extremistas invadiram sedes dos Poderes: mesmo identificada por setores de Inteligência, ação não foi brecada pelas forças policiais — Foto: Cristiano Mariz
A investigação revelou que os atos de 8 de janeiro não foram espontâneos, mas resultado direto da atuação da organização criminosa. O financiamento, a logística e o estímulo para as invasões foram coordenados pelos núcleos golpistas.
Os danos materiais superaram R$ 20 milhões, mas o custo democrático foi incalculável. Pela primeira vez na história republicana, os símbolos máximos da democracia brasileira foram atacados fisicamente por grupos que rejeitavam o resultado de eleições livres e democráticas.
Alexandre de Moraes: O Guardião da Democracia
No centro de toda a trama golpista estava a figura do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Relator dos principais inquéritos sobre ameaças à democracia, Moraes se tornou o principal alvo dos ataques golpistas.
Como relator do inquérito das fake news e dos atos antidemocráticos, Moraes conduziu investigações que revelaram a extensão das ameaças ao sistema democrático. Suas decisões, sempre respaldadas pelo colegiado do STF, foram fundamentais para preservar as instituições.
Alexandre de Moraes, do STF / Crédito: Gustavo Moreno/STF
A investigação revelou que Moraes era alvo prioritário dos planos violentos. O documento "Punhal Verde Amarelo" detalha minuciosamente como seria executado seu sequestro ou assassinato. O plano chegou a ser colocado em prática em 15 de dezembro de 2022, sendo abortado apenas quando ficou claro que o golpe não teria apoio militar.
Mesmo sob ameaça constante, Moraes manteve a condução das investigações dentro do estrito marco legal. Sua postura firme, mas sempre respaldada em decisões colegiadas, foi fundamental para que as instituições democráticas resistissem aos ataques sistemáticos.
O STF Como Bastião da Democracia
O Supremo Tribunal Federal desempenhou papel crucial na preservação da democracia brasileira durante a crise. Mais do que julgar casos individuais, o STF se posicionou como guardião último das instituições democráticas.
Ministros da Suprema Corte brasileira - Fellipe Sampaio/STF
O Tribunal tomou decisões fundamentais:
Validação das eleições de 2022 contra contestações infundadas
Condenação dos atos de 8 de janeiro como atentados à democracia
Autorização das investigações que desvendaram toda a trama golpista
A conduta do STF demonstrou que as instituições brasileiras, forjadas pela Constituição de 1988, possuem mecanismos de defesa eficazes contra tentativas autoritárias. A separação de poderes funcionou como anteparo contra os ataques ao sistema democrático.
O julgamento que começa nesta terça-feira na Primeira Turma do STF transcende a responsabilização individual dos acusados. Trata-se de um momento definidor para a democracia brasileira pelos seguintes motivos:
1. Precedente Jurídico
O julgamento estabelecerá precedente definitivo sobre os limites do exercício do poder no Brasil. Uma eventual condenação deixará claro que nem mesmo ex-presidentes estão acima da lei e que tentativas de golpe serão punidas com rigor.
2. Fortalecimento Institucional
A condução do julgamento demonstra a maturidade das instituições brasileiras. O fato de um ex-presidente ser julgado pelos mesmos crimes que qualquer cidadão reforça o princípio da igualdade perante a lei.
3. Proteção da Democracia
Uma condenação servirá como elemento dissuasório para futuras tentativas autoritárias. Estabelecerá que golpes de Estado, mesmo quando fracassam, têm consequências penais graves.
4. Reparação Histórica
O julgamento representa uma oportunidade de reparação histórica pelos danos causados às instituições democráticas e à sociedade brasileira. É uma chance de reafirmar os valores democráticos.
5. Exemplo Internacional
O Brasil está sendo observado pela comunidade internacional. Um julgamento justo e rigoroso reforçará a imagem do país como democracia sólida e servirá de exemplo para outras nações enfrentando desafios similares.
Os Impactos para a Democracia Brasileira
As revelações sobre a tentativa de golpe já produziram impactos duradouros na democracia brasileira:
Paradoxalmente, os ataques às instituições resultaram no seu fortalecimento. O Congresso Nacional, o STF, o TSE e as Forças Armadas demonstraram capacidade de resistir a pressões autoritárias.
