Publicado pela primeira vez em 1605, o clássico “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes, celebra 420 anos de influência em 2025. Considerado por muitos como o maior romance já escrito, a obra transcendeu o tempo e as fronteiras geográficas, impactando culturas ao redor do mundo, incluindo a cidade do Recife, onde os temas de utopias, heroísmo e a complexidade humana encontraram ressonância em debates literários, artísticos e sociais.
No Recife, a celebração do legado de Dom Quixote reflete a rica tradição literária da cidade, que por séculos manteve uma forte ligação com o pensamento humanista europeu. As ideias quixotescas, marcadas pelo idealismo e pela crítica à realidade, influenciaram os círculos intelectuais pernambucanos. Escritores e pensadores locais dialogaram com o simbolismo do cavaleiro da triste figura, trazendo sua busca por justiça e a luta contra os moinhos de vento para a realidade brasileira, marcada por desigualdades e desafios históricos.
A formação do leitor recifense sempre esteve conectada aos clássicos da literatura mundial, incluindo Cervantes. Durante o século XIX, livrarias locais já difundiam traduções de “Dom Quixote”, e os temas da obra ecoaram em movimentos literários como o romantismo pernambucano, que explorava o heroísmo e a loucura em suas narrativas. No século XX, a presença de Cervantes no Recife ampliou-se com apresentações teatrais no icônico Teatro de Santa Isabel, além de debates acadêmicos na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mais recentemente, a obra tem sido revisitada em eventos promovidos por grupos literários, leituras comentadas e oficinas que buscam atrair novas gerações para o universo cervantino.
A conexão entre Dom Quixote e o Recife também é evidente na forma como a obra de Cervantes dialoga com as lutas sociais da cidade. Em um contexto onde tradição e modernidade se encontram, os dilemas quