Julgamento histórico: Primeiro dia expõe estratégias divergentes entre acusação e defesa
- Raul Silva

- 3 de set.
- 6 min de leitura
O primeiro dia do julgamento da ação penal que apura a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 marcou um momento sem precedentes na história republicana brasileira. Pela primeira vez, um ex-presidente da República senta no banco dos réus acusado de conspirar contra a democracia, em um processo que coloca à prova não apenas os envolvidos, mas a própria capacidade das instituições de processarem crimes contra o Estado democrático de direito.

Análise Política: O peso institucional de um precedente
A abertura solene do ministro Alexandre de Moraes deixou claro o peso institucional do momento:
"A história nos ensina que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação, pois o caminho aparentemente mais fácil e só aparentemente, que é da impunidade, que é da omissão, deixa cicatrizes traumáticas na sociedade e corrói a democracia".
A declaração ecoou como uma resposta direta às pressões políticas que se intensificaram nas vésperas do julgamento.
O procurador-geral Paulo Gonet, em sua sustentação de duas horas, construiu uma narrativa que conecta sistematicamente os eventos de 2022 aos atos violentos de janeiro de 2023.
"A tentativa de convencimento de autoridades do exército e da aeronáutica para o golpe não obteve o êxito esperado. O grupo conspirador enxergou então na geração de um cenário de instabilidade social uma conjuntura útil para os seus propósitos", afirmou, estabelecendo uma linha direta entre o que classifica como "núcleo crucial" da organização criminosa e os ataques às sedes dos três poderes.
A estratégia da acusação ficou evidente: demonstrar que os atos de 8 de janeiro não foram explosões espontâneas de descontentamento popular, mas o ápice de uma trama orquestrada que envolveu autoridades do mais alto escalão.
"O objetivo comum de permanência no poder também é extraído de outro documento encontrado na sede do Partido Liberal na sala do próprio ex-presidente Bolsonaro", disse Gonet, referindo-se ao texto que terminava com a frase "Lula não sobe a rampa".
Do lado das defesas, emergiram estratégias distintas mas complementares. A defesa de Mauro Cid, que abriu as sustentações da tarde, focou na validação de sua delação premiada, elemento central das acusações. O advogado Jair Alves Ferreira foi categórico:
"Qual é o indiciado? Qual é aquele que é preso? Qual é o investigado que concorda com o delegado e com o juiz? [...] Se o ministro Alexandre de Moraes tivesse determinado a minha prisão, eu também teria reclamado dele".
A argumentação buscou normalizar as críticas de Cid ao processo investigativo, caracterizando-as como exercício legítimo do direito de defesa.
A defesa de Alexandre Ramagem adotou linha técnica, questionando a cadeia de custódia das provas e a interpretação dos documentos encontrados em seus equipamentos eletrônicos. Paulo Renato Garcia Cintra Pinto argumentou que "três anos de perícia" resultaram em apenas "quatro documentos de texto", alegando que se tratavam de "compilados" de declarações públicas já conhecidas, não de orientações golpistas.
O almirante Almir Garnier, representado por Demóstenes Torres, viu sua defesa atacar frontalmente a narrativa acusatória. Torres foi direto:
"Nós não podemos fazer a criminalização do dissenso", citando casos recentes em que críticas políticas similares foram arquivadas pelo Ministério Público.
A estratégia foi clara: equiparar as críticas ao sistema eleitoral ao exercício da liberdade de expressão.
Já a defesa de Anderson Torres, conduzida por Elmar Roberto Novac, concentrou-se em desmontar a acusação de omissão dolosa no 8 de janeiro, apresentando evidências de que o ex-ministro tentou coordenar ações para desmobilizar os acampamentos em frente aos quartéis.
"Anderson Torres convoca o general Dutra [...] para desmobilizar os acampamentos em frente aos quartéis. A PGR insiste desde o início da investigação e da instrução que os acampamentos eram o coração do golpe", argumentou Novac.
Politicamente, o julgamento revela tensões que transcendem o caso específico. A presença de apenas cinco ministros na Primeira Turma, em contraste com o plenário de 11 ministros, gerou questionamentos sobre legitimidade democrática da decisão, embora a competência esteja estabelecida regimentalmente. O fato de o presidente Cristiano Zanin, indicado por Lula, presidir o julgamento de seu antecessor adiciona camadas simbólicas ao processo.
Análise Jurídica: Entre provas robustas e lacunas processuais
Do ponto de vista jurídico, o primeiro dia evidenciou os principais campos de batalha que definirão o resultado do julgamento. A acusação construiu sua tese sobre cinco pilares: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
A questão central gira em torno da caracterização da tentativa versus atos preparatórios. O procurador-geral foi enfático:
