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A recente aprovação do voto impresso pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, por 14 votos a 12, em agosto de 2025, revela um padrão preocupante na política brasileira: o Congresso Nacional tem priorizado a legislação em causa própria em detrimento de questões fundamentais para a sociedade, chegando ao ponto de ignorar decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal. Este episódio expõe uma crise institucional profunda, onde a CCJ – ironicamente responsável por zelar pela constitucionalidade das leis – aprova medidas que contrariam frontalmente a Constituição Federal.


Cronologia das Decisões sobre Voto Impresso no Brasil (2013-2025)
Cronologia das Decisões sobre Voto Impresso no Brasil (2013-2025)

A insistência em uma medida declarada Inconstitucional


A aprovação do voto impresso pela CCJ representa mais um capítulo de uma saga que deveria ter se encerrado há anos. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou duas vezes sobre o tema, sendo categórico em suas decisões. Em 2013, a Corte declarou pela primeira vez a inconstitucionalidade do voto impresso, e em 2020, por unanimidade, reafirmou este entendimento na ADI 5889, relatada pelo ministro Gilmar Mendes.


O relator foi claro ao explicar os fundamentos técnicos e constitucionais que tornam o voto impresso incompatível com a Carta Magna: "A impressora precisa ser um equipamento inexpugnável, à prova de intervenções humanas, que jogue o registro do voto em um compartimento inviolável. Se assim não for, em vez de aumentar a segurança das votações, a impressão do registro será frágil como meio de confirmação do resultado e, pior, poderá servir a fraudes e a violação do sigilo das votações".


A decisão de 2020 destacou que o voto impresso "viola o sigilo e a liberdade do voto", princípios fundamentais do sistema democrático brasileiro. Mesmo assim, em 2025, a CCJ do Senado optou por ignorar esta jurisprudência consolidada, aprovando uma medida praticamente idêntica à que foi declarada inconstitucional.


Contrariando o discurso dos defensores do voto impresso, o sistema eletrônico brasileiro possui um histórico de segurança invejável. Desde 1996, quando foram implementadas, as urnas eletrônicas processaram mais de 15 eleições gerais e municipais sem um único caso comprovado de fraude.


O Tribunal Superior Eleitoral oferece múltiplas oportunidades de auditoria, incluindo testes públicos de segurança, fiscalização do código-fonte por mais de 100 entidades habilitadas, auditorias de funcionamento e verificações antes, durante e depois de cada eleição. Especialistas que participaram desses testes conseguiram identificar vulnerabilidades pontuais, que foram prontamente corrigidas, mas nunca comprometeram o sigilo do voto ou a integridade dos resultados.


A tecnologia da urna eletrônica evoluiu constantemente, incorporando camadas adicionais de segurança. O sistema atual utiliza mais de 30 barreiras de proteção, incluindo criptografia avançada, hardware de segurança dedicado, lacres físicos especiais produzidos pela Casa da Moeda e isolamento completo de redes externas.


As verdadeiras prioridades do Congresso Nacional


Enquanto a CCJ se ocupava em ressuscitar uma medida inconstitucional, o Congresso Nacional demonstrou onde realmente estão suas prioridades. Nos últimos anos, os parlamentares aprovaram uma série de medidas que beneficiam diretamente a classe política, configurando claros casos de legislação em causa própria.


Benefícios para a Classe Política


A lista de medidas aprovadas em benefício próprio é extensa. O Congresso aumentou o número de deputados federais de 513 para 531, ampliou em quase R$ 165 milhões os recursos dos fundos partidários para 2025 e tramita um projeto que permite aos parlamentares acumularem aposentadoria de ex-deputados com salário de qualquer mandato eletivo.


Essas medidas vão na contramão do discurso de austeridade fiscal que os mesmos parlamentares adotam quando se trata de políticas sociais. Como observou o presidente da OAB, Cláudio Lamachia, em situação semelhante: "Os deputados federais, representantes da sociedade, devem respeitar os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade em suas ações. Não podem legislar em causa própria".


Enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa


O novo Código Eleitoral aprovado pela CCJ também promove retrocessos significativos na Lei da Ficha Limpa. A proposta altera prazos de inelegibilidade, favorecendo políticos condenados. Em alguns crimes, a inelegibilidade passa a ser de apenas 8 anos após condenação em órgão colegiado, e políticos cassados terão a inelegibilidade contada apenas a partir da decisão de cassação, não mais pelo período restante do mandato mais 8 anos.


