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Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.  • REUTERS
Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.  • REUTERS

Na manhã de 25 de agosto de 2025, o Exército de Israel atingiu o Complexo Médico Nasser, em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza, em dois ataques sucessivos que deixaram pelo menos 20 mortos, entre eles cinco jornalistas que cobriam a primeira explosão. Imagens e relatos confirmam o padrão conhecido como double tap: o segundo disparo veio minutos depois, quando equipes médicas, resgatistas e repórteres já estavam no local. Em um dos andares do hospital, uma transmissão ao vivo foi interrompida no ato. Esta não foi “uma tragédia sem autor”: foi uma ação militar previsível, repetida e documentada — e, por isso mesmo, exigindo responsabilização no mais alto nível de comando político.


O Nasser não é um alvo qualquer. Desde meses anteriores, organismos internacionais alertavam que o sistema de saúde de Gaza colapsou; o Nasser era o principal hospital de referência restante no enclave e, no sul, era descrito por veículos internacionais como o último efetivamente em operação — o que agrava o caráter de devastação humanitária do ataque. Mesmo antes do bombardeio, a OMS vinha advertindo que Nasser e Al-Amal corriam risco de se tornarem inoperantes, enquanto não havia hospitais funcionais no norte, e a OCHA registrava que apenas uma fração das estruturas de saúde trabalhava de forma parcial. O local era, portanto, um dos derradeiros fios de atendimento a feridos e doentes.


Quem morreu tem nome — e profissão. Entre as vítimas, estavam Hussam al-Masri (contratado da Reuters), Mohammed Salama (Al Jazeera), Mariam Abu Dagga (freelancer que colaborava com AP), Moaz Abu Taha (freelancer) e Ahmed Abu Aziz (freelancer). Outro fotógrafo da Reuters, Hatem Khaled, ficou ferido. A lista não é uma abstração estatística; é a crônica de uma imprensa palestina que vem sendo dizimada no exercício do ofício. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) confirmou as mortes e voltou a apontar a necessidade de responsabilização internacional.


Jornalista que morreram após ataque israelense — Foto: Reprodução
Jornalista que morreram após ataque israelense — Foto: Reprodução

A resposta oficial de Benjamin Netanyahu — “lamentamos profundamente” um “incidente trágico” — não muda a substância dos fatos, tampouco o padrão. O governo anunciou uma investigação, e o Exército repetiu o mantra de que “não tem jornalistas como alvo”. A fórmula é conhecida: um ciclo de bombardeio, lamento, inquérito interno e impunidade. Diante de um hospital alvo de duas pancadas em sequência, com jornalistas e socorristas deliberadamente expostos na escadaria e nos corredores, a tese do “mishap” perde aderência à realidade e fere a inteligência de qualquer observador honesto.


Não se trata de um episódio isolado, mas de uma política de guerra que transformou Gaza no lugar mais letal do mundo para a imprensa. Desde outubro de 2023, pelo menos 190–200 profissionais de mídia foram mortos na região do conflito, uma marca sem precedentes desde que o CPJ iniciou sua série histórica em 1992. A RSF, por sua vez, já apresentou ao Tribunal Penal Internacional (TPI) quatro queixas por crimes de guerra contra jornalistas, pedindo inclusive a participação das vítimas palestinas como parte interessada nos processos. Não é possível falar em “colaterais” quando o acervo probatório público desenha um padrão.


Há, ainda, a dimensão jurídica que o próprio Netanyahu não pode contornar. Em 21 de novembro de 2024, a Câmara de Pré-Julgamento do TPI expediu mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel por crimes de guerra e contra a humanidade na Palestina — um passo que não equivale a condenação, mas que reconhece gravidade e plausibilidade suficientes para processá-lo. O mandado reforça o óbvio: decisões que produzem destruição sistemática de civis e de infraestrutura indispensável — como hospitais — têm cadeia de comando e têm autor político.