"Para que a tentativa se consolide, não é indispensável que haja ordem assinada pelo presidente da República para adoção de medidas explicitamente estranhas à regularidade constitucional. [...] A tentativa se revela na prática de atos e de ações dedicadas ao propósito da ruptura das regras constitucionais sobre o exercício do poder".
Esta interpretação jurídica é crucial porque define se os réus praticaram crimes consumados (ainda que tentados) ou se suas ações ficaram no campo dos atos preparatórios, tradicionalmente impuníveis no direito penal brasileiro. A defesa de Jair Bolsonaro, antecipando este debate, alegou em suas manifestações escritas que:
"excluída a punibilidade dos atos preparatórios, não há dúvidas que as condutas imputadas pela procuradoria geral da República [...] tratam-se, na pior das hipóteses, de atos preparatórios não tipificados".
A colaboração premiada de Mauro Cid emergiu como ponto de inflexão jurídica. Sua defesa batalhou para manter os termos originais do acordo, enquanto a PGR propôs uma "mitigação" dos benefícios devido a omissões e contradições. O advogado César Roberto Bitencourt foi direto:
"Não há um elemento, não há um elemento que demonstre uma ordem direta ou indireta que fosse [...] para produção desinformação".
A defesa argumenta que Cid cumpriu suas obrigações contratuais e que alterações unilaterais violariam o pacta sunt servanda.
Juridicamente, a validade da delação é fundamental porque grande parte das imputações se baseia nos relatos de Cid. Se o acordo for rescindido ou suas informações consideradas imprestáveis, o edifício acusatório ficará significativamente comprometido. O ministro Luiz Fux já sinalizou preocupação com esta questão ao perguntar sobre o número de vezes que Cid prestou depoimentos, buscando esclarecer se houve múltiplas colaborações ou apenas complementações.
A questão probatória revelou contrastes interessantes. Enquanto a defesa de Ramagem questionou a autenticidade e relevância de documentos encontrados em perícias de três anos de material eletrônico, a acusação apresentou evidências documentais que, segundo Gonet, foram "descobertas pela argúcia das investigações" da Polícia Federal.
Um aspecto técnico relevante emergiu na discussão sobre competência. A defesa de Ramagem levantou questão sobre crimes de natureza permanente, argumentando que sua condição de deputado federal deveria atrair outros crimes para a competência do STF. Paulo Renato Garcia Cintra Pinto citou precedentes da própria Primeira Turma:
"a organização criminosa ser um crime de natureza permanente, essa situação atrairia a competência desse Supremo Tribunal Federal, porque após a diplomação [...] a organização criminosa permanecia em funcionamento".
O debate sobre nexo causal também se mostrou central. A defesa do almirante Garnier, através de Demóstenes Torres, foi categórica:
"É preciso que haja o nexo causal individualizado. [...] não pode acontecer de se ter uma narrativa globalizante".
Torres citou depoimento do próprio Mauro Cid negando conhecimento prévio sobre os eventos de 8 de janeiro:
"O dia 8 foi uma surpresa para todo mundo. Os militares estavam de férias".
Esta questão do nexo causal é juridicamente complexa porque crimes como organização criminosa permitem responsabilização coletiva, mas ainda exigem demonstração de contribuição individual para o resultado. A acusação terá que provar que cada réu contribuiu especificamente para os crimes, não apenas que integrava um grupo com objetivos ilícitos.
Procedimentalmente, emergiram questões sobre o relatório da PET 11108, apresentado apenas nas fases finais da instrução. A defesa de Ramagem alegou violação ao contraditório:
"fatos foram apresentados naquele relatório que não constavam da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República [...] não foram objeto de contraditório nesta ação penal".
O aspecto temporal também gerou debates. Várias defesas argumentaram que seus constituintes já não ocupavam cargos públicos quando ocorreram os atos de 8 de janeiro, buscando quebrar a linha de causalidade entre as ações anteriores e o resultado final.
Do ponto de vista das penas, os réus enfrentam possibilidade de até 43 anos de prisão pela soma das penas máximas dos cinco crimes. Esta severidade explica a veemência das defesas e a importância de cada argumento técnico apresentado.
O primeiro dia deixou claro que o julgamento se concentrará em questões probatórias específicas: a validade da colaboração de Cid, a interpretação de documentos apreendidos, a caracterização de tentativa versus atos preparatórios, e fundamentalmente, se houve nexo causal entre as ações individuais de cada réu e os eventos de 8 de janeiro de 2023. A decisão da Primeira Turma estabelecerá precedentes fundamentais sobre os limites entre exercício de direitos políticos e crimes contra o Estado democrático de direito.




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