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Publicado originalmente em 2018, o livro Como as Democracias Morrem, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, adquire renovado vigor interpretativo no contexto político de 2025, não apenas como análise retrospectiva, mas como instrumento de leitura crítica do presente. A obra, ancorada na análise densa do cenário político norte-americano contemporâneo — em particular, a ascensão e consolidação de Donald Trump —, transcende sua matriz empírica inicial para se afirmar como uma referência teórico-analítica indispensável à compreensão das transformações institucionais e da deterioração normativa que têm afetado regimes democráticos em diferentes geografias e escalas de poder.


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A tese central rompe com o modelo teleológico clássico segundo o qual as democracias se encerram abruptamente mediante a ação de forças externas ou golpes militares. Em lugar disso, Levitsky e Ziblatt propõem a ideia de um declínio incremental, operacionalizado por meio de processos formais — eleições, nomeações, reformas legais — conduzidos por líderes que, embora legitimados pelo sufrágio, se dedicam à corrosão paulatina das salvaguardas constitucionais e das normas informais que sustentam o pacto democrático. A substituição simbólica do tanque pelo tweet, da censura explícita pela desqualificação sistemática da imprensa, da ruptura legislativa pelo esvaziamento deliberado do Congresso, constitui um repertório de práticas que delineiam o modus operandi do autoritarismo do século XXI.


A estrutura analítica da obra articula-se a partir de quatro vetores que funcionam como indicadores de propensão autocrática: a rejeição das regras do jogo democrático; a negação da legitimidade dos adversários políticos; a tolerância — ou mesmo o estímulo — à violência contra opositores; e a disposição para restringir liberdades civis fundamentais. Essa tipologia, fundamentada na análise empírica de múltiplos contextos — da Venezuela de Hugo Chávez à Hungria de Viktor Orbán, passando pela Turquia de Erdogan e os próprios Estados Unidos sob a égide trumpista —, permite inferir a existência de um padrão transnacional de degradação institucional, calcado na naturalização progressiva de abusos de poder e no enfraquecimento das garantias democráticas.


No ano de 2025, a atualidade da obra se intensifica. A volta de Trump à presidência dos Estados Unidos opera como catalisador da transnacionalização da lógica autoritária delineada por Levitsky e Ziblatt. A convergência entre o trumpismo e o bolsonarismo evidencia a capacidade de adaptação e reconfiguração desses movimentos segundo padrões compartilhados de captura institucional, mobilização emocional e manipulação informacional. Embora o Brasil não seja objeto direto da análise dos autores, o país figura, hoje, como uma extensão quase experimental do arcabouço teórico desenvolvido na obra. A transformação do bolsonarismo em apêndice regional do trumpismo demonstra o caráter replicável dessas formas de poder autoritário.


Nesse cenário, o Brasil se vê no epicentro de uma ofensiva que conjuga desinformação industrializada, aparelhamento institucional, e submissão diplomática. As articulações para anistiar Jair Bolsonaro, as reiteradas tentativas de enfraquecer o Supremo Tribunal Federal, os constantes ataques ao sistema eleitoral, e a atuação internacional de Eduardo Bolsonaro como representante informal da extrema-direita global, compõem uma constelação de práticas que mantém a arquitetura democrática apenas como fachada. Trata-se de uma simulação institucional, em que os dispositivos legais permanecem, mas seu conteúdo normativo é manipulado para fins autocráticos, transformando o Estado em instrumento de revanche ideológica.


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No plano internacional, Trump emprega o poder geopolítico dos Estados Unidos como ferramenta de coerção, exigindo realinhamentos estratégicos de países considerados periféricos. A pressão para que o Brasil abandone o BRICS, por exemplo, revela a dimensão sistêmica do novo autoritarismo: ele não se contenta com a domesticação da política interna, mas exige a remodelação da ordem mundial sob a lógica do unilateralismo coercitivo. A política externa brasileira, subordinada a interesses de clãs familiares e influências estrangeiras, configura uma ruptura grave com os princípios da autodeterminação dos povos e da soberania nacional, conforme consagrados no direito internacional e no arcabouço constitucional brasileiro.