O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) foi enfático ao classificar essas mudanças como "grave retrocesso" que "fragiliza a Lei da Ficha Limpa" e demonstra "mais uma vez, a classe política legislando em causa própria".

Cópia oficial da Constituição Federal Brasileira de 1988, fundamento da democracia e dos direitos legais do Brasil
Cópia oficial da Constituição Federal Brasileira de 1988, fundamento da democracia e dos direitos legais do Brasil 

O papel controverso da CCJ


A Comissão de Constituição e Justiça deveria ser a guarda da constitucionalidade no processo legislativo. Suas competências incluem "opinar sobre a constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade das matérias que as primeiras condenações" e "propor, por projeto de resolução, a suspensão, no todo ou em parte, de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal".


É paradoxal que a mesma comissão responsável por zelar pela Constituição aprove medidas que contrariam frontalmente decisões unânimes do STF. Existe uma inversão de papéis quando a CCJ, em vez de garantir o cumprimento das decisões constitucionais, como ignoramos deliberadamente.


A retórica da transparência como Cortina de Fumaça


Os defensores do voto impresso utilizam constantemente a retórica da "transparência" e da "segurança" para explicação de sua posição. O senador Esperidião Amin, autor da emenda, argumentou que "não basta a urna ser segura, ela precisa parecer segura e transparente para o cidadão comum".


Contudo, essa argumentação ignora dados concretos. Segundo o TSE, desde 1996, não há registros de casos de fraudes eleitorais envolvendo a captura ou totalização de votos. O sistema brasileiro é reconhecido internacionalmente como um dos mais seguros e eficientes do mundo, com o código-fonte aberto à fiscalização de bolsas de valores.


A verdadeira questão não é técnica, mas política. Como demonstrado pelas mensagens em grupos de Telegram e WhatsApp provas pela mídia, a aprovação do voto impresso foi vista como "vitória da transparência" por grupos que questionam a legitimidade das eleições brasileiras sem apresentar evidências concretas.


Urna eletrônica brasileira mostrando teclado e botão de confirmação sob uma mão
Urna eletrônica brasileira mostrando teclado e botão de confirmação sob uma mão

A separação de Poderes em crise


A insistência do Congresso em aprovar medidas declaradas inconstitucionais pelo STF revela uma crise no sistema de separação de poderes. Quando o Legislativo ignora sistematicamente as decisões do Judiciário sobre questões constitucionais, estabelece-se um precedente perigoso para a democracia.


O conflito entre os Poderes


Recentemente, diversos episódios foram marcados em debate entre STF e Congresso, desde a questão das emendas parlamentares até a derrubada do decreto presidencial sobre a IOF. Parlamentares da oposição defendem a necessidade de limites ao STF, com pelo menos 20 PECs tramitando com esse objetivo, mas essas iniciativas estão paralisadas pela falta de articulações políticas.


O senador Oriovisto Guimarães, autor da PEC que visa acabar com decisões monocráticas, observou que "um homem sozinho, ministro Alexandre de Moraes, em uma decisão monocrática, disse à nação brasileira: eu sozinho posso mais que 513 deputados, que 81 senadores e que a presidência da Repúblicas".


Por outro lado, a Advocacia-Geral da União tem reagido, argumentando que algumas medidas do Congresso "violam o princípio da separação entre os Poderes" e representam "riscos fiscais graves ao Estado brasileiro".


Infográfico explicando os papéis e representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário do Brasil sob a separação de poderes
Infográfico explicando os papéis e representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário do Brasil sob a separação de poderes 

O impacto nas Eleições de 2026


A aprovação do voto impresso pela CCJ cria incertezas para as eleições de 2026. Mesmo que a medida seja aprovada pelo plenário do Senado e retorne à Câmara dos Deputados, especialistas discutiram sua implementação ao longo do tempo.


Custos e complexidade operacional


O ministro Gilmar Mendes, em sua decisão de 2020, destacou que a implementação do voto impresso traria “enorme dificuldade operacional, exigindo a instalação de impressoras, que são equipamentos altamente suscetíveis a problemas mecânicos, em todas as urnas, além de ampliar, significativamente, o custo das eleições”.


Estudos anteriores do TSE estimaram que a implementação custaria cerca de R$ 2 bilhões, valor que seria ainda maior considerando a inflação e as atualizações tecnológicas. Esses recursos poderiam ser mais bem utilizados em áreas prioritárias como saúde, educação e segurança pública.