Praça dos Três Poderes em Brasília
A sociedade brasileira tomou consciência da fragilidade da democracia. A mobilização social em defesa das instituições em momentos críticos demonstrou o amadurecimento cívico do país.
Os eventos revelaram a necessidade de reformas para fortalecer a democracia:
Regulamentação das redes sociais para combater desinformação
Fortalecimento dos órgãos de controle para impedir uso indevido da máquina pública
Maior transparência nos processos eleitorais
O país ainda enfrenta o desafio de superar a polarização extrema criada pela trama golpista. O julgamento pode contribuir para esse processo ao estabelecer os fatos com clareza e impor consequências aos responsáveis.
Lições para o Futuro
A tentativa de golpe de Estado no Brasil oferece lições importantes para a preservação da democracia:
1. Vigilância Constante
A democracia exige vigilância constante da sociedade. Sinais de autoritarismo devem ser identificados e combatidos precocemente.
2. Fortalecimento Institucional
As instituições democráticas precisam ser constantemente fortalecidas e aperfeiçoadas para resistir a ataques futuros.
3. Educação Cívica
É fundamental investir na educação cívica da população para criar cidadãos conscientes de seus direitos e deveres democráticos.
4. Combate à Desinformação
A desinformação é uma arma poderosa contra a democracia e precisa ser combatida através de regulamentação adequada e educação digital.
5. Defesa dos Valores Democráticos
Os valores democráticos não podem ser considerados garantidos. Precisam ser ativamente defendidos e promovidos.
O Brasil na encruzilhada da história
Quando os ministros da Primeira Turma do STF se reuniram nesta terça-feira para iniciar o julgamento de Jair Bolsonaro e seus correligionários, não estavam apenas decidindo sobre o destino individual de oito pessoas. Estavam, sim, escrevendo um capítulo fundamental da história democrática brasileira.
A investigação da Polícia Federal e a denúncia da Procuradoria-Geral da República revelaram uma conspiração de proporções assustadoras: uma organização criminosa que operou a partir dos mais altos escalões do poder, utilizou a máquina pública para fins privados, articulou com militares para quebrar a ordem constitucional e planejou eliminar fisicamente opositores políticos.
Que essa trama tenha sido descoberta, investigada e levada a julgamento demonstra a robustez das instituições brasileiras. Que os principais comandantes militares tenham recusado apoio ao golpe mostra que as lições da ditadura militar foram aprendidas pelas Forças Armadas. Que a sociedade tenha se mobilizado em defesa da democracia revela o amadurecimento cívico do país.
Mas a história ainda não terminou. O julgamento que se inicia hoje dirá se o Brasil está definitivamente vacinado contra aventuras autoritárias ou se precisará permanecer em vigilância constante. Uma coisa, porém, já está clara: a democracia brasileira foi testada ao limite e resistiu. E isso, por si só, já é uma vitória histórica.
O veredicto da Primeira Turma do STF não julgará apenas os réus no banco dos acusados. Julgará a própria capacidade da democracia brasileira de se defender, se renovar e se fortalecer diante dos desafios do século XXI. E, pelos indícios revelados ao longo de quase três anos de investigação, essa democracia está mais forte do que nunca.
Esta reportagem foi baseada em documentos oficiais da Polícia Federal, denúncia da Procuradoria-Geral da República, decisões do Supremo Tribunal Federal e fontes jornalísticas verificadas. Todos os fatos narrados estão devidamente documentados nos autos dos inquéritos e ações penais em curso.
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Instituto Nacional do Seguro Social (CPMI do INSS), instalada em agosto de 2025, emerge em um contexto de fraudes bilionárias que atravessaram três governos e expõem uma teia complexa de interesses políticos, empresariais e corporativos. Longe de ser apenas uma investigação técnica, a CPMI revela-se como um teatro político onde alguns dos próprios protagonistas das irregularidades tentam controlar a narrativa e encobrir suas responsabilidades históricas.
Evolução dos descontos fraudulentos no INSS de 2016 a 2024, mostrando como o esquema cresceu durante diferentes governos
A anatomia de um esquema bilionário
O esquema de fraudes no INSS representa uma das maiores sangrias de recursos públicos da história recente do Brasil. Entre 2019 e 2024, estima-se que R$ 6,3 bilhões foram desviados através de descontos irregulares nas aposentadorias e pensões de milhões de brasileiros. O prejuízo potencial pode chegar a R$ 10 bilhões considerando todo o período investigado.