Como as Democracias Morrem impõe-se, nesse contexto, como um dispositivo de resistência teórica e prática. Ao enfatizar que a resiliência democrática não se assenta exclusivamente sobre a robustez das instituições, mas depende do compromisso normativo dos atores políticos e da vigilância ativa da sociedade civil, Levitsky e Ziblatt reconvocam a tradição republicana como horizonte de engajamento cívico. A democracia, afirmam os autores, sobrevive não pela inércia, mas pelo exercício constante da moderação, da responsabilidade institucional e do respeito à pluralidade. Quando essas virtudes são abandonadas em nome do poder, abre-se o caminho para a erosão das liberdades públicas.


Ao longo de sua exposição, os autores demonstram como a fronteira entre regimes democráticos e autocráticos se torna fluida em contextos de polarização extrema. Essa fluidez se manifesta, entre outros sintomas, pela conversão do dissenso em ameaça, pela substituição do adversário pelo inimigo, e pela normalização de mecanismos excepcionais de governo. No Brasil contemporâneo, essa descrição adquire contornos alarmantes: a descredibilização das urnas, a tentativa de cooptação do Judiciário, e a permanente tensão institucional entre poderes constituídos sugerem que o país atravessa um processo de inflexão democrática cuja reversibilidade depende, em larga medida, da mobilização cidadã e da firmeza das instituições ainda resistentes à captura.


A obra de Levitsky e Ziblatt, assim, transcende sua condição de análise empírica do caso norte-americano para se converter em uma gramática de resistência. Seu valor não está apenas no diagnóstico preciso, mas na oferta de um léxico crítico para a nomeação das práticas autoritárias que se escondem sob a roupagem da legalidade. O alerta não é panfletário, nem especulativo. É resultado de um esforço de sistematização teórica, com base em décadas de pesquisa e na observação comparada de regimes políticos em múltiplas latitudes.


Como as Democracias Morrem deveria ser leitura obrigatória não apenas em universidades e centros de pesquisa, mas em todos os espaços em que se pensa e se decide o futuro da vida coletiva. Compreender os sinais de erosão democrática não é um luxo acadêmico — é uma necessidade vital. A democracia não se desfaz em um único gesto: ela é minada em processos silenciosos, legitimados por pactos oportunistas e pela passividade de quem assiste. Levitsky e Ziblatt nos convocam, com precisão e coragem, a romper esse silêncio. Porque o silêncio, nesses tempos, é cúmplice. E essa convocação, hoje, não poderia ser mais urgente.



 
 
 
  • Foto do escritor: Raul Silva
    Raul Silva
  • 19 de jul.
  • 7 min de leitura

Um mergulho crítico na Pedagogia do Oprimido e na construção da imagem do “inimigo número um da educação” pela extrema-direita brasileira


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No cenário político brasileiro contemporâneo, poucos nomes concentram tanta controvérsia quanto o de Paulo Freire. Elevado ao posto de Patrono da Educação Brasileira em 2012, sua obra é reconhecida internacionalmente, traduzida em mais de 30 idiomas, discutida em universidades de referência e aplicada em projetos pedagógicos de transformação social em países como Moçambique, Nicarágua, Finlândia e África do Sul. Contudo, no Brasil — o mesmo país que lhe concedeu reconhecimento oficial —, Freire é frequentemente reduzido a um símbolo caricatural de doutrinação ideológica. 