A questão do Prazo Legal


Para que as mudanças no Código Eleitoral entrem em vigor nas eleições de 2026, o texto precisa ser aprovado até outubro de 2025, conforme determina o artigo 16 da Constituição Federal. Este prazo extremamente apertado torna praticamente impossível a implementação adequada do voto impresso, mesmo que aprovado.


O próprio relator do projeto, o senador Marcelo Castro, demonstrou ceticismo quanto às previsões: "Pela lógica, o plenário vai votar contra. Mas como vivemos tempos estranhos, tudo é possível".


Sessão plenária do Congresso Nacional Brasileiro com parlamentares reunidos no plenário legislativo
Sessão plenária do Congresso Nacional Brasileiro com parlamentares reunidos no plenário legislativo

A desinformação como pano de fundo


O debate sobre o voto impresso não pode ser dissociado do contexto de desinformação que tem marcado como eleições brasileiras nos últimos anos. Grupos organizados utilizam aplicativos de mensagens para propagar informações falsas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criando um ambiente de desconfiança infundado no sistema eleitoral.


O combate às Fake News


O TSE tem se empenhado em combater a desinformação através de diversas iniciativas. A Resolução TSE nº 23.610/2019 estabelece regras claras para o uso de inteligência artificial na propaganda eleitoral, proíbe deepfakes e responsabilizamos plataformas digitais que não removam conteúdos falsos imediatamente.


Contudo, mensagens como a identificada nos aplicativos – “De tanto o Lula gastar que se para candidato no ano que vem ele ganharia a eleição facilmente, o senado tomou vergonha na cara pra tentar passar o voto impresso” – demonstram como o debate técnico é distorcido por narrativas políticas.


A responsabilidade das Instituições


As instituições têm papel fundamental no combate à desinformação. Como comentou o ministro André Ramos Tavares, do TSE: "É impossível impedir a divulgação de informações falsas sem o uso da Inteligência Artificial... Esse não é apenas um problema eleitoral, é um problema generalizado da sociedade".


O TSE criou diversos canais de verificação de informações e programas educativos para esclarecer o funcionamento do sistema eleitoral. Mesmo assim, persiste a desinformação, alimentada por interesses políticos específicos.


O retrocesso nas Políticas de Gênero


Além do voto impresso, o novo Código Eleitoral aprovado pela CCJ também promove retrocessos nas políticas de inclusão de gênero na política. Embora tenha suspendido a reserva de 30% para candidaturas femininas nas chapas, a proposta de destinar apenas 20% das cadeiras do Legislativo para mulheres foi vista pela bancada feminina como insuficiente.


A senadora Zenaide Maia foi enfática: "É tirar um direito conquistado com muita luta, dado pelo poder judiciário. Não foi dessa Casa. E sabe o que vai acontecer? Não vão ser aprovados os 20% e a gente vai ficar sem as candidaturas".


O Brasil ocupa a constrangedora 137ª posição mundial em representatividade feminina na política. Em vez de criar mecanismos mais eficazes para reverter esse quadro, o Congresso se concentra em debates sobre votos impressos que não agregam valor algum ao sistema democrático.


Plenário do Congresso Nacional Brasileiro durante sessão mostrando assentos legislativos e telas digitais com conteúdo oficial
Plenário do Congresso Nacional Brasileiro durante sessão mostrando assentos legislativos e telas digitais com conteúdo oficial

Perspectivas e Consequências futuras


As ações da CCJ e do Congresso Nacional têm consequências que transcendem o debate imediato sobre o voto impresso. Elas estabelecem princípios perigosos sobre o desrespeito às decisões constitucionais e criam um ambiente de instabilidade institucional.


O risco de Judicialização


O próprio relator Marcelo Castro alertou que a aprovação do voto impresso pode resultar em maior judicialização: "O voto impresso é um retrocesso. Só vai trazer mais insegurança, mais problema e judicialização". Esta previsão baseia-se na experiência internacional, onde sistemas híbridos de votação geram frequentemente mais controvérsias e contestações judiciais.


O impacto na Confiança Institucional


A insistência em medidas declaradas inconstitucionais corrói a confiança nas instituições democráticas. Quando o Congresso ignora sistematicamente as decisões do STF, estabelece um precedente de que as decisões constitucionais podem ser simplesmente desconsideradas quando não contemplam os interesses políticos momentâneos.