A operação criminosa funcionava através de um sistema aparentemente legítimo de Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) entre o INSS e entidades associativas. Essas organizações, muitas delas de fachada, descontavam mensalidades diretamente dos benefícios previdenciários sob o pretexto de oferecer serviços como assistência jurídica, odontológica e descontos comerciais.
A realidade, porém, era bem diferente. Investigações da Controladoria-Geral da União (CGU) revelaram que 97,6% dos beneficiários entrevistados afirmaram não ter autorizado os descontos. A falsificação de assinaturas era sistemática, com "fábricas" dedicadas exclusivamente à produção de documentos fraudulentos.
No centro do escândalo encontra-se a Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer), presidida pelo empresário mineiro Carlos Roberto Ferreira Lopes. A entidade, que se apresenta como defensora de indígenas e pequenos agricultores, é na verdade controlada por um proeminente pecuarista do agronegócio com extensos negócios pessoais.
Conafer - Foto: Reprodução
A Conafer recebeu R$ 688 milhões em repasses do INSS até o começo de 2025, tornando-se a entidade que mais arrecadou através dos descontos fraudulentos. O crescimento da organização foi explosivo: passou de 231 mil associados em 2021 para 641 mil em 2023, representando um aumento de quase 180% em dois anos.
Durante a pandemia de COVID-19, quando os brasileiros enfrentavam suas maiores dificuldades, a Conafer promoveu a inclusão de descontos em 73.108 benefícios em apenas quatro meses (abril a julho de 2020), equivalente a aproximadamente 610 novos "filiados" por dia. Esse crescimento anômalo ocorreu justamente quando as agências do INSS estavam fechadas e os idosos tinham menor capacidade de detectar as fraudes.
A evolução histórica das fraudes
Governo Temer (2016-2018): As sementes da corrupção
Michel Temer - Getty Images
As fraudes no INSS não surgiram do nada. Suas raízes remontam ao governo de Michel Temer, quando as bases legais e operacionais foram criadas ou flexibilizadas para permitir o esquema. Durante esse período, os descontos fraudulentos saltaram de R$ 413 milhões em 2016 para R$ 617 milhões em 2018.
Um marco crucial foi a implementação da "transformação digital" em 2017, que suspendeu o envio de extratos em papel e transferiu tudo para o aplicativo Meu INSS. Embora apresentada como modernização, essa medida deixou milhões de idosos sem meios eficazes de acompanhar seus descontos, criando um ambiente propício para as fraudes.
Já em 2016, servidores do INSS denunciavam repasses suspeitos a associações, mas essas denúncias foram sistematicamente abafadas. Um servidor responsável por contratos denunciou à Polícia Federal repasses irregulares a uma associação de peritos médicos, mas não apenas não houve investigação como o próprio denunciante foi transferido para um setor conhecido como "cemitério de elefantes brancos".
Governo Bolsonaro (2019-2022): A consolidação criminal
O ex-presidente Jair Bolsonaro • 09/06/2025 - Ton Molina
Se o governo Temer plantou as sementes, foi durante o mandato de Jair Bolsonaro que o esquema floresceu e se consolidou em escala industrial. Os números são eloquentes: os descontos fraudulentos mantiveram-se relativamente estáveis entre R$ 604 milhões em 2019 e R$ 706 milhões em 2022.
O período foi marcado por mudanças legislativas que facilitaram ainda mais as fraudes. A Medida Provisória 871/2019 inicialmente exigia renovação anual das autorizações de desconto, mas a Lei 14.438/2022, sancionada por Bolsonaro sem vetos, eliminou esse requisito de segurança. Como resumiu o ministro Wolney Queiroz: "Entre 2019 e 2022 é que o ladrão entra na casa".
Durante esse período, 10 das 11 entidades hoje investigadas pela Polícia Federal assinaram acordos de cooperação técnica com o INSS entre 2021 e 2022. Essa concentração não é coincidência, mas resultado de uma política deliberada de afrouxamento dos controles.