A origem de uma pedagogia para libertar


Paulo Freire nasceu no Recife em 1921, num Brasil marcado pela desigualdade estrutural e pela exclusão sistemática das classes populares do processo educativo formal. A experiência direta com a fome, o analfabetismo e a marginalização social moldou sua visão de mundo e sua ética pedagógica. Desde cedo, compreendeu que o acesso à palavra escrita e à leitura crítica era também acesso ao mundo — e, por consequência, às possibilidades de transformação social. Seu trabalho nos anos 1950 e 60 com alfabetização de adultos, especialmente no Nordeste brasileiro, levou à criação de uma pedagogia fundamentada no diálogo, na escuta ativa e na transformação da realidade a partir da consciência crítica. Essa pedagogia não era uma mera técnica de ensino, mas uma filosofia política comprometida com a dignidade humana.


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Sua principal obra, Pedagogia do Oprimido (1968), escrita durante o exílio após o golpe militar de 1964, propõe uma educação centrada na conscientização — um processo dialético em que o indivíduo deixa de ser objeto e passa a ser sujeito da história. A crítica à “educação bancária”, que trata o aluno como um recipiente passivo a ser preenchido por um conteúdo unilateral, é substituída por uma pedagogia do diálogo, em que professor e estudante se reconhecem mutuamente como inacabados, em constante processo de construção e reconstrução do saber. O objetivo não é “ensinar conteúdos”, mas criar condições para que o educando possa ler o mundo, compreendê-lo e agir sobre ele.


Freire propõe uma revolução epistemológica na relação entre educador e educando, abandonando o modelo vertical e hierarquizado de ensino para propor um processo horizontal, fundado na escuta e na problematização do cotidiano. A pedagogia freireana, portanto, não é um método fechado, mas um gesto político e epistêmico. Trata-se de pensar a educação como prática da liberdade, como intervenção no mundo — e não como adaptação resignada a ele. Isso implica romper com estruturas autoritárias, patriarcais, coloniais e elitistas. Implica, também, reconhecer que toda educação carrega em si um projeto de mundo, e que a pretensa neutralidade, nesse contexto, é apenas o nome dado à adesão silenciosa à ordem vigente.


A construção do espantalho: do educador ao “doutrinador”


É nesse ponto que a figura de Freire se torna profundamente incômoda para determinados setores políticos e econômicos. Uma pedagogia que forma sujeitos críticos, capazes de problematizar a realidade social, é incompatível com modelos autoritários que se sustentam na obediência, na repetição e na despolitização do conhecimento. Ao contrário da falsa premissa de que Freire defendia a doutrinação, sua proposta é justamente antitética à imposição de ideias: ela parte do diálogo com a realidade vivida pelo educando, da leitura do mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Como afirmou em diversas entrevistas, “doutrinar é exatamente o oposto do que proponho”.


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Contudo, a partir dos anos 2000, especialmente com a ascensão de grupos como o movimento Escola Sem Partido, a figura de Paulo Freire passou a ser ressignificada por setores conservadores como símbolo máximo de uma suposta infiltração ideológica nas escolas. Essa narrativa ganhou contornos mais explícitos com a ascensão de Olavo de Carvalho como ideólogo da nova direita brasileira. Misturando teorias conspiratórias sobre “marxismo cultural”, revisionismo histórico e anticomunismo difuso, Olavo resgatou interpretações distorcidas da pedagogia freireana para sustentar a tese de que o sistema educacional brasileiro estaria sendo dominado por uma agenda gramsciana disfarçada de projeto pedagógico.


Freire, então, deixou de ser lido e passou a ser instrumentalizado como inimigo interno. Tornou-se um emblema a ser combatido nos discursos de campanha, nas falas ministeriais e nas redes sociais, sobretudo durante e após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A promessa de “expurgar Paulo Freire das escolas” foi um dos motes centrais da plataforma de governo bolsonarista, sustentada por vídeos virais, memes descontextualizados, frases apócrifas e uma mobilização coordenada de fake news em grupos de WhatsApp e canais de YouTube ligados à extrema-direita.