As verdadeiras urgências nacionais


Enquanto o debate da CCJ voto impresso, questões urgentes permanecem sem solução adequada. A lista de prioridades do governo para 2025-2026 inclui 25 iniciativas na área econômica, mas o Congresso parece mais interessado em debates que beneficiem a própria classe política.


Constituição Federal Brasileira, essencial para entender as prioridades legislativas e questões constitucionais
Constituição Federal Brasileira, essencial para entender as prioridades legislativas e questões constitucionais 

O Dilema democrático


O caso da aprovação do voto impresso pela CCJ do Senado representa um microcosmo dos problemas estruturais da política brasileira contemporânea. A comissão responsável por zelar pela constitucionalidade das leis aprova medidas que contrariam frontalmente a Constituição Federal. O Congresso prioriza questões que beneficiam a classe política em detrimento de demandas sociais urgentes. As instituições criadas para defender a democracia são utilizadas para fragilizar os próprios fundamentos do sistema democrático.


Este episódio revela que o problema não está na tecnologia das urnas eletrônicas – exaustivamente testada, auditada e reconhecida internacionalmente por sua segurança. O problema está na postura de uma classe política que, quando não consegue vencer no jogo democrático, tenta mudar as regras do jogo.


A democracia brasileira enfrenta um momento delicado. As instituições estão sendo testadas por forças que evitam a instabilidade à transparência, a desinformação aos fatos, e aos interesses corporativos ao bem comum. A resposta a esses desafios não veio de medidas técnicas como o voto impresso, mas do fortalecimento das instituições democráticas, do respeito à Constituição e do compromisso com a verdade.


O Congresso Nacional precisa urgentemente reorientar suas prioridades. Em vez de insistir em medidas declaradas inconstitucionais pelo STF, deveria se concentrar nas demandas reais da população: saúde, educação, segurança, emprego e desenvolvimento econômico sustentável. A CCJ, por sua vez, deve retomar seu papel constitucional de guarda da legalidade, e não de promotora de retrocessos.


A democracia brasileira já provou sua resiliência em diversos momentos históricos. Mas ela depende do compromisso de todos os atores políticos com os princípios constitucionais. Quando uma comissão chamada “de Constituição e Justiça” promove medidas que contrariam tanto a Constituição quanto a Justiça, algo está fundamentalmente errado no sistema. Cabe à sociedade civil, à imprensa livre e às demais instituições democráticas concordarem com esses desvios antes que causem danos irreversíveis à nossa jovem democracia.


O voto impresso pode até parecer uma questão técnica menor, mas representa algo muito maior: a escolha entre uma democracia baseada em fatos, transparência e respeito às instituições, ou uma democracia frágil, baseada em desconfianças infundadas e interesses corporativos. A escolha é clara, e a hora de fazer essa escolha é agora.

 
 
 

Atualizado: 27 de ago.

Como uma das intelectuais mais respeitadas do mundo se tornou espantalho da extrema-direita global?


Angela Davis encontrou sua causa na destruição do sistema punitivo americano.
Angela Davis encontrou sua causa na destruição do sistema punitivo americano.

Uma investigação sobre a trajetória real de Angela Yvonne Davis e as distorções sistemáticas que transformaram uma professora universitária em símbolo de ameaça política.


Em outubro de 2022, quando Angela Davis conversou com Mano Brown no programa "Mano a Mano", milhões de brasileiros tiveram acesso pela primeira vez à voz real de uma das figuras mais distorcidas do debate político contemporâneo. Aos 78 anos, a filósofa apareceu articulada, reflexiva, profundamente humana - muito distante da "terrorista comunista" que grupos conservadores insistem em apresentar ao público brasileiro.


A entrevista, que alcançou mais de 2 milhões de visualizações apenas no Spotify, revelou uma contradição fundamental: enquanto Angela Davis se consolidava como uma das intelectuais mais respeitadas globalmente - com mais de 330 mil cópias de seus livros vendidos no Brasil pela editora Boitempo -, a extrema-direita brasileira intensificava o uso de sua figura como espantalho político durante e após o governo Bolsonaro.


Esta investigação busca responder uma pergunta central: quem é a Angela Davis real, e como sua trajetória intelectual foi sistematicamente distorcida para servir a interesses políticos que nada têm a ver com sua obra?


De Dynamite Hill aos corredores de Frankfurt


Para entender as distorções contemporâneas sobre Angela Davis, é fundamental retornar às suas origens. Nascida em 26 de janeiro de 1944, em Birmingham, Alabama, Angela Yvonne Davis cresceu no bairro ironicamente denominado "Dynamite Hill" - assim chamado porque a Ku Klux Klan bombardeava regularmente as residências de famílias negras que ousavam se mudar para aquela área.