Governo Lula (2023-2025): A descoberta e o enfrentamento
Lula - Reprodução YouTube
Paradoxalmente, foi durante o terceiro governo Lula que tanto ocorreu a explosão final das fraudes quanto sua definitiva exposição e combate. Os números mostram um crescimento vertiginoso: de R$ 706 milhões em 2022 para R$ 1,2 bilhão em 2023 e impressionantes R$ 2,8 bilhões em 2024.
Esse crescimento aparentemente paradoxal explica-se pelo fato de que o governo Lula herdou um sistema completamente comprometido, com acordos fraudulentos já estabelecidos e mecanismos de controle destruídos pelos governos anteriores. As entidades continuaram operando com base nos contratos firmados anteriormente, mas agora em escala exponencial.
A diferença fundamental foi a resposta governamental. Enquanto os governos anteriores ignoraram ou facilitaram as fraudes, o governo Lula desencadeou a Operação Sem Desconto em abril de 2025, suspendeu todos os acordos suspeitos, bloqueou R$ 2,8 bilhões em bens dos fraudadores e já devolveu mais de R$ 1 bilhão aos aposentados lesados.
A rede de proteção interna
Uma das revelações mais chocantes das investigações é o nível de infiltração do esquema criminoso dentro do próprio INSS. A operação contava com uma rede de servidores estrategicamente posicionados que garantiam proteção e continuidade às fraudes.
Alessando Roosevelt
Alessandro Roosevelt, diretor de benefícios do INSS, descobriu as irregularidades da Conafer em 2020 e tentou suspender os repasses. Ele identificou que a entidade havia incluído descontos em mais de 95 mil benefícios em apenas quatro meses, exigindo na prática a coleta de mais de 600 autorizações por dia. Roosevelt chegou a alertar o Ministério Público Federal sobre as irregularidades.
No entanto, sua investigação foi sabotada internamente. Em outubro de 2020, uma portaria assinada pelo então presidente do INSS Leonardo José Rolim retirou de Roosevelt a atribuição de fiscalizar a Conafer, transferindo-a para outra diretoria. A nova diretoria, chefiada por Jobson de Paiva Silveira Sales, rapidamente produziu uma nota técnica favorável à Conafer.
Os operadores da Fraude
O papel de Jucimar Fonseca da Silva foi particularmente relevante. Conhecido como "Soldado do Proerd", Jucimar era ex-policial militar e ex-vereador pelo PR (atual PL) em Manacapuru, Amazonas. Como Chefe da Divisão de Consignação em Benefícios do INSS, ele liderou um comitê interno que "investigou" as suspeitas sobre a Conafer em 2022.
O relatório final de Jucimar, baseado apenas em documentos fornecidos pela própria Conafer, concluiu não haver "nem grave e nem iminente risco" nos descontos da entidade. Essa "investigação" ocorreu quando já havia um inquérito da Polícia Federal em andamento e múltiplos alertas internos sobre fraudes.
Ingrid Ambrozi, servidora da diretoria de Jobson de Paiva, produziu uma nota técnica defendendo a "presunção da boa-fé" em relação à Conafer. Sua análise, que não tinha poder de decisão mas influenciou fortemente o processo, baseou-se exclusivamente em documentos apresentados pela própria entidade investigada, considerando o "contexto da pandemia" como justificativa para as irregularidades.
A presença de Ingrid Ambrozi nos quadros do INSS desde pelo menos 2003 e sua ascensão a posições-chave coincidindo com o período de maior crescimento das fraudes levanta questões sobre a penetração de longo prazo do esquema na estrutura do órgão.
A CPMI como Cortina de Fumaça
A análise da composição e dos primeiros movimentos da CPMI revela sinais claros de que ela pode servir mais para encobrir responsabilidades do que para esclarecê-las. O senador Carlos Viana (Podemos-MG), eleito presidente da comissão, foi figura central na onda bolsonarista de 2018 e mantém posições críticas ao governo Lula.
Viana, que teve pouco protagonismo durante seu mandato, subitamente ganhou destaque ao assumir a presidência da CPMI. Suas declarações iniciais, embora prometendo "isenção", revelam um foco narrativo específico: concentrar as investigações no período mais recente (governo Lula) quando as fraudes se tornaram visíveis, evitando aprofundar as responsabilidades históricas dos governos que criaram e consolidaram o esquema.
