Onde estava a jurisprudência de Fux no julgamento de Lula? A contradição jurídica entre Punitivismo e Garantismo
- Raul Silva

- 10 de set.
- 7 min de leitura
IN FUX WE TRUST | A pergunta "onde estava a jurisprudência de Fux no julgamento de Lula?" expõe uma das contradições mais gritantes na atuação de um ministro do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. A análise comparativa entre os votos de Luiz Fux nos casos envolvendo Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro revela não apenas uma mudança radical de postura jurídica, mas questiona fundamentalmente os critérios que orientam a aplicação da justiça no Brasil quando os réus pertencem a espectros políticos opostos.

O Fux Punitivista: rigor implacável contra Lula
Em 4 de abril de 2018, durante uma das sessões mais tensas da história do STF, Fux votou categoricamente contra a concessão do habeas corpus preventivo a Lula, contribuindo para o placar de 6 votos a 5 que autorizou a prisão do ex-presidente. Seu voto foi técnico, direto e implacável.
"A presunção de inocência cessa a partir do momento em que, através de decisão judicial, se considera o paciente culpado. Um acordão condenatório, que não é ilegal, que não é injusto, assenta de forma inequívoca a culpa do réu", declarou Fux, estabelecendo uma interpretação restritiva do princípio constitucional da presunção de inocência.
Para Fux, à época, o dispositivo constitucional que prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado "não tem nada a ver com a prisão, absolutamente nada a ver com a prisão". O ministro foi enfático:
"Esse dispositivo não tem a menor vinculação com a execução provisória de segunda instância".
O aspecto mais revelador do voto de Fux contra Lula foi sua justificativa baseada na "legitimidade democrática" da prisão em segunda instância.
"O Supremo fixou tese jurídica de que presunção de inocência não inibe execução provisória da pena. Essa interpretação passou a usufruir de legitimidade democrática das decisões judiciais", argumentou.
Fux foi além, afirmando que a interpretação literal da Constituição sobre presunção de inocência:
"só tem um resultado: levar o Judiciário a níveis alarmantes de insatisfação perante os destinatários das nossas decisões". Para ele, "quando estão em jogo questões morais, razões de ordem pública, é preciso saber o que a sociedade pensa disso".
A postura rigorosa de Fux não se limitou ao caso Lula. Durante o julgamento do Mensalão em 2012, ele foi um dos ministros mais alinhados ao relator Joaquim Barbosa, votando sistematicamente pela condenação dos réus.
No Mensalão, Fux condenou:
12 réus ligados a partidos da base aliada por lavagem de dinheiro, corrupção passiva e formação de quadrilha
José Dirceu, José Genoíno e outros líderes petistas por formação de quadrilha, afirmando que houve "um projeto delinquencial" que durou mais de dois anos
João Paulo Cunha e Henrique Pizzolato por peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro
Marcos Valério e seu grupo por corrupção ativa e peculato
Durante a Lava Jato, Fux manteve o perfil rigoroso, defendendo a operação até mesmo após as revelações da Vaza Jato. "Ninguém pode esquecer o que ocorreu no Brasil, no mensalão, na Lava Jato", declarou em junho de 2022, complementando:
"Cada ato de corrupção é um colégio que fica sem merenda para as crianças. Cada ato de corrupção é um hospital sem leito".
A metamorfose Garantista: Fux no caso Bolsonaro
A transformação de Fux tornou-se evidente em 2025, especialmente nos casos relacionados ao 8 de janeiro e à trama golpista. "Confesso que em determinadas ocasiões me deparo com uma pena exacerbada", admitiu Fux durante sessão da Primeira Turma, sinalizando sua nova filosofia jurídica.
O caso mais emblemático foi o de Débora dos Santos, condenada por Alexandre de Moraes a 14 anos por pichar "perdeu, mané" na estátua da Justiça. Fux pediu vista e propôs apenas um ano e seis meses de reclusão. "Dosimetria não é matemática. A dosimetria exige equidade, exige humanidade", declarou, estabelecendo uma filosofia diametralmente oposta à que aplicou no caso Lula.