Entre 1947 e 1965, mais de cinquenta casas foram bombardeadas na região. Angela testemunhou, aos seis anos, um homem branco cuspir no rosto de sua mãe, a professora Sallye Davis, que teve que engolir a humilhação porque qualquer reação poderia custar a vida da família. Essa experiência visceral de violência racializada moldaria para sempre sua compreensão sobre as articulações entre poder, raça e classe.


Contrariamente às narrativas que a retratam como produto da "doutrinação comunista", a formação política de Davis emergiu diretamente da realidade material de sua comunidade. Sua família fazia parte da pequena classe média negra de Birmingham - seu pai, B. Frank Davis, era dono de um posto de gasolina, e sua mãe era professora e membra ativa da NAACP. A casa dos Davis funcionava como ponto de encontro para ativistas e intelectuais negros que discutiam estratégias de resistência ao regime segregacionista.


Aos 15 anos, Davis organizou um grupo de estudos sobre questões raciais com colegas do ensino médio. O grupo foi descoberto pela polícia local e imediatamente proibido, numa demonstração precoce de como o aparato repressivo estatal criminalizava até mesmo a busca por conhecimento quando protagonizada por jovens negros.


A Escola de Frankfurt e a construção de um Marxismo Não-Ortodoxo


Em 1961, através de um programa de bolsas para jovens negros talentosos, Davis ingressou na Universidade Brandeis, em Massachusetts. Foi lá que conheceu Herbert Marcuse, refugiado alemão e um dos últimos representantes vivos da lendária Escola de Frankfurt.


O encontro foi transformador. Marcuse, impressionado com a inteligência de Davis, criou um tutorial independente especificamente para ela e, posteriormente, escreveu uma carta de recomendação para Theodor Adorno, sugerindo que ela estudasse diretamente na Universidade de Frankfurt.


Photo: Herbert Marcuse and Angela Davis, 1968
Photo: Herbert Marcuse and Angela Davis, 1968

Entre 1965 e 1967, Davis estudou com Adorno, Jürgen Habermas, Alfred Schmidt e Oscar Negt, mergulhando nas três críticas de Kant, na dialética hegeliana e na economia política marxista. Seu projeto de dissertação, "Towards a Kantian Theory of Force", explorava as contradições entre reivindicações morais universais e determinantes sócio-históricos que impedem sua realização material.


Durante esse período, emergiu uma tensão intelectual que marcaria permanentemente seu pensamento. Adorno defendia que teóricos críticos deveriam aprofundar-se na teoria antes de qualquer engajamento prático, comparando ativistas dos anos 1960 a "técnicos de rádio tentando fazer teoria da mídia". Marcuse, por outro lado, via nos movimentos de libertação o potencial transformador que a teoria crítica havia sempre prometido.


Davis desenvolveu uma síntese original dessa tensão, criando o que se pode chamar de "marxismo interseccional" - muito antes do termo interseccionalidade ser cunhado. Para ela, "classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida."


Esta perspectiva representava uma contribuição revolucionária ao pensamento marxista, superando tanto o reducionismo economicista quanto análises que hierarquizam opressões. Davis demonstrava como "a escravidão e a servidão articularam-se de modo singular com o capitalismo nas mais distintas formações sociais", revelando que o capitalismo nunca foi puramente econômico, mas sempre imbricado com hierarquias raciais e patriarcais.


Panteras Negras: Além das caricaturas midiáticas


Quando Davis retornou aos Estados Unidos em 1967, o país estava literalmente em chamas. Durante os dois anos que estivera na Alemanha, cidades queimavam com revoltas urbanas, universidades eram ocupadas por estudantes radicalizados, e líderes como Malcolm X e Martin Luther King Jr. foram assassinados.


Retrato de Angela Davis / Crédito: Getty Images
Retrato de Angela Davis / Crédito: Getty Images

Nesse contexto, Davis se aproximou simultaneamente do Partido Comunista Americano (CPUSA) e do Partido dos Panteras Negras. Essa dupla filiação revela a complexidade de seu pensamento político, que não se encaixava em categorias ideológicas simplistas.