Carlos Viana preside a CPMI, ao lado do vice-presidente, Duarte Jr., e do relator, Alfredo Gaspar - Fonte: Agência Senado
Uma das principais estratégias da "cortina de fumaça" é inverter a narrativa temporal. Embora os dados mostrem claramente que as fraudes começaram no governo Temer e se consolidaram sob Bolsonaro, parte da comissão tenta focar exclusivamente no período 2023-2024, quando os números explodiam devido aos contratos fraudulentos já estabelecidos.
Como observou o deputado Pedro Campos (PSB-PE), líder do PSB na Câmara: "Vê-se um escândalo de corrupção que começou num governo e continuou no seguinte [...] Achar que o melhor lugar para investigar isso é dentro de uma CPI, no próprio Congresso Federal, não me parece inteligente. O que a gente vê, na verdade, é uma tentativa de criar uma cortina de fumaça".
A própria dinâmica da CPMI favorece essa inversão narrativa. Com mais de 800 requerimentos já apresentados, muitos focam exclusivamente em figuras do atual governo, como o irmão do presidente Lula, José Ferreira da Silva (Frei Chico), que é vice-presidente do Sindnapi, uma das entidades investigadas.
Analistas políticos alertam que a CPMI será marcada por "forte debate e tentativas de politização das investigações". Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP) chegou a alertar explicitamente para o risco de o governo usar a CPMI como "cortina de fumaça" para desviar a atenção das pautas da oposição.
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) já sinalizou que usará a comissão para "cobrar investigações rigorosas", mas sem mencionar as responsabilidades históricas dos governos de direita que criaram as condições para o esquema.
As conexões políticas obscuras
Carlos Lopes
A figura de Carlos Roberto Ferreira Lopes, presidente da Conafer, revela conexões profundas com o sistema político brasileiro. Além de ser um proeminente pecuarista do agronegócio, Lopes construiu uma rede de influência que atravessa diferentes espectros políticos.
Um de seus principais aliados é o senador Francisco Rodrigues (PSB-RR), a quem Lopes chama de "amigo e orientador". Rodrigues já foi flagrado com dinheiro na cueca em operação da Polícia Federal e defendeu o garimpo em terras indígenas. Seu avião foi flagrado circulando em garimpo ilegal em terra Yanomami em 2018.
Lopes também manteve relações próximas com diferentes governos. Em novembro de 2024, cinco meses antes da Operação Sem Desconto, ele assinou um Protocolo de Intenções com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A Conafer conseguiu 31 reuniões oficiais com representantes do governo federal só em 2024, a maioria com os ministérios da Agricultura e das Comunicações.
Enquanto a Conafer recebia centenas de milhões em repasses fraudulentos do INSS, Carlos Lopes diversificava agressivamente seus negócios pessoais. Entre 2020 e 2024, ele abriu empresas de genética bovina, uma loja de arte indígena, uma mineradora e até uma holding nos Estados Unidos chamada Farmlands.
Terra Bank logo
Mas o mais revelador foi a criação do Terra Bank em outubro de 2021, no auge do aumento dos repasses do INSS à Conafer. Embora oficialmente pertencesse ao empresário Cícero Santos, documentos obtidos pelo Intercept mostram que o verdadeiro dono do banco digital é o próprio Lopes através de sua holding americana.
A Polícia Federal identificou transferências diretas entre a Conafer, Carlos Lopes, Cícero Santos e sua esposa no valor de R$ 812 mil entre 2021 e julho de 2023. O Terra Bank opera como fintech sem autorização do Banco Central, oferecendo serviços bancários voltados para o agronegócio e utilizando a imagem de indígenas em sua propaganda.
Nelson Wilians
Uma das revelações mais explosivas das investigações é o envolvimento do escritório do advogado Nelson Wilians, um dos mais famosos do país. Relatórios do Coaf apontam movimentações suspeitas na ordem de R$ 4,3 bilhões entre 2019 e 2023 envolvendo o escritório.
O montante bilionário justificou pedidos de convocação de Wilians na CPMI, especialmente devido à sua relação com o empresário Maurício Camisotti, um dos principais alvos da Operação Sem Desconto. Investigadores suspeitam de lavagem de dinheiro através de transações aparentemente legítimas, como a compra de imóveis e "adiantamentos de honorários" de valores astronômicos.