O mais grave, no entanto, é que essa construção não se deu por engano ou ignorância, mas por conveniência política. O chamado “espantalho freireano” foi erguido como parte de um projeto ideológico que visa substituir a escola crítica por uma escola conformista, esvaziada de pensamento e servil às pautas morais e econômicas da nova direita brasileira — pautas que incluem o revisionismo da ditadura militar, o negacionismo científico, a cruzada contra a discussão de gênero, o ataque ao movimento negro e a defesa de um nacionalismo cristão autoritário. O ataque a Freire é, portanto, apenas a face mais visível de um projeto mais amplo de apagamento da educação como ferramenta de emancipação social.


O que está em jogo: a pedagogia do silêncio


A guerra contra Paulo Freire, portanto, não é uma mera disputa de ideias sobre métodos pedagógicos. Ela é sintoma de algo maior: a recusa ao pensamento crítico como princípio educativo. A ofensiva contra a pedagogia freireana é, na verdade, uma ofensiva contra qualquer forma de educação que se proponha a formar cidadãos e não apenas trabalhadores dóceis. Quando se combate Freire, combate-se o direito de o aluno perguntar, de o professor propor caminhos fora do currículo engessado, de a escola ser um espaço de leitura do mundo — e não apenas de reprodução de conteúdos.


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E aqui reside o núcleo do problema. O que incomoda não é Freire em si, mas o que ele representa: a possibilidade de uma escola pública que emancipa, que forma sujeitos capazes de pensar contra os consensos impostos. Uma escola que, ao invés de formar para o mercado, forma para a vida em sociedade. Que questiona os privilégios, que desafia os dogmas, que não se curva ao poder — seja ele político, religioso ou econômico. Nesse sentido, Freire se torna não um doutrinador, mas um libertador — e exatamente por isso se torna perigoso para os que querem manter tudo como está.


A tentativa de apagar Freire é também a tentativa de apagar um horizonte possível de educação democrática. Uma educação que não se define apenas por resultados em exames internacionais ou por índices de produtividade, mas pela capacidade de formar sujeitos éticos, sensíveis, críticos e comprometidos com a transformação do mundo. Uma educação que reconhece que ensinar não é domesticar, mas libertar. Que compreende que toda prática pedagógica é, em última instância, um ato político — e que negar essa dimensão é entregar a formação das novas gerações às forças que lucram com a ignorância e o conformismo.


a permanência de uma pedagogia insubmissa


Diante do cenário atual, é urgente recuperar Paulo Freire não como fetiche ou mito, mas como pensador radicalmente comprometido com a justiça, a dignidade e a transformação social. Ler Freire hoje é um ato de resistência, não contra um governo ou partido específico, mas contra um projeto de sociedade que privilegia a apatia política, a desinformação e a indiferença diante das desigualdades. Sua pedagogia continua viva em cada sala de aula onde o diálogo é valorizado, onde o conhecimento é construído coletivamente, onde a escuta ativa é tão importante quanto a transmissão de conteúdo. Freire sobrevive onde há professores que recusam o papel de meros reprodutores de currículo e se afirmam como agentes históricos, capazes de intervir, transformar e humanizar a experiência educativa.


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No Brasil — um país marcado por uma desigualdade educacional histórica, onde 33 milhões de pessoas voltaram à insegurança alimentar, em que a evasão escolar cresce principalmente nas periferias urbanas e zonas rurais, onde professores são submetidos a censura institucional, violência simbólica e ameaças físicas e morais —, seguir Paulo Freire é, paradoxalmente, resistir à acusação de doutrinação. É insistir na radicalidade da esperança, como ele próprio definia. É defender que a educação pode e deve ser libertadora. Uma educação que, como ele escreveu, é “ato de amor, e por isso, ato de coragem”. E também um ato de justiça social, porque se recusa a naturalizar as estruturas de opressão que silenciam vozes, restringem horizontes e destroem o futuro de gerações inteiras.