Os Panteras Negras, fundados em 1966 por Huey Newton e Bobby Seale, foram sistematicamente distorcidos pela mídia conservadora. Contrariamente às caracterizações como "organização terrorista", os Panteras tinham um programa político estruturado - o "Programa de Dez Pontos" - que incluía demandas por habitação decente, educação que revelasse a verdadeira história afro-americana, fim da brutalidade policial e libertação de presos políticos negros.


Crucialmente, os Panteras não pregavam violência indiscriminada, mas defendiam o direito à autodefesa armada contra violência policial sistemática. A diferença é fundamental: eles respondiam à violência, não a iniciavam. Além disso, desenvolveram programas comunitários impressionantes, incluindo café da manhã gratuito para crianças (depois adotado pelo governo federal), clínicas de saúde gratuitas e programas de educação política.


A relação de Davis com os Panteras foi sempre "permanentemente ambígua", alternando entre "filiada e companheira de luta", como ela própria descreveu. Participava especialmente do programa de educação política, mas mantinha distância crítica das disputas internas, eventualmente se afastando da organização em 1969 devido a "desacordos ideológicos" - particularmente sobre questões de gênero e diferenças entre nacionalismo negro e análise de classes.


O Caso Soledad: Da solidariedade à criminalização


Foi o afastamento dos Panteras que levou Davis ao trabalho que mudaria sua vida: a campanha pelos "Irmãos Soledad" - George Jackson, Fleeta Drumgo e John Clutchette, presos acusados de assassinar um guarda na Penitenciária de Soledad.


George Jackson havia se tornado uma figura intelectual fascinante. Preso aos 18 anos por roubar 70 dólares - crime que normalmente resultaria em poucos meses de prisão -, recebera sentença indeterminada de "um ano à vida" por comportamento "hostil". Onze anos depois, continuava encarcerado, tendo se transformado em autodidata impressionante que lia Fanon, Marx e Mao, desenvolvendo análise sofisticada sobre prisão como instrumento de controle racial.


Cartaz de Angela Davis procurado pelo FBI, via Museu Afro-Americano da Califórnia.
Cartaz de Angela Davis procurado pelo FBI, via Museu Afro-Americano da Califórnia.

Davis estabeleceu correspondência intensa com Jackson, discutindo teoria revolucionária e estratégias de libertação. Era o diálogo intelectual que raramente encontrava - alguém que combinava experiência concreta de opressão com rigor teórico.


Em 7 de agosto de 1970, Jonathan Jackson, irmão mais novo de George, de apenas 17 anos, invadiu o Tribunal do Condado de Marin armado, numa tentativa desesperada de libertar os "Irmãos Soledad" fazendo reféns. No tiroteio que se seguiu, Jonathan Jackson, dois presos e o juiz Harold Haley foram mortos.


Duas das armas usadas por Jonathan estavam registradas em nome de Davis, que as havia comprado legalmente alguns meses antes para proteção pessoal - compreensível, considerando as ameaças de morte constantes que recebia. Em 14 de agosto de 1970, foi emitido mandado de prisão contra ela por assassinato em primeiro grau, sequestro e conspiração.


O detalhe crucial que conservadores sempre omitem: Davis não estava presente durante a tentativa de fuga. As acusações baseavam-se exclusivamente na propriedade das armas e na suposição de conspiração. Era um caso juridicamente frágil, mas politicamente conveniente para criminalizar uma das intelectuais negras mais articuladas do país.


"Free Angela Davis": Solidariedade internacional e absolvição


Compreendendo que não teria julgamento justo, Davis optou pela clandestinidade. Durante dois meses, foi a mulher mais procurada dos Estados Unidos, com recompensa de cem mil dólares por sua captura. O presidente Nixon a chamou publicamente de "terrorista" antes de qualquer julgamento - um linchamento midiático em escala nacional.


Mas emergiu uma das campanhas de solidariedade internacional mais impressionantes da história. "Free Angela Davis" se tornou grito de guerra global. John Lennon e Yoko Ono gravaram "Angela", que chegou ao top 10 americano. Rolling Stones dedicaram "Sweet Black Angel" a ela. James Baldwin, Jean-Paul Sartre, e intelectuais mundialmente respeitados mobilizaram apoio. Na União Soviética, um navio foi batizado com seu nome.


Free Angela Davis protest - La Raza - Students protest at a rally to free Angela Davis.
Free Angela Davis protest - La Raza - Students protest at a rally to free Angela Davis.

