Martin Luther King Jr. e a “falsificação da igualdade”: como a nova direita reescreveu um legado — e por que isso importa para o Brasil até 2026
- Raul Silva

- 15 de set.
- 5 min de leitura
A frase “julgar pelo conteúdo do caráter, não pela cor da pele” virou commodity moral. Estampa murais, discursos oficiais, cards de rede social. Mas, quando a retiramos do cenário que a produziu, ela deixa de apontar para a justiça e passa a servir de escudo para manter tudo como está. Martin Luther King Jr. pronunciou essas palavras diante de um país atravessado por pobreza, violência policial e exclusão; exigiu que a promessa constitucional fosse, enfim, cumprida para quem a nação acostumara a deixar de fora. Não foi um poeta do consolo: pediu medidas concretas, uma espécie de carta de direitos para os desfavorecidos, empregos dignos, moradia, escolas que abrissem caminhos, uma reorganização material que desse substância à igualdade. O sonho era um motor, não um descanso. É por isso que, décadas depois, a operação que recorta uma única frase e a opõe a políticas de reparação não é inocente: é uma falsificação da igualdade.

Nos Estados Unidos, essa falsificação amadureceu como técnica. Ao longo dos anos, a imagem de King foi sendo polida para caber no porta-retratos da unanimidade: menos denúncia de estruturas, mais citação edificante. Já na era recente, a partir da eleição de 2016, esse processo ganhou potência institucional. A versão “daltônica” da igualdade — a que manda não ver cor para não “dividir” — reapareceu em palanques, coletivas e projetos de lei. Em estados que avançaram com normas que restringem a discussão de escravidão, segregação e racismo nas escolas, a frase de King foi convocada para justificar silenciamentos curriculares. Programas de diversidade e inclusão viraram alvos sob a acusação de “privilégio”. E, quando a corte suprema encerrou a possibilidade de considerar a raça entre os fatores de admissão universitária, parte do establishment conservador comemorou como se o sonho do pastor tivesse sido “finalmente” realizado: igualdade proclamada por decreto, como se a realidade de acesso, permanência e renda fosse apenas um detalhe. Tudo isso seduz porque nos diz o que gostaríamos de acreditar sobre nós mesmos: que já somos justos, que tratamos todos da mesma forma, que o mérito bastará. Mas seduz exatamente porque esvazia o conteúdo que dói: admitir pontos de partida desiguais e enfrentar o custo político de corrigi-los.
A retórica ganhou ecos fora do eixo norte-americano. Na Europa, líderes da extrema direita ensaiaram se vestir de King ao enfrentar reveses judiciais, buscando emprestar ao próprio projeto a aura de legitimidade moral de quem dedicou a vida à ampliação de direitos. A lógica é a mesma: usar o símbolo para abençoar uma agenda que, no cotidiano, nega as ferramentas que tornariam possível aquilo que o símbolo representa. No Brasil, esse roteiro encontrou terreno fértil durante a ascensão do bolsonarismo. A ponte se fez por eventos, redes e uma máquina de comunicação afinada com a linguagem da guerra cultural. A importação não foi só de slogans; foi de uma arquitetura de enfrentamento: taxar de “ideologia” o ensino honesto sobre racismo, renomear políticas de inclusão como “divisão”, empacotar a palavra “mérito” como passe livre para ignorar a herança do nosso apartheid informal. Em datas simbólicas, multiplicaram-se postagens de autoridades citando King para sugerir que cotas “trairiam” o seu legado. O truque é elegante: toma-se um princípio moral incontestável — ninguém deve ser julgado pela cor — e usa-se como arma para desautorizar os instrumentos que aproximam esse princípio da vida real.
O país, no entanto, andou noutra direção quando olhamos para marcos legais e dados. A lei de cotas no ensino federal foi atualizada com ajustes de renda, incorporação de quilombolas e aperfeiçoamento do mecanismo de ingresso depois de uma década de avaliação. No serviço público, a reserva foi ampliada para trinta por cento e passou a contemplar também indígenas e quilombolas, com percentuais definidos. Estudos do sistema federal de educação e de centros de pesquisa apontam diversificação do perfil socioeconômico e racial das universidades, desempenho acadêmico compatível entre cotistas e não cotistas e efeitos positivos sobre permanência quando há política de apoio estudantil. A opinião pública, medida por institutos de referência, indica maioria favorável às cotas, com debate saudável sobre desenho e fiscalização — bem diferente do que faz supor a gritaria nas redes. E, na escola básica, a legislação há duas décadas determina o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, sinalizando que encarar o passado não é um capricho, mas um dever pedagógico.