Freire não propõe uma utopia ingênua. Ele oferece um projeto ético e político de formação que reconhece o ser humano como sujeito de direitos, de história e de cultura. Em tempos de ataques à liberdade de cátedra, ao pluralismo de ideias e à escola pública, seu pensamento se torna ainda mais necessário. Não se trata de erigir um altar ao patrono da educação brasileira, mas de resgatar a atualidade e a potência transformadora de seu legado. Ele continua sendo um guia para aqueles que acreditam que ensinar é um gesto de compromisso com a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática.


A resposta à pergunta que dá título a este artigo, portanto, não é ambígua nem relativizável. Freire não foi — e nunca será — doutrinador. Freire é, por essência, libertador. E é exatamente por isso que ele continua sendo temido por aqueles que se alimentam da ignorância como projeto de poder. Porque uma sociedade que pensa é uma sociedade que resiste. Uma sociedade que lê o mundo é uma sociedade que não aceita calar-se diante da injustiça. E uma educação que liberta é, sempre, o primeiro passo para o fim de qualquer tirania. Defender Paulo Freire hoje é defender o direito de sonhar com um país onde o conhecimento não seja mercadoria, mas um bem comum. Onde educar não seja apenas preparar para o trabalho, mas formar para a cidadania, para a convivência e para a emancipação coletiva.


Referências: Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, 1968); Dermeval Saviani (Escola e Democracia, 1983); Miguel Arroyo (Ofício de Mestre, 2000); entrevista de Freire à Folha de S. Paulo (1987); Dicionário Paulo Freire (org. Walter Kohan); DW Brasil (2021); Intercept Brasil (2019); documentos do Escola Sem Partido; estudos de Daniel Cara, Gaudêncio Frigotto, Nita Freire, Henry Giroux, Noam Chomsky, e outros.


 
 
 

Como “1984” e “A Revolução dos Bichos” foram apropriados pela nova direita para atacar a esquerda — e por que isso é uma distorção


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Dizer que “estamos vivendo em 1984” se tornou uma das frases mais repetidas nas redes sociais e nos discursos públicos da nova direita, tanto no Brasil quanto em outros contextos ocidentais. Essa frase, que parece carregar um alerta legítimo, é frequentemente esvaziada de conteúdo e instrumentalizada de forma estratégica por discursos que, ironicamente, reproduzem as práticas que Orwell denunciava com veemência.


A obra de George Orwell, especialmente 1984 e A Revolução dos Bichos, foi ressignificada nas últimas décadas por vozes que buscam instrumentalizar sua crítica ao totalitarismo para sustentar narrativas antiprogressistas, anti-intelectuais e, muitas vezes, francamente antidemocráticas. Esse processo de apropriação simbólica, embora eficaz do ponto de vista retórico e midiático, constitui uma grave distorção — não apenas da obra de Orwell, mas de seu pensamento político, de sua trajetória pessoal e do contexto histórico em que produziu seus textos, especialmente no período pós-guerra. Para além do erro de leitura, estamos diante de uma operação ideológica que transforma um autor engajado em liberdade crítica num estandarte vazio e moldável ao sabor de interesses reacionários.


Orwell, nascido Eric Arthur Blair, foi um socialista democrático convicto. Sua filiação ao Partido Trabalhista Independente e sua atuação voluntária na Guerra Civil Espanhola ao lado do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), onde chegou a ser ferido em combate, não deixam margem para dúvidas quanto ao seu alinhamento político e sua coragem intelectual. Em seu célebre ensaio Por Que Escrevo, Orwell afirma categoricamente:


“Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático.”