Capturada em outubro de 1970, Davis passou 18 meses na prisão. O isolamento forçado, longe de quebrá-la psicologicamente, proporcionou reflexão profunda sobre o sistema prisional como instrumento de controle social racializado. Foi nessa experiência que nasceu sua posterior análise do complexo industrial-prisional como continuação da escravidão.


O julgamento, iniciado em fevereiro de 1972, durou quatro meses com cobertura internacional diária. Em 4 de junho de 1972, o júri - majoritariamente branco - a declarou inocente de todas as acusações. A absolvição foi recebida com celebrações globais.


A intelectual: Contribuições acadêmicas ignoradas


A Davis que emergiu da prisão em 1972 era uma pessoa transformada. A experiência carcerária havia radicalizado sua compreensão sobre justiça social e definido sua verdadeira missão intelectual: analisar criticamente o sistema prisional americano.


Sua obra "Women, Race & Class" (1981) tornou-se contribuição seminal ao feminismo crítico. Davis desenvolve análise histórica demonstrando como o feminismo branco frequentemente excluiu mulheres negras, revelando que "'mulher' era o critério, mas nem toda mulher parecia estar qualificada". A obra expõe contradições do movimento sufragista, que "privilegiaria apenas mulheres brancas das classes média e alta".


Oregon State University - Wikimedia Commons
Oregon State University - Wikimedia Commons

Mais tarde, "Are Prisons Obsolete?" (2003) questionou fundamentalmente: "o aprisionamento é a única maneira de tratar crimes e disfunções sociais?" Seu abolicionismo prisional não se limita à crítica das prisões, mas propõe "democracia da abolição" que exige transformações sociais estruturais.


Como professora na UC Santa Cruz por décadas, Davis desenvolveu perspectiva única articulando história da escravidão, análise do capitalismo racial e crítica do complexo industrial-prisional. Suas contribuições influenciam hoje políticas públicas em vários países e fundamentam estudos criminológicos críticos globalmente.


A recepção brasileira: Respeito Mútuo vs. Distorção Política


A chegada das ideias de Davis ao Brasil contradiz narrativas sobre "imperialismo intelectual americano". Desde sua primeira visita em 1997, ela demonstra respeito profundo pelo feminismo negro brasileiro, reconhecendo intelectuais como Lélia Gonzalez como pioneiras em análises que só desenvolveria posteriormente.


Em 2017, Davis declarou explicitamente: "Os Estados Unidos têm muito a aprender com o feminismo negro brasileiro". Ela citou Carolina Maria de Jesus, destacou a importância do candomblé na preservação de tradições feministas negras, elogiou a organização de empregadas domésticas baianas como exemplo de luta sindical criativa.


Deputada estadual Renata Souza (Psol), Angela Davis e Luyara Franco, filha de Marielle - Caio Oliveira
Deputada estadual Renata Souza (Psol), Angela Davis e Luyara Franco, filha de Marielle - Caio Oliveira

Os números revelam recepção extraordinária: 330 mil cópias vendidas pela Boitempo, transformação de "Mulheres, raça e classe" em leitura obrigatória em centenas de universidades, crescimento exponencial de estudos sobre interseccionalidade influenciados por sua obra.


Estudos bibliométricos mostram "aumento contínuo de textos sobre feminismo negro e interseccionalidade a partir dos anos 2010", sugerindo que "maior acesso de estudantes negros ao ensino superior e ampliação do debate público sobre interseccionalidade" geram retroalimentação sobre interesse acadêmico no tema.


A estratégia do Espantalho: Manual de desinformação


Paralelamente à recepção acadêmica respeitosa, setores conservadores brasileiros desenvolveram estratégia sofisticada de desinformação sobre Davis, especialmente intensificada durante o governo Bolsonaro.


A estratégia segue padrões identificados em estudos sobre fake news: "circulação de narrativas dúbias e/ou híbridas, produzidas com junção de fatos verídicos e falsos que resultam em narrativas imprecisas, descontextualizadas e manipuladas".


Primeira técnica: descontextualização histórica. Eventos dos anos 1970 são transplantados para 2024 como ameaças atuais. É como se participante da resistência francesa contra nazismo fosse apresentado hoje como "terrorista perigoso".


Segunda técnica: associação por proximidade. Qualquer movimento social que se inspire em suas ideias é classificado como "terrorista", dispensando análise de práticas concretas.

Terceira técnica: omissão seletiva. Ignoram-se contribuições acadêmicas, produção intelectual respeitada mundialmente, trabalho como professora universitária por décadas.