No julgamento da trama golpista, Fux tem sistematicamente divergido de Alexandre de Moraes:
Competência: Defende que o julgamento deveria ocorrer no plenário completo, não na Primeira Turma
Delação de Mauro Cid: Questiona a "liberdade psíquica" do delator
Medidas Cautelares: Foi o único a votar contra a tornozeleira eletrônica de Bolsonaro
Dosimetria: Propõe penas mais brandas, seguindo uma "filosofia humanizada"
"Dosimetria não é aritmética, não há critérios matemáticos para fixação da pena. Por isso que juízes não podem ser substituídos por inteligência artificial, porque, se fosse matemática, teríamos, nesse mundo caótico, julgamentos destituídos de análise equânime, humana", declarou Fux no voto sobre Dino.
Esta declaração contrasta frontalmente com sua posição no caso Lula, quando afirmou que "um acordão condenatório assenta de forma inequívoca a culpa do réu", sem espaço para "análise equânime, humana".
Critérios jurídicos ou políticos?
Em 2018, Fux justificou a prisão de Lula com base na "legitimidade democrática" da decisão, argumentando que o STF deveria considerar "o que a sociedade pensa" sobre questões morais. Contudo, em 2025, diante de um contexto em que parte significativa da sociedade demanda punição rigorosa aos golpistas, Fux adota postura oposta, defendendo "humanidade" e "equidade" na dosimetria.
A contradição mais gritante reside na interpretação da presunção de inocência:
No caso Lula (2018):
"A presunção de inocência cessa quando se considera o paciente culpado"
"Esse dispositivo não tem nada a ver com a prisão"
No caso Bolsonaro (2025):
"Dosimetria exige equidade, exige humanidade"
Questiona provas e delações com base em garantias constitucionais
Defende análise "humana" de cada caso específico
Fux, que em 2018 afirmou que "a jurisprudência do tribunal tem que ser íntegra, estável", em 2025 adota postura que contradiz frontalmente seus próprios precedentes. Especialistas questionam essa mudança. "É um juiz que tem um histórico punitista e, neste caso, tem adotado posturas mais garantistas", observa o criminalista Fábio Tofic Simantob.
As tentativas de justificativa
Defensores da mudança de Fux argumentam que se trata de uma "evolução" natural, um "ajuste para evitar erros do passado". Segundo esta interpretação, "há quem veja nessa mudança um ajuste para evitar erros do passado, quando seu rigor no Mensalão e na Lava Jato foi celebrado por parte da população, mas criticado por juristas que apontaram punitivismo e fragilidades técnicas".
A interlocutores, Fux tem afirmado que sua postura atual representa um "exercício de moderação necessário ao STF". Contudo, esta justificativa não explica por que tal "moderação" não foi aplicada no caso Lula, que também enfrentava um contexto de polarização política extrema.
Analistas apontam que a aproximação de Fux com Bolsonaro durante sua presidência do STF (2020-2022) pode ter influenciado sua mudança de postura. "A aproximação se iniciou em 2020, quando Fux presidia a Corte; e Bolsonaro, o País. Os laços se consolidaram neste ano, a partir dos contrapontos apresentados pelo ministro ao colega Alexandre de Moraes".
A crítica jurídica: onde estava a jurisprudência?
A principal crítica à atuação de Fux reside na ausência de critérios técnicos consistentes que justifiquem a mudança radical de postura. No caso Lula, aplicou interpretação restritiva de garantias constitucionais; no caso Bolsonaro, defende interpretação ampla das mesmas garantias.
O princípio da isonomia, base do Estado de Direito, exige que casos similares recebam tratamento similar. A diferença de tratamento entre Lula e Bolsonaro por parte de Fux levanta questionamentos sérios sobre a imparcialidade judicial.
