top of page

A frase “julgar pelo conteúdo do caráter, não pela cor da pele” virou commodity moral. Estampa murais, discursos oficiais, cards de rede social. Mas, quando a retiramos do cenário que a produziu, ela deixa de apontar para a justiça e passa a servir de escudo para manter tudo como está. Martin Luther King Jr. pronunciou essas palavras diante de um país atravessado por pobreza, violência policial e exclusão; exigiu que a promessa constitucional fosse, enfim, cumprida para quem a nação acostumara a deixar de fora. Não foi um poeta do consolo: pediu medidas concretas, uma espécie de carta de direitos para os desfavorecidos, empregos dignos, moradia, escolas que abrissem caminhos, uma reorganização material que desse substância à igualdade. O sonho era um motor, não um descanso. É por isso que, décadas depois, a operação que recorta uma única frase e a opõe a políticas de reparação não é inocente: é uma falsificação da igualdade.


Martin Luther King Jr. - Foto: Reprodução
Martin Luther King Jr. - Foto: Reprodução

Nos Estados Unidos, essa falsificação amadureceu como técnica. Ao longo dos anos, a imagem de King foi sendo polida para caber no porta-retratos da unanimidade: menos denúncia de estruturas, mais citação edificante. Já na era recente, a partir da eleição de 2016, esse processo ganhou potência institucional. A versão “daltônica” da igualdade — a que manda não ver cor para não “dividir” — reapareceu em palanques, coletivas e projetos de lei. Em estados que avançaram com normas que restringem a discussão de escravidão, segregação e racismo nas escolas, a frase de King foi convocada para justificar silenciamentos curriculares. Programas de diversidade e inclusão viraram alvos sob a acusação de “privilégio”. E, quando a corte suprema encerrou a possibilidade de considerar a raça entre os fatores de admissão universitária, parte do establishment conservador comemorou como se o sonho do pastor tivesse sido “finalmente” realizado: igualdade proclamada por decreto, como se a realidade de acesso, permanência e renda fosse apenas um detalhe. Tudo isso seduz porque nos diz o que gostaríamos de acreditar sobre nós mesmos: que já somos justos, que tratamos todos da mesma forma, que o mérito bastará. Mas seduz exatamente porque esvazia o conteúdo que dói: admitir pontos de partida desiguais e enfrentar o custo político de corrigi-los.


A retórica ganhou ecos fora do eixo norte-americano. Na Europa, líderes da extrema direita ensaiaram se vestir de King ao enfrentar reveses judiciais, buscando emprestar ao próprio projeto a aura de legitimidade moral de quem dedicou a vida à ampliação de direitos. A lógica é a mesma: usar o símbolo para abençoar uma agenda que, no cotidiano, nega as ferramentas que tornariam possível aquilo que o símbolo representa. No Brasil, esse roteiro encontrou terreno fértil durante a ascensão do bolsonarismo. A ponte se fez por eventos, redes e uma máquina de comunicação afinada com a linguagem da guerra cultural. A importação não foi só de slogans; foi de uma arquitetura de enfrentamento: taxar de “ideologia” o ensino honesto sobre racismo, renomear políticas de inclusão como “divisão”, empacotar a palavra “mérito” como passe livre para ignorar a herança do nosso apartheid informal. Em datas simbólicas, multiplicaram-se postagens de autoridades citando King para sugerir que cotas “trairiam” o seu legado. O truque é elegante: toma-se um princípio moral incontestável — ninguém deve ser julgado pela cor — e usa-se como arma para desautorizar os instrumentos que aproximam esse princípio da vida real.


O país, no entanto, andou noutra direção quando olhamos para marcos legais e dados. A lei de cotas no ensino federal foi atualizada com ajustes de renda, incorporação de quilombolas e aperfeiçoamento do mecanismo de ingresso depois de uma década de avaliação. No serviço público, a reserva foi ampliada para trinta por cento e passou a contemplar também indígenas e quilombolas, com percentuais definidos. Estudos do sistema federal de educação e de centros de pesquisa apontam diversificação do perfil socioeconômico e racial das universidades, desempenho acadêmico compatível entre cotistas e não cotistas e efeitos positivos sobre permanência quando há política de apoio estudantil. A opinião pública, medida por institutos de referência, indica maioria favorável às cotas, com debate saudável sobre desenho e fiscalização — bem diferente do que faz supor a gritaria nas redes. E, na escola básica, a legislação há duas décadas determina o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, sinalizando que encarar o passado não é um capricho, mas um dever pedagógico.


Por que, então, a falsificação da igualdade convence? A sociologia oferece chaves. O chamado “racismo daltônico” rejeita o racismo em teoria, mas bloqueia políticas que o enfrentam na prática, invocando neutralidade; e a política dos “apitos de cachorro” desloca a conversa de políticas públicas para símbolos morais, mobilizando maiorias sem parecer explicitamente racista. Nesse terreno, a citação fragmentada de King funciona como passaporte de respeitabilidade para agendas que, no concreto, esvaziam o combate a desigualdades. Ao mesmo tempo, o próprio campo dos direitos civis nos Estados Unidos reatualizou o legado por dentro: a campanha contemporânea dos Pobres recupera a trindade denunciada por King — racismo, pobreza e militarismo — como problemas entrelaçados, devolvendo densidade ao que tentaram transformar em peça de souvenir.


O Brasil entra em 2026 com uma disputa que é também narrativa. De um lado, veremos a “daltônica dois ponto zero”: mais requintada na forma, mais agressiva no efeito, embalando-se como paz social enquanto trabalha para tornar tabu o debate sobre desigualdade, renomear inclusão como privilégio e colar em “igualdade” um verniz que dispensa orçamento. Veremos, ainda, tentativas de usar o contencioso jurídico e administrativo como fábrica de manchetes que criam clima — mesmo quando caem, deixam o rastro de que “há exagero” a ser contido. E haverá a importação de símbolos: vídeos que colam a própria imagem à de King para sugerir continuidade entre a luta por direitos e um programa que, na prática, a esvazia. Do outro lado, haverá quem responda com três movimentos complementares. O primeiro é devolver contexto a cada frase: diante do “caráter”, perguntar pelo plano concreto que aproxima pontos de partida; diante da acusação de “divisão” na escola, mostrar a sala de aula que ensina a história real do país com documentos e dados; diante do ataque às cotas como injustas, lembrar que justiça que ignora origem é espelho torto. O segundo é mudar a pergunta pública: não “se inclusão divide”, mas “o que reduz desigualdade de verdade?”, “que desenho garante acesso e permanência?”, “como se presta contas e corrige rumos?”. O terceiro é narrar trajetórias com métrica: a estudante que entrou pela cota e hoje orienta outros jovens; o servidor que abriu política pública no interior esquecido; os indicadores que mostram evasão caindo, desempenho mantendo-se ou melhorando, renda avançando — histórias que, quando casadas com números, deixam de ser exceções ornamentais e viram evidência encarnada.


A resposta também passa por pontes. Comunidades de fé, trabalhadores do comércio, profissionais da segurança, professores: grupos com rotinas e códigos próprios, muitas vezes alvos preferenciais da narrativa da “igualdade confortável”. Dialogar de verdade exige falar com a vida concreta dessas pessoas: violência, emprego, escola dos filhos, orçamento doméstico. É nesse chão que se mostra que políticas de inclusão expandem carreiras e protegem famílias da insegurança econômica; que escola que ensina a história real forma cidadãos mais preparados para o respeito mútuo e o trabalho em equipe; que o Estado funciona melhor quando representa a população que atende. E nada disso dispensa a responsabilidade de quem governa: leis precisam de execução transparente, metas públicas, avaliação de resultados, correção de rota. Quando o poder público presta contas com clareza, ele retira combustível do discurso que pinta inclusão como privilégio opaco.


No fim, a pergunta decisiva não é quem cita melhor Martin Luther King, mas quem transforma a memória em política efetiva. A diferença aparece onde realmente importa: menos evasão e mais permanência; concursos com mais diversidade e melhor serviço prestado; currículo que prepara para a cidadania com honestidade histórica. A falsificação da igualdade cabe em cards e slogans. A igualdade real cabe no orçamento, no planejamento, na fiscalização — e se mede por resultados. Quando isso acontece, a frase célebre que tanto repetem recupera o que tinha de mais valioso: não um escudo para fugir do presente, mas uma bússola para caminhar dentro dele.

 
 
 

Enquanto a governadora Raquel Lyra se apresenta como a arquiteta de um novo horizonte para Pernambuco, com discursos que beiram o lírico e a promessa de transformação radical, a realidade do estado se revela num cenário de profundo descaso e inércia. A narrativa oficial, adornada com gráficos que atestam a suposta queda nos índices de violência e melhorias na gestão dos serviços públicos, esconde o verdadeiro fado de um governo que, embora se vanglorie de ser visionário, não consegue materializar as transformações necessárias para sanar os problemas estruturais do Estado.

ree

Nas palavras ensaiadas e nos discursos carregados de metáforas e castelos de palavras, a governadora tenta pintar um quadro de progresso onde escolas se erguem, hospitais prosperam e a segurança pública alcança patamares inéditos. Porém, essa construção narrativa se desfaz diante do testemunho doloroso dos cidadãos pernambucanos. Em bairros das periferias e em centros urbanos, as escolas vêm “caindo” – não em sentido literal, mas na medida em que a infraestrutura deficiente, a falta de investimentos e a negligência sistemática transformam o ambiente escolar em um espaço de abandono e risco. Hospitais, por sua vez, que deveriam ser templos de cuidado e esperança, frequentemente deixam de atender adequadamente, refletindo uma administração que prioriza discursos retóricos em detrimento de ações concretas.

Reprodução Rede Globo
Reprodução Rede Globo

A segurança pública, um dos pilares que a gestão pretende fortalecer, torna-se, na prática, um eco distante. Os dados oficiais, muitas vezes apresentados com otimismo forçado pelo SDSPE, contrastam com o cotidiano de violência que permeia as ruas. Furtos, assaltos e crimes violentos continuam a se multiplicar, enquanto os cidadãos se veem desamparados por um aparato policial sucateado e desprovido dos recursos prometidos. Servidores públicos, por sua vez, sofrem diariamente as consequências de uma gestão improvisada, onde a retórica não se traduz em políticas eficazes e onde a promessa de uma "transformação real" permanece inalcançável.

É nesse contexto que se revela a ironia do tempo: enquanto o governo ensaia discursos de mudança e inovação, o Estado se afunda num mar de omissões e falhas históricas. Se a política fosse um poema, o governo Lyra seria uma ode inacabada – repleta de rimas bonitas e promessas sedutoras, mas desprovida do conteúdo sólido e necessário para sustentar as necessidades urgentes do povo pernambucano. Cada estatística otimista, cada declaração de sucesso, soam como um eco distante que tenta mascarar a dura verdade: a realidade é de um estado em constante derrota, onde a administração se mostra incapaz de conciliar a retórica com as demandas de um povo que clama por mudanças estruturais.

A análise que se encerra neste post não se destina apenas a retratar um cenário de críticas e frustrações, mas constitui um apelo urgente à renovação e à responsabilidade governamental. Pernambuco precisa urgentemente sair do jogo duplo das narrativas – onde palavras sedutoras mascaram uma gestão que falha em agir – e adotar uma postura de ação resoluta, pautada na transparência, na competência e no respeito aos direitos dos cidadãos e dos servidores públicos.

Para que se inicie uma transformação real, é imprescindível que a administração passe da retórica para a prática, implementando reformas estruturais que atendam às demandas crônicas de educação, saúde e segurança. É necessário investir de forma consistente na reestruturação da infraestrutura escolar, garantindo que as instituições de ensino não se convertam em espaços de risco, mas sim em ambientes que promovam o desenvolvimento e a cidadania. No setor da saúde, a urgência de reverter o descaso é sentida diariamente: hospitais que frequentemente deixam de atender com a devida qualidade devem ser revitalizados, equipados e administrados com foco na efetividade do cuidado.

No campo da segurança, a promessa de modernização dos órgãos – especialmente a Polícia Civil – precisa ser acompanhada de medidas concretas, com a destinação de recursos adequados e a implementação de políticas que verdadeiramente reduzam os índices de criminalidade. A população pernambucana, que vive diariamente sob o peso do medo e da vulnerabilidade, merece uma gestão que não se oculte por trás de números abstratos, mas que responda com ações efetivas e reparadoras.

Além disso, as vozes da sociedade, representadas pelos sindicatos, movimentos sociais e cidadãos organizados, clamam por uma administração que se baseie no diálogo e na responsabilidade. Servidores públicos, que carregam o fardo de um sistema negligente, e cidadãos, que experimentam a insegurança e a falta de serviços essenciais, precisam ser ouvidos. A renovação do Estado depende, em grande parte, de uma mudança profunda que não se resuma a discursos poéticos, mas que se materialize em políticas públicas que transformem a realidade.

É fundamental que a governança de Pernambuco reconheça a complexidade dos problemas que enfrenta e abandone o jogo duplo das narrativas ilusórias. A transformação real exige que as promessas de mudança se traduzam em investimentos palpáveis, em políticas estruturais e, sobretudo, em uma cultura de responsabilidade que ultrapasse as fronteiras dos discursos políticos. Somente assim Pernambuco poderá deixar de ser um estado em estado de derrota e emergir como um exemplo de renovação e eficiência na gestão pública.

No entrelace de palavras e promessas, o governo de Raquel Lyra se vê preso em um labirinto de ilusões e inércia – uma retórica encantadora, repleta de discursos líricos e castelos de promessas, que, no entanto, não se traduz em ações concretas para transformar o cotidiano dos pernambucanos. Enquanto a governadora se exibe como a visionária capaz de remodelar o futuro do Estado, a realidade, implacável e crua, revela um Pernambuco que, dia após dia, se afunda mais fundo no descaso e na negligência.

 
 
 

Sob a gestão de Raquel Lyra, Pernambuco tem sido palco de uma verdadeira tempestade administrativa, onde a folha de pagamento – este instrumento basilar da máquina estatal – se converte num mar revolto de erros crônicos. Servidores de todos os cantos do aparato público enfrentam, de forma contínua e implacável, descontos indevidos, a ausência de gratificações essenciais e, em casos extremos, até a suspensão integral dos salários. Dados apurados por sindicatos, como o Sintepe, indicam que desde julho de 2024 os erros se arrastam por seis meses consecutivos: cerca de 79% dos profissionais ainda não receberam o terço constitucional de férias, enquanto 13,4% têm seus vencimentos pagos abaixo do correto, e percentuais menores – porém não menos significativos – relatam a ausência de benefícios como a Gratificação da Educação Inclusiva.

Reprodução Sintepe - Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco
Reprodução Sintepe - Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco

Essa realidade, longe de ser um mero descuidado técnico, reflete uma estratégia – por vezes sutil e, em outras, abertamente agressiva – de enfraquecimento dos quadros que ousam questionar as políticas do governo. O TCE-PE, atento a cada incoerência, já recebeu inúmeras denúncias e instaurou investigações que buscam desvelar uma trama que, ironicamente, se disfarça de “limpeza” administrativa. Enquanto o governo se gaba de modernizar e depurar a máquina pública, a perseguição política se manifesta nos recortes imprecisos da folha de pagamento, convertendo o salário de cada servidor em um número truncado, como se o valor de seu trabalho fosse suscetível de ajustes arbitrários.

Nesse cenário, o servidor público – aquele que, com afinco e dedicação, contribui para a engrenagem do Estado – se vê não apenas lesado financeiramente, mas também humilhado pela própria instituição que deveria protegê-lo. A crítica é tão afiada quanto o humor sagaz que se faz necessário para enfrentar a realidade: é quase como se a administração tentasse “limpar” a máquina pública com um pincel torto, atingindo indiscriminadamente os profissionais que, ironicamente, sustentam o próprio aparato estatal.

No palco da negligência, o servidor se transforma na vítima silenciosa de uma administração que prioriza a narrativa política em detrimento da essência do serviço público. Cada erro na folha de pagamento não é somente uma falha contábil – é o reflexo de um descaso institucional que, por sua vez, corrói a qualidade dos serviços prestados à população. A constante omissão em corrigir esses equívocos cria um clima de desconfiança, um desgaste que se acumula como um pó invisível sobre a credibilidade do Estado.

Ao negligenciar os direitos básicos dos trabalhadores, o governo acaba por semear o terreno fértil da impunidade. Enquanto se exaltam em discursos de inovação e combate à corrupção, as denúncias – meticulosamente registradas por sindicatos como o Sintepe – denunciam uma realidade amarga: servidores desvalorizados, com salários que parecem flutuar num limbo de incertezas, e uma administração que, em vez de agir, parece optar por esquecer. É uma crônica de silêncio e omissão, onde cada folha errada narra a história de uma justiça adormecida, incapaz de reverter a maré de descaso que atinge a todos.

O humor rápido e irônico se mistura a uma visão quase trágica: enquanto o governo se exibe em gestos simbólicos e retóricas inflamadas, a verdadeira batalha se trava na rotina diária dos servidores, que aguardam por correções que parecem nunca chegar. Esse teatro de aparências não só fere os direitos dos trabalhadores, mas também compromete a prestação de serviços públicos essenciais, ampliando o ceticismo da população e o desgaste institucional.

 
 
 
bottom of page