Quarta técnica: anacronismo ideológico. Usam-se medos da Guerra Fria para assustar pessoas numa época com problemas completamente diferentes.


Durante a visita de Davis ao Brasil em 2019, Bolsonaro comentou sua presença como ameaça à segurança nacional. Deputados bolsonaristas fizeram pronunciamentos sobre "infiltração comunista internacional". Sites conservadores produziram centenas de conteúdos alertando sobre "verdadeiros objetivos" de palestras acadêmicas absolutamente convencionais.


Por que Angela Davis incomoda tanto?


A análise das distorções revela que o problema não são posições políticas específicas de Davis - muito mais nuanceadas do que fazem crer -, mas o que ela representa simbolicamente: possibilidade de mulher negra ser intelectualmente sofisticada, politicamente articulada e moralmente corajosa.


Renowned/Divulgação
Renowned/Divulgação

Davis desafia estereótipos raciais e de gênero fundamentais para manutenção de hierarquias sociais tradicionais. Demonstra que pessoas historicamente marginalizadas podem produzir conhecimento de alta qualidade, influenciar debates acadêmicos internacionais, ser respeitadas por competência intelectual independentemente de origem social.


Isso é profundamente ameaçador para setores que dependem da manutenção dessas hierarquias para preservar privilégios. Se uma mulher negra que cresceu sob segregação racial pode se tornar uma das intelectuais mais respeitadas mundialmente, hierarquias raciais e de gênero não são naturais ou inevitáveis - são construções sociais questionáveis e transformáveis.


A obra de Davis mantém relevância particular para movimentos sociais contemporâneos. Como observa Patricia Hill Collins, participantes do movimento Black Lives Matter "tiveram acesso à teoria racial crítica assim como ao feminismo negro que tem sido central para desenvolvimento da interseccionalidade".


No Brasil, onde a população carcerária é a terceira maior mundial, suas contribuições sobre complexo industrial-prisional são especialmente relevantes para debater alternativas à punição como resposta à violência social.


Davis tem sido crítica consistente da ascensão de extrema-direita globalmente. Durante visitas ao Brasil, apontou "semelhanças entre governos de Bolsonaro e Trump", observando que Bolsonaro "parece se identificar com ditaduras militares".


Descolonizando o pensamento crítico


Esta investigação revela que Angela Davis representa síntese original entre marxismo dialético, teoria crítica da Escola de Frankfurt, feminismo negro e abolicionismo prisional. Sua trajetória desafia categorizações simplistas e oferece ferramentas analíticas sofisticadas para compreender articulações complexas entre capitalismo, racismo e patriarcado.


A utilização de sua figura como espantalho reflete estratégias de desinformação que buscam deslegitimar análises críticas sobre estruturas de poder. Essas distorções são particularmente perniciosas porque obscurecem contribuições teóricas relevantes para enfrentar desafios como violência policial, encarceramento em massa e múltiplas formas de opressão.


A crescente recepção acadêmica de Davis no Brasil, evidenciada pelo aumento de publicações sobre feminismo negro e interseccionalidade, demonstra vitalidade de suas contribuições para compreensão crítica da realidade brasileira. Seu diálogo respeitoso com intelectuais brasileiras como Lélia Gonzalez exemplifica abordagem decolonial ao conhecimento que reconhece produção teórica do Sul Global.


Foto: Jornal A Verdade
Foto: Jornal A Verdade

A obra de Davis oferece não apenas análises críticas de estruturas de dominação, mas horizontes utópicos para sociedades mais justas. Seu conceito de "democracia da abolição" aponta possibilidades transformadoras que transcendem limitações de sistemas punitivos atuais.


Compreender adequadamente suas contribuições - para além de caricaturas promovidas por detratores - é fundamental para fortalecer movimentos emancipatórios contemporâneos e construir alternativas aos autoritarismos que ameaçam democracias globalmente.


A trajetória de Davis demonstra que é possível articular rigor teórico e compromisso político, contribuindo simultaneamente para produção de conhecimento crítico e transformação social. Seu legado continua inspirando gerações que buscam compreender e transformar realidades de opressão persistentes nas sociedades capitalistas contemporâneas.


Desmistificar distorções sobre sua obra é tarefa fundamental para todos comprometidos com justiça social e emancipação humana. Porque, em última instância, conhecimento sério continua sendo a melhor arma contra manipulação política - e Angela Davis continua sendo um dos exemplos mais poderosos de como essa arma pode ser usada para transformar o mundo.

 
 
 
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