"O ministro Luiz Fux é, na composição atual, o que menos concede ordens em habeas corpus, por exemplo", observa o ex-defensor público federal Caio Paiva, destacando o histórico restritivo de Fux em questões de garantias individuais.
A mudança radical de postura de Fux compromete a legitimidade institucional do STF, alimentando narrativas de que a Corte aplica "pesos e medidas" diferentes conforme a orientação política dos réus.
A dimensão política da contradição
A mudança de Fux não passou despercebida pelos grupos políticos. Durante a Lava Jato, o slogan "In Fux We Trust" (No Fux, nós confiamos) era popular entre apoiadores da operação. Em 2025, "o slogan chegou a ser reabilitado por lideranças de direita" devido às suas divergências com Moraes.
A contradição de Fux contribui para a percepção pública de que existe "justiça seletiva" no STF, onde réus de esquerda recebem tratamento mais rigoroso que réus de direita. Esta percepção mina a credibilidade das instituições democráticas.
A mudança de postura de Fux alimenta a polarização política, fornecendo argumentos tanto para críticos quanto para defensores do STF. Grupos de esquerda apontam a contradição como prova de parcialidade; grupos de direita celebram a "moderação" do ministro.
A mudança de Fux tem gerado tensões na Primeira Turma. Durante a sessão de terça-feira, ele criticou intervenções de colegas, evidenciando seu desconforto com a dinâmica estabelecida. Moraes reagiu firmemente: "Esse aparte foi pedido a mim, não a Vossa Excelência".
A postura divergente de Fux, embora legítima do ponto de vista processual, tem impacto na colegialidade do tribunal. "Ainda que represente uma posição minoritária no STF sobre os processos do golpe, a expectativa é que os votos de Fux continuem fixando um contraponto às discussões".
A jurisprudência perdida
A pergunta "onde estava a jurisprudência de Fux no julgamento de Lula?" não tem resposta técnica satisfatória. A análise comparativa demonstra que os critérios aplicados pelo ministro em cada caso são diametralmente opostos, sem justificativa jurídica consistente.
No caso Lula:
Interpretação restritiva da presunção de inocência
Defesa da prisão em segunda instância
Priorização da "legitimidade democrática" sobre garantias individuais
Postura punitivista baseada no "combate à corrupção"
No caso Bolsonaro:
Interpretação ampla de garantias constitucionais
Defesa da "humanização" da dosimetria
Questionamento de provas e delações
Postura garantista baseada na "equidade"
Esta contradição levanta questões fundamentais sobre a natureza da jurisdição constitucional no Brasil. Se um ministro do STF pode mudar radicalmente sua interpretação da Constituição conforme a orientação política do réu, qual é o valor da segurança jurídica e da isonomia?
A "jurisprudência" de Fux no caso Lula estava onde sempre deveria estar: na aplicação consistente de critérios técnicos baseados na Constituição, independentemente da pessoa do réu ou do contexto político. Sua ausência no caso Bolsonaro não representa "evolução" ou "moderação", mas sim a erosão dos princípios fundamentais que devem orientar a jurisdição constitucional.
Como bem observou o próprio Fux em 2018, "a jurisprudência do tribunal tem que ser íntegra, estável". A ironia é que, ao abandonar esta máxima no caso Bolsonaro, ele próprio contribuiu para a instabilidade jurisprudencial que tanto criticava. A questão não é se Fux estava certo em 2018 ou está certo em 2025, mas sim se é aceitável que um ministro do STF aplique critérios jurídicos diferentes conforme suas preferências políticas do momento.
A democracia brasileira exige mais de seus magistros constitucionais: exige coerência, isonomia e, sobretudo, fidelidade aos princípios constitucionais independentemente de quem senta no banco dos réus. Enquanto essa exigência não for atendida, a legitimidade do STF continuará em questão, e a pergunta sobre onde estava a jurisprudência permanecerá como símbolo da crise de credibilidade que assola o Judiciário brasileiro.




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