O Estranho Caso da CCJ: Quando o Congresso rasga a Constituição para cometer injustiças
- 23 de ago.
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A recente aprovação do voto impresso pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, por 14 votos a 12, em agosto de 2025, revela um padrão preocupante na política brasileira: o Congresso Nacional tem priorizado a legislação em causa própria em detrimento de questões fundamentais para a sociedade, chegando ao ponto de ignorar decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal. Este episódio expõe uma crise institucional profunda, onde a CCJ – ironicamente responsável por zelar pela constitucionalidade das leis – aprova medidas que contrariam frontalmente a Constituição Federal.

A insistência em uma medida declarada Inconstitucional
A aprovação do voto impresso pela CCJ representa mais um capítulo de uma saga que deveria ter se encerrado há anos. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou duas vezes sobre o tema, sendo categórico em suas decisões. Em 2013, a Corte declarou pela primeira vez a inconstitucionalidade do voto impresso, e em 2020, por unanimidade, reafirmou este entendimento na ADI 5889, relatada pelo ministro Gilmar Mendes.
O relator foi claro ao explicar os fundamentos técnicos e constitucionais que tornam o voto impresso incompatível com a Carta Magna: "A impressora precisa ser um equipamento inexpugnável, à prova de intervenções humanas, que jogue o registro do voto em um compartimento inviolável. Se assim não for, em vez de aumentar a segurança das votações, a impressão do registro será frágil como meio de confirmação do resultado e, pior, poderá servir a fraudes e a violação do sigilo das votações".
A decisão de 2020 destacou que o voto impresso "viola o sigilo e a liberdade do voto", princípios fundamentais do sistema democrático brasileiro. Mesmo assim, em 2025, a CCJ do Senado optou por ignorar esta jurisprudência consolidada, aprovando uma medida praticamente idêntica à que foi declarada inconstitucional.
Contrariando o discurso dos defensores do voto impresso, o sistema eletrônico brasileiro possui um histórico de segurança invejável. Desde 1996, quando foram implementadas, as urnas eletrônicas processaram mais de 15 eleições gerais e municipais sem um único caso comprovado de fraude.
O Tribunal Superior Eleitoral oferece múltiplas oportunidades de auditoria, incluindo testes públicos de segurança, fiscalização do código-fonte por mais de 100 entidades habilitadas, auditorias de funcionamento e verificações antes, durante e depois de cada eleição. Especialistas que participaram desses testes conseguiram identificar vulnerabilidades pontuais, que foram prontamente corrigidas, mas nunca comprometeram o sigilo do voto ou a integridade dos resultados.
A tecnologia da urna eletrônica evoluiu constantemente, incorporando camadas adicionais de segurança. O sistema atual utiliza mais de 30 barreiras de proteção, incluindo criptografia avançada, hardware de segurança dedicado, lacres físicos especiais produzidos pela Casa da Moeda e isolamento completo de redes externas.
As verdadeiras prioridades do Congresso Nacional
Enquanto a CCJ se ocupava em ressuscitar uma medida inconstitucional, o Congresso Nacional demonstrou onde realmente estão suas prioridades. Nos últimos anos, os parlamentares aprovaram uma série de medidas que beneficiam diretamente a classe política, configurando claros casos de legislação em causa própria.
Benefícios para a Classe Política
A lista de medidas aprovadas em benefício próprio é extensa. O Congresso aumentou o número de deputados federais de 513 para 531, ampliou em quase R$ 165 milhões os recursos dos fundos partidários para 2025 e tramita um projeto que permite aos parlamentares acumularem aposentadoria de ex-deputados com salário de qualquer mandato eletivo.
Essas medidas vão na contramão do discurso de austeridade fiscal que os mesmos parlamentares adotam quando se trata de políticas sociais. Como observou o presidente da OAB, Cláudio Lamachia, em situação semelhante: "Os deputados federais, representantes da sociedade, devem respeitar os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade em suas ações. Não podem legislar em causa própria".
Enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa
O novo Código Eleitoral aprovado pela CCJ também promove retrocessos significativos na Lei da Ficha Limpa. A proposta altera prazos de inelegibilidade, favorecendo políticos condenados. Em alguns crimes, a inelegibilidade passa a ser de apenas 8 anos após condenação em órgão colegiado, e políticos cassados terão a inelegibilidade contada apenas a partir da decisão de cassação, não mais pelo período restante do mandato mais 8 anos.
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) foi enfático ao classificar essas mudanças como "grave retrocesso" que "fragiliza a Lei da Ficha Limpa" e demonstra "mais uma vez, a classe política legislando em causa própria".