A blindagem institucional
Leonardo Rolim, que presidiu o INSS durante período crucial das fraudes (2020-2021), desempenhou papel fundamental na proteção do esquema criminoso. Foi ele quem assinou a portaria que retirou de Alessandro Roosevelt a atribuição de fiscalizar a Conafer, transferindo-a para uma diretoria mais "amigável".
Rolim justificou sua decisão como parte de uma "reestruturação" organizacional, mas a cronologia sugere motivação bem diferente. A mudança ocorreu exatamente quando Roosevelt estava descobrindo e documentando as fraudes da Conafer. Dois meses depois, a nova diretoria liberou os repasses que Roosevelt havia bloqueado.
Posteriormente, Rolim foi promovido novamente à Secretaria de Previdência, demonstrando que sua proteção ao esquema fraudulento não apenas não foi punida como foi recompensada com ascensão na carreira.
José Carlos Oliveira representa talvez o caso mais emblemático de como o esquema de fraudes foi protegido e premiado institucionalmente. Como diretor de benefícios do INSS, ele criou o comitê que "investigou" e absolveu a Conafer em 2022.
A investigação comandada por Oliveira foi uma farsa completa. Liderada por Jucimar Fonseca da Silva (o ex-vereador do PL), baseou-se exclusivamente em documentos fornecidos pela própria entidade investigada e ignorou completamente os inquéritos policiais e alertas técnicos já existentes.
O resultado da "investigação" foi usado pelo próprio Carlos Lopes para tentar escapar de intimação da Polícia Federal, alegando já ter sido "inocentado" pelo INSS. Longe de ser punido por essa farsa, Oliveira foi posteriormente promovido a presidente do INSS e depois a ministro do Trabalho e Previdência no governo Bolsonaro.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou transações suspeitas entre um sócio de Oliveira e sócios de Carlos Lopes, sugerindo benefícios financeiros pela proteção oferecida.
As vítimas silenciadas
Por trás dos números bilionários estão milhões de brasileiros idosos que tiveram seus parcos recursos subtraídos por organizações criminosas. A auditoria da CGU revelou que 97,6% dos beneficiários entrevistados não autorizaram os descontos, demonstrando a natureza massivamente fraudulenta do esquema.
Muitos aposentados vivem com apenas um salário mínimo e viram descontos de até R$ 79 mensais sendo retirados de suas aposentadorias. Para uma pessoa que recebe R$ 1.412 (salário mínimo), isso representa mais de 5% de sua renda mensal sendo desviada para enriquecer organizações criminosas.
O perfil das vítimas torna o crime ainda mais hediondo: idosos, muitos com baixa escolaridade e dificuldades com tecnologia, que foram deliberadamente escolhidos como alvos por sua vulnerabilidade. A suspensão dos extratos em papel durante a "transformação digital" de 2017 deixou milhões deles sem meios de acompanhar seus benefícios.
Uma das facetas mais perversas do esquema foi o uso de comunidades indígenas como fachada para legitimar as operações da Conafer. Carlos Lopes se apresenta como "liderança indígena" e usa cocares e adereços em eventos públicos, embora não tenha reconhecimento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Líderes indígenas relataram ao Intercept que o "modo operante" da Conafer é "oferecer caminhonete locada e salário para as lideranças" em troca de apoio e legitimidade. A organização bancava atividades sociais, campeonatos de futebol e assembleias nas comunidades, criando uma rede de dependência e cooptação.
A Conafer chegou ao ponto de organizar mutirões previdenciários com Unidades Móveis Flutuantes da Previdência Social, criando a impressão de que ajudava indígenas a acessar benefícios quando na verdade estava preparando o terreno para descontos fraudulentos.
A resposta governamental
A diferença fundamental entre os governos anteriores e o atual foi a resposta às fraudes descobertas. Enquanto Temer e Bolsonaro ignoraram, facilitaram ou protegeram o esquema, o governo Lula desencadeou uma resposta imediata e eficaz.
A Operação Sem Desconto, deflagrada em abril de 2025, foi resultado de dois anos de investigações coordenadas entre a Polícia Federal, a CGU e outros órgãos de controle. A operação resultou em:
Suspensão imediata de todos os acordos suspeitos
Bloqueio de R$ 2,8 bilhões em bens dos fraudadores
Prisão de 8 pessoas ligadas ao esquema
Afastamento de 5 dirigentes do INSS
Devolução de mais de R$ 1 bilhão aos aposentados em tempo recorde
Uma das ações mais significativas foi o acordo firmado pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Supremo Tribunal Federal para ressarcimento imediato das vítimas. Em menos de um mês, mais de 1,6 milhão de beneficiários receberam R$ 1,084 bilhão em suas contas, valores corrigidos pela inflação.