Essa frase, muitas vezes esquecida ou propositalmente omitida por seus detratores, é essencial para compreender a natureza de sua crítica. A crítica ao autoritarismo — seja ele de origem comunista, fascista ou capitalista — nunca foi, portanto, uma rejeição da esquerda em si, mas uma denúncia das formas como ideologias podem ser pervertidas quando se tornam dogmas e instrumentos de dominação. Não há espaço, em sua obra, para um niilismo político que iguale todas as formas de poder ou para um cinismo reacionário que instrumentalize sua denúncia como arma contra qualquer pensamento progressista.


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A nova direita, no entanto, sobretudo em sua expressão digital e memética, descontextualizou essa crítica e a reconverteu em ataque direto à esquerda como um todo. Como apontam estudiosos como Alex Woloch (Universidade de Stanford), John Rodden (autor de A Política da Reputação Literária) e Dorian Lynskey (autor de O Ministério da Verdade), Orwell foi convertido em símbolo conservador por meio de um processo de simplificação extrema e recorte seletivo.


Elementos como o Grande Irmão, o duplipensar e o Ministério da Verdade passaram a ser empregados como metáforas vagas para tudo aquilo que incomoda a sensibilidade da direita contemporânea: políticas públicas inclusivas, regulação da mídia, ações afirmativas, universidades, imprensa investigativa e movimentos sociais. Essa instrumentalização retórica se baseia em slogans fáceis, que dispensam leitura aprofundada e promovem uma falsa equivalência entre vigilância estatal e qualquer tipo de política pública progressista. E ao fazer isso, apagam-se os contextos históricos específicos que alimentaram as obras de Orwell, criando uma leitura superficial, despolitizada e profundamente anacrônica.


O que se vê, portanto, não é um esforço honesto de interpretação, mas sim uma estratégia deliberada de distorção. Essa apropriação não acontece apenas no plano simbólico, mas se traduz em práticas discursivas concretas: influenciadores bolsonaristas no Brasil, militantes da direita alternativa nos Estados Unidos e colunistas de extrema-direita europeus invocam Orwell como “patrono” da resistência conservadora contra o que chamam de “totalitarismo cultural da esquerda”.


Em fóruns como 4chan, Reddit, Gab, X (antigo Twitter) e outros espaços digitais, memes com frases retiradas de 1984 ilustram supostos abusos do “globalismo”, da “ideologia de gênero” e do “marxismo cultural” — expressões que, por si só, já operam como categorias fantasmáticas de uma guerra cultural paranoica e infundada. Esses memes são muitas vezes acompanhados de ilustrações que transformam Orwell em uma figura quase mitológica da liberdade individual, ignorando deliberadamente suas posições socialistas e seu compromisso com a justiça social. Esse processo cria uma espécie de fetichização do autor, que passa a existir mais como imagem do que como pensamento, como símbolo vazio do que como autor complexo.


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Mas há um problema central nessa leitura: Orwell nunca foi um libertário no sentido contemporâneo da palavra. Ele não defendia um Estado mínimo nem era contrário à ação estatal como promotora de igualdade e justiça social. Sua crítica à burocratização da vida e à manipulação ideológica visava salvaguardar o projeto democrático e igualitário da esquerda, não destruí-lo. A sua adesão ao socialismo democrático exigia a liberdade de imprensa, a transparência do discurso público e a autonomia da consciência individual — elementos que, aliás, são sistematicamente atacados pelos mesmos grupos que hoje se declaram “herdeiros” de Orwell. Sua crítica ao stalinismo jamais significou uma rejeição do socialismo; era, antes, um alerta sobre os riscos de sua degeneração autoritária. Orwell se opunha ao totalitarismo como forma de dominação baseada na mentira, na reescrita da história e na aniquilação da subjetividade humana — exatamente o que certos setores da nova direita têm promovido sob o manto de um anticomunismo reativo e dogmático.