O papel controverso da CCJ
A Comissão de Constituição e Justiça deveria ser a guarda da constitucionalidade no processo legislativo. Suas competências incluem "opinar sobre a constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade das matérias que as primeiras condenações" e "propor, por projeto de resolução, a suspensão, no todo ou em parte, de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal".
É paradoxal que a mesma comissão responsável por zelar pela Constituição aprove medidas que contrariam frontalmente decisões unânimes do STF. Existe uma inversão de papéis quando a CCJ, em vez de garantir o cumprimento das decisões constitucionais, como ignoramos deliberadamente.
A retórica da transparência como Cortina de Fumaça
Os defensores do voto impresso utilizam constantemente a retórica da "transparência" e da "segurança" para explicação de sua posição. O senador Esperidião Amin, autor da emenda, argumentou que "não basta a urna ser segura, ela precisa parecer segura e transparente para o cidadão comum".
Contudo, essa argumentação ignora dados concretos. Segundo o TSE, desde 1996, não há registros de casos de fraudes eleitorais envolvendo a captura ou totalização de votos. O sistema brasileiro é reconhecido internacionalmente como um dos mais seguros e eficientes do mundo, com o código-fonte aberto à fiscalização de bolsas de valores.
A verdadeira questão não é técnica, mas política. Como demonstrado pelas mensagens em grupos de Telegram e WhatsApp provas pela mídia, a aprovação do voto impresso foi vista como "vitória da transparência" por grupos que questionam a legitimidade das eleições brasileiras sem apresentar evidências concretas.

A separação de Poderes em crise
A insistência do Congresso em aprovar medidas declaradas inconstitucionais pelo STF revela uma crise no sistema de separação de poderes. Quando o Legislativo ignora sistematicamente as decisões do Judiciário sobre questões constitucionais, estabelece-se um precedente perigoso para a democracia.
O conflito entre os Poderes
Recentemente, diversos episódios foram marcados em debate entre STF e Congresso, desde a questão das emendas parlamentares até a derrubada do decreto presidencial sobre a IOF. Parlamentares da oposição defendem a necessidade de limites ao STF, com pelo menos 20 PECs tramitando com esse objetivo, mas essas iniciativas estão paralisadas pela falta de articulações políticas.
O senador Oriovisto Guimarães, autor da PEC que visa acabar com decisões monocráticas, observou que "um homem sozinho, ministro Alexandre de Moraes, em uma decisão monocrática, disse à nação brasileira: eu sozinho posso mais que 513 deputados, que 81 senadores e que a presidência da Repúblicas".
Por outro lado, a Advocacia-Geral da União tem reagido, argumentando que algumas medidas do Congresso "violam o princípio da separação entre os Poderes" e representam "riscos fiscais graves ao Estado brasileiro".

O impacto nas Eleições de 2026
A aprovação do voto impresso pela CCJ cria incertezas para as eleições de 2026. Mesmo que a medida seja aprovada pelo plenário do Senado e retorne à Câmara dos Deputados, especialistas discutiram sua implementação ao longo do tempo.
Custos e complexidade operacional
O ministro Gilmar Mendes, em sua decisão de 2020, destacou que a implementação do voto impresso traria “enorme dificuldade operacional, exigindo a instalação de impressoras, que são equipamentos altamente suscetíveis a problemas mecânicos, em todas as urnas, além de ampliar, significativamente, o custo das eleições”.
Estudos anteriores do TSE estimaram que a implementação custaria cerca de R$ 2 bilhões, valor que seria ainda maior considerando a inflação e as atualizações tecnológicas. Esses recursos poderiam ser mais bem utilizados em áreas prioritárias como saúde, educação e segurança pública.
A questão do Prazo Legal
Para que as mudanças no Código Eleitoral entrem em vigor nas eleições de 2026, o texto precisa ser aprovado até outubro de 2025, conforme determina o artigo 16 da Constituição Federal. Este prazo extremamente apertado torna praticamente impossível a implementação adequada do voto impresso, mesmo que aprovado.
O próprio relator do projeto, o senador Marcelo Castro, demonstrou ceticismo quanto às previsões: "Pela lógica, o plenário vai votar contra. Mas como vivemos tempos estranhos, tudo é possível".