Essa solução evitou que cada vítima tivesse de entrar com ação individual na Justiça, processo que levaria anos e deixaria milhões de idosos sem reparação. A transparência foi assegurada por auditorias internas e acompanhamento dos órgãos de controle.
O governo também implementou medidas preventivas para evitar novos golpes:
Biometria obrigatória para toda autorização de desconto
Redução drástica no número de servidores com acesso a senhas críticas (de mais de 3.000 para apenas 6 pessoas)
Novos sistemas de monitoramento em tempo real
Campanhas de orientação para aposentados e pensionistas
Por que a CPMI é uma Farça: A inversão da responsabilidade temporal
A análise detalhada das evidências revela que a CPMI do INSS corre o risco de se tornar exatamente aquilo que seus críticos denunciam: uma cortina de fumaça para proteger os verdadeiros responsáveis pelas fraudes. A tentativa de focar as investigações no período 2023-2025, quando as fraudes se tornaram visíveis devido aos contratos estabelecidos anteriormente, representa uma inversão deliberada da responsabilidade temporal.
Os dados são inequívocos: as fraudes começaram no governo Temer, consolidaram-se sob Bolsonaro e foram descobertas e combatidas no governo Lula. Qualquer investigação séria deveria concentrar-se nos períodos de 2016-2018 e 2019-2022, quando as bases legais foram flexibilizadas e os mecanismos de proteção foram destruídos.
A composição da CPMI e seus primeiros movimentos sugerem uma estratégia deliberada de proteger figuras-chave que facilitaram ou protegeram o esquema. Nomes como Leonardo Rolim, José Carlos Oliveira, e os próprios ex-presidentes que criaram as condições para as fraudes parecem estar sendo poupados do escrutínio mais rigoroso.
Ao mesmo tempo, há uma concentração desproporcional de atenção em figuras marginais ou simbólicas, como o irmão do presidente Lula, que embora deva ser investigado se houver indícios, representa uma fração mínima do problema real.
O timing da criação da CPMI também levanta suspeitas. A comissão foi instalada exatamente quando as investigações da Polícia Federal e da CGU estavam avançando rapidamente e produzindo resultados concretos. Em vez de fortalecer esses órgãos técnicos, optou-se por criar uma arena política onde a narrativa pode ser mais facilmente manipulada.
Como observaram diversos analistas, a própria existência da CPMI pode prejudicar as investigações em curso, criando conflitos de competência e dando aos investigados múltiplas instâncias para protelar ou confundir os processos.
A verdadeira agenda por trás da CPMI parece ser tripla:
Desviar a atenção das responsabilidades históricas dos governos Temer e Bolsonaro
Criar narrativas alternativas que responsabilizem o governo que descobriu e combateu as fraudes
Proteger a rede de interesses políticos e empresariais que se beneficiou do esquema
Para que a CPMI cumpra seu papel constitucional de esclarecer a verdade, seria necessário:
Foco temporal correto: Concentrar as investigações nos períodos 2016-2018 e 2019-2022
Convocação dos verdadeiros responsáveis: Leonardo Rolim, José Carlos Oliveira, e outros que protegeram o esquema
Análise das mudanças legislativas: Investigar quem promoveu e aprovou as flexibilizações que facilitaram as fraudes
Rastreamento completo dos recursos: Seguir o dinheiro até seus beneficiários finais, incluindo as redes de lavagem
Responsabilização política: Identificar quais autoridades tinham conhecimento das fraudes e optaram por não agir
A atual configuração da CPMI, com sua composição política e agenda aparente, sugere que nada disso acontecerá de forma adequada. O que se vislumbra é mais um capítulo da longa tradição brasileira de investigações que servem mais para encobrir do que para esclarecer, protegendo os poderosos enquanto punem os subalternos.
A farça está montada. Resta saber se o público brasileiro se deixará enganar novamente por essa cortina de fumaça ou se exigirá uma investigação verdadeiramente séria sobre uma das maiores sangrias de recursos públicos da história recente do país.