Por que, então, a falsificação da igualdade convence? A sociologia oferece chaves. O chamado “racismo daltônico” rejeita o racismo em teoria, mas bloqueia políticas que o enfrentam na prática, invocando neutralidade; e a política dos “apitos de cachorro” desloca a conversa de políticas públicas para símbolos morais, mobilizando maiorias sem parecer explicitamente racista. Nesse terreno, a citação fragmentada de King funciona como passaporte de respeitabilidade para agendas que, no concreto, esvaziam o combate a desigualdades. Ao mesmo tempo, o próprio campo dos direitos civis nos Estados Unidos reatualizou o legado por dentro: a campanha contemporânea dos Pobres recupera a trindade denunciada por King — racismo, pobreza e militarismo — como problemas entrelaçados, devolvendo densidade ao que tentaram transformar em peça de souvenir.
O Brasil entra em 2026 com uma disputa que é também narrativa. De um lado, veremos a “daltônica dois ponto zero”: mais requintada na forma, mais agressiva no efeito, embalando-se como paz social enquanto trabalha para tornar tabu o debate sobre desigualdade, renomear inclusão como privilégio e colar em “igualdade” um verniz que dispensa orçamento. Veremos, ainda, tentativas de usar o contencioso jurídico e administrativo como fábrica de manchetes que criam clima — mesmo quando caem, deixam o rastro de que “há exagero” a ser contido. E haverá a importação de símbolos: vídeos que colam a própria imagem à de King para sugerir continuidade entre a luta por direitos e um programa que, na prática, a esvazia. Do outro lado, haverá quem responda com três movimentos complementares. O primeiro é devolver contexto a cada frase: diante do “caráter”, perguntar pelo plano concreto que aproxima pontos de partida; diante da acusação de “divisão” na escola, mostrar a sala de aula que ensina a história real do país com documentos e dados; diante do ataque às cotas como injustas, lembrar que justiça que ignora origem é espelho torto. O segundo é mudar a pergunta pública: não “se inclusão divide”, mas “o que reduz desigualdade de verdade?”, “que desenho garante acesso e permanência?”, “como se presta contas e corrige rumos?”. O terceiro é narrar trajetórias com métrica: a estudante que entrou pela cota e hoje orienta outros jovens; o servidor que abriu política pública no interior esquecido; os indicadores que mostram evasão caindo, desempenho mantendo-se ou melhorando, renda avançando — histórias que, quando casadas com números, deixam de ser exceções ornamentais e viram evidência encarnada.
A resposta também passa por pontes. Comunidades de fé, trabalhadores do comércio, profissionais da segurança, professores: grupos com rotinas e códigos próprios, muitas vezes alvos preferenciais da narrativa da “igualdade confortável”. Dialogar de verdade exige falar com a vida concreta dessas pessoas: violência, emprego, escola dos filhos, orçamento doméstico. É nesse chão que se mostra que políticas de inclusão expandem carreiras e protegem famílias da insegurança econômica; que escola que ensina a história real forma cidadãos mais preparados para o respeito mútuo e o trabalho em equipe; que o Estado funciona melhor quando representa a população que atende. E nada disso dispensa a responsabilidade de quem governa: leis precisam de execução transparente, metas públicas, avaliação de resultados, correção de rota. Quando o poder público presta contas com clareza, ele retira combustível do discurso que pinta inclusão como privilégio opaco.
No fim, a pergunta decisiva não é quem cita melhor Martin Luther King, mas quem transforma a memória em política efetiva. A diferença aparece onde realmente importa: menos evasão e mais permanência; concursos com mais diversidade e melhor serviço prestado; currículo que prepara para a cidadania com honestidade histórica. A falsificação da igualdade cabe em cards e slogans. A igualdade real cabe no orçamento, no planejamento, na fiscalização — e se mede por resultados. Quando isso acontece, a frase célebre que tanto repetem recupera o que tinha de mais valioso: não um escudo para fugir do presente, mas uma bússola para caminhar dentro dele.




Comentários