A desinformação como pano de fundo
O debate sobre o voto impresso não pode ser dissociado do contexto de desinformação que tem marcado como eleições brasileiras nos últimos anos. Grupos organizados utilizam aplicativos de mensagens para propagar informações falsas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criando um ambiente de desconfiança infundado no sistema eleitoral.
O combate às Fake News
O TSE tem se empenhado em combater a desinformação através de diversas iniciativas. A Resolução TSE nº 23.610/2019 estabelece regras claras para o uso de inteligência artificial na propaganda eleitoral, proíbe deepfakes e responsabilizamos plataformas digitais que não removam conteúdos falsos imediatamente.
Contudo, mensagens como a identificada nos aplicativos – “De tanto o Lula gastar que se para candidato no ano que vem ele ganharia a eleição facilmente, o senado tomou vergonha na cara pra tentar passar o voto impresso” – demonstram como o debate técnico é distorcido por narrativas políticas.
A responsabilidade das Instituições
As instituições têm papel fundamental no combate à desinformação. Como comentou o ministro André Ramos Tavares, do TSE: "É impossível impedir a divulgação de informações falsas sem o uso da Inteligência Artificial... Esse não é apenas um problema eleitoral, é um problema generalizado da sociedade".
O TSE criou diversos canais de verificação de informações e programas educativos para esclarecer o funcionamento do sistema eleitoral. Mesmo assim, persiste a desinformação, alimentada por interesses políticos específicos.
O retrocesso nas Políticas de Gênero
Além do voto impresso, o novo Código Eleitoral aprovado pela CCJ também promove retrocessos nas políticas de inclusão de gênero na política. Embora tenha suspendido a reserva de 30% para candidaturas femininas nas chapas, a proposta de destinar apenas 20% das cadeiras do Legislativo para mulheres foi vista pela bancada feminina como insuficiente.
A senadora Zenaide Maia foi enfática: "É tirar um direito conquistado com muita luta, dado pelo poder judiciário. Não foi dessa Casa. E sabe o que vai acontecer? Não vão ser aprovados os 20% e a gente vai ficar sem as candidaturas".
O Brasil ocupa a constrangedora 137ª posição mundial em representatividade feminina na política. Em vez de criar mecanismos mais eficazes para reverter esse quadro, o Congresso se concentra em debates sobre votos impressos que não agregam valor algum ao sistema democrático.

Perspectivas e Consequências futuras
As ações da CCJ e do Congresso Nacional têm consequências que transcendem o debate imediato sobre o voto impresso. Elas estabelecem princípios perigosos sobre o desrespeito às decisões constitucionais e criam um ambiente de instabilidade institucional.
O risco de Judicialização
O próprio relator Marcelo Castro alertou que a aprovação do voto impresso pode resultar em maior judicialização: "O voto impresso é um retrocesso. Só vai trazer mais insegurança, mais problema e judicialização". Esta previsão baseia-se na experiência internacional, onde sistemas híbridos de votação geram frequentemente mais controvérsias e contestações judiciais.
O impacto na Confiança Institucional
A insistência em medidas declaradas inconstitucionais corrói a confiança nas instituições democráticas. Quando o Congresso ignora sistematicamente as decisões do STF, estabelece um precedente de que as decisões constitucionais podem ser simplesmente desconsideradas quando não contemplam os interesses políticos momentâneos.
As verdadeiras urgências nacionais
Enquanto o debate da CCJ voto impresso, questões urgentes permanecem sem solução adequada. A lista de prioridades do governo para 2025-2026 inclui 25 iniciativas na área econômica, mas o Congresso parece mais interessado em debates que beneficiem a própria classe política.

O Dilema democrático
O caso da aprovação do voto impresso pela CCJ do Senado representa um microcosmo dos problemas estruturais da política brasileira contemporânea. A comissão responsável por zelar pela constitucionalidade das leis aprova medidas que contrariam frontalmente a Constituição Federal. O Congresso prioriza questões que beneficiam a classe política em detrimento de demandas sociais urgentes. As instituições criadas para defender a democracia são utilizadas para fragilizar os próprios fundamentos do sistema democrático.
Este episódio revela que o problema não está na tecnologia das urnas eletrônicas – exaustivamente testada, auditada e reconhecida internacionalmente por sua segurança. O problema está na postura de uma classe política que, quando não consegue vencer no jogo democrático, tenta mudar as regras do jogo.
A democracia brasileira enfrenta um momento delicado. As instituições estão sendo testadas por forças que evitam a instabilidade à transparência, a desinformação aos fatos, e aos interesses corporativos ao bem comum. A resposta a esses desafios não veio de medidas técnicas como o voto impresso, mas do fortalecimento das instituições democráticas, do respeito à Constituição e do compromisso com a verdade.
O Congresso Nacional precisa urgentemente reorientar suas prioridades. Em vez de insistir em medidas declaradas inconstitucionais pelo STF, deveria se concentrar nas demandas reais da população: saúde, educação, segurança, emprego e desenvolvimento econômico sustentável. A CCJ, por sua vez, deve retomar seu papel constitucional de guarda da legalidade, e não de promotora de retrocessos.
A democracia brasileira já provou sua resiliência em diversos momentos históricos. Mas ela depende do compromisso de todos os atores políticos com os princípios constitucionais. Quando uma comissão chamada “de Constituição e Justiça” promove medidas que contrariam tanto a Constituição quanto a Justiça, algo está fundamentalmente errado no sistema. Cabe à sociedade civil, à imprensa livre e às demais instituições democráticas concordarem com esses desvios antes que causem danos irreversíveis à nossa jovem democracia.
O voto impresso pode até parecer uma questão técnica menor, mas representa algo muito maior: a escolha entre uma democracia baseada em fatos, transparência e respeito às instituições, ou uma democracia frágil, baseada em desconfianças infundadas e interesses corporativos. A escolha é clara, e a hora de fazer essa escolha é agora.
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