© REUTERS/Hatem Khaled/Proibida reprodução
© REUTERS/Hatem Khaled/Proibida reprodução

No campo humanitário, a cronologia é implacável. A OMS já havia informado, em maio e junho, que o Nasser, o Al-Amal e o Al-Aqsa viviam à beira do colapso e que o Hospital Europeu de Gaza estava fora de serviço desde um ataque de maio, interrompendo tratamentos de câncer e cardiologia indisponíveis em qualquer outro ponto do enclave. Bombardear um complexo hospitalar nessas condições não apenas maximiza o número de mortos imediatos; também destrói a capacidade de salvar os sobreviventes. É a técnica da asfixia: mata-se no impacto e, depois, na ausência de atendimento.


No plano do direito internacional, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) já indicou medidas cautelares para que Israel previna atos enquadráveis na Convenção do Genocídio e combata a incitação ao genocídio — reconhecimento de risco plausível, que exige contenção imediata e efetiva. O ataque a um hospital que ainda funcionava, com um segundo disparo que atinge os que socorrem, converge com a literatura de crimes de guerra e com elementos de uma política estatal de destruição de um povo como povo. A palavra “genocídio” não é um slogan; é o nome jurídico do risco que a CIJ já viu — e que atos como o do Nasser tornam cada vez menos “plausível” e cada vez mais “patente”.


Há também a guerra contra a própria possibilidade de testemunho. Israel restringe fortemente o acesso de jornalistas estrangeiros a Gaza, o que, somado ao assassinato em massa de repórteres locais, tenta calar as últimas vozes capazes de narrar o horror. Quando uma força militar ataca duas vezes o mesmo prédio, sabendo que repórteres e equipes médicas correrão para lá, atinge-se, simultaneamente, um serviço essencial e a própria imprensa — isto é, o direito que o mundo tem de saber. É por isso que organizações de imprensa e líderes internacionais reagiram com veemência ao ataque ao Nasser, exigindo proteção a civis, responsabilização e o fim da impunidade.


Dizer, portanto, que Benjamim Netanyahu é “genocida e assassino de jornalistas” não é uma hipérbole panfletária. É uma avaliação política — fundamentada em fatos verificados, na escalada de um padrão de ataques contra infraestrutura médica e contra a imprensa, e no reconhecimento, por cortes e organismos internacionais, de risco de genocídio e de base suficiente para processá-lo por crimes internacionais. Chamar o ataque ao Nasser de “mishap” é um eufemismo indecente que tenta transformar o previsível em acidente, o sistemático em desvio, o crime em azar. Não é. É método. É comando. É responsabilidade.


Um colega local da BBC registrou sinais inconfundíveis de desnutrição avançada no corpo da bebê Siwar
Um colega local da BBC registrou sinais inconfundíveis de desnutrição avançada no corpo da bebê Siwar

O que fazer diante disso? Primeiro, recusar a normalização de investigações internas que terminam em nada; exigir uma investigação independente, com cadeia de custódia preservada e participação das vítimas. Segundo, suspender apoio militar e comercial que alimente a máquina de destruição — armas que atravessam fronteiras para chegar a Gaza retornam, simbolicamente, na forma de imagens de câmeras ensanguentadas. Terceiro, garantir corredores humanitários reais, proteção reforçada a instalações de saúde e salvaguardas concretas ao trabalho da imprensa. E, sobretudo, cumprir a lei: executar os mandados do TPI, dar curso às medidas da CIJ e aceitar que a razão de Estado não absolve crimes contra a humanidade.


O ataque ao Hospital Nasser é um divisor de águas. Não por ser o pior — a contabilidade do horror parece sempre superável —, mas por expor, de forma inescapável, a anatomia de uma política. Quando o chefe de governo que a conduz escolhe o eufemismo em vez da responsabilidade, reafirma que o alvo nunca foi apenas o Hamas: foi, e é, a possibilidade de cuidado, de sobrevivência e de testemunho. É por isso que este texto afirma, sem subterfúgios: Benjamim Netanyahu é genocida porque promove — apesar de alertas formais da jurisdição internacional — atos que caminham para a destruição de um povo; e é assassino de jornalistas porque suas ordens e sua estratégia criaram o ambiente em que reportar virou sentença. Que a justiça internacional, enfim, desfaça o eufemismo e chame as coisas pelo nome.

 
 
 
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