A leitura orwelliana da nova direita também apaga outro aspecto crucial: a crítica à linguagem como ferramenta de poder. O conceito de “novilíngua” não se refere a mudanças linguísticas progressistas nem à busca por linguagem inclusiva, mas à destruição sistemática da complexidade vocabular para empobrecer o pensamento e domesticar a dissidência. Ao confundir propostas de justiça linguística com censura orwelliana, a nova direita inverte completamente o eixo da crítica de Orwell — um verdadeiro exemplo contemporâneo do duplipensar que ele tão agudamente denunciou.


É importante destacar, como argumenta o linguista David Crystal, que as tentativas de controlar a linguagem não são exclusividade de regimes progressistas, mas uma prática comum de qualquer governo autoritário que busca moldar a realidade pela imposição de palavras. O que Orwell denunciava era a imposição de um vocabulário mínimo, que apagava significados e limitava a imaginação — algo que se repete hoje em campanhas que tentam interditar termos como “racismo estrutural”, “feminicídio” ou “patriarcado”, acusando-os de serem expressões da “ideologia”.


É nesse ponto que a apropriação simbólica se torna uma forma de violência intelectual. Como afirmou a pesquisadora Helen Nissenbaum, especialista em ética da tecnologia e vigilância, a linguagem orwelliana foi esvaziada ao ponto de se tornar um “emblema vazio, útil a qualquer projeto ideológico que queira parecer subversivo”. O problema não está apenas em citar Orwell de forma superficial — está em reconfigurar seu legado para servir a um projeto político que ele combatia frontalmente. O uso distorcido de sua obra se converte em arma de guerra cultural, apagando sua complexidade crítica e transformando-o em instrumento de propaganda. A violência não está apenas na leitura errada, mas no fato de que ela substitui o pensamento crítico por slogans que reduzem, empobrecem e deseducam.


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E o caso brasileiro merece atenção especial. Desde as manifestações de 2013 até o bolsonarismo militante nas redes sociais, 1984 passou a ser citado como justificativa para ataques ao sistema educacional, à imprensa e às instituições democráticas. Professores universitários foram acusados de “doutrinação ideológica” sob a alegação de que estariam implantando uma realidade “orwelliana”.


Não se trata de simples ignorância interpretativa. Trata-se de uma campanha sistemática de deslegitimação da crítica e da complexidade, substituídas por slogans fáceis, memes simplistas e analogias desonestas. A frase “quem controla o passado, controla o futuro” passou a ser utilizada para justificar revisionismos históricos, enquanto a denúncia do Ministério da Verdade se converteu em ferramenta para desacreditar agências de checagem e veículos jornalísticos tradicionais. Orwell é invocado para atacar quem denuncia notícias falsas — uma ironia que, se não fosse trágica, seria absurda.


Ao fim, o que se revela é que George Orwell foi vítima de um sequestro semântico. Seu nome e suas obras foram instrumentalizados não por afinidade ideológica, mas por sua força simbólica. Como lembra Raymond Williams, crítico marxista britânico, Orwell era uma das vozes mais honestas de sua geração exatamente por se recusar a aceitar dogmas — inclusive os do seu próprio campo. Sua coragem estava na crítica implacável e autônoma, não na adesão cega a qualquer ideologia. Descontextualizar Orwell é, portanto, apagar o seu maior ensinamento: que a linguagem precisa ser clara, que a verdade precisa ser defendida, e que a liberdade só existe onde há espaço para pensar criticamente — mesmo contra as conveniências do seu próprio lado.


Orwell não era um mascote da direita. Era um pensador livre. E resgatar seu legado exige mais do que citações: exige leitura, contexto, crítica e, sobretudo, responsabilidade — especialmente num mundo em que a manipulação do discurso é cada vez mais sofisticada e amplificada por algoritmos e bolhas informacionais. Defender Orwell, hoje, é recusar o uso estratégico de sua obra como fetiche ideológico. É, em última instância, fazer da leitura um ato de resistência e da crítica literária um gesto profundamente político — capaz de atravessar a superfície dos memes e desvelar as estruturas de poder que se escondem por trás da linguagem.

 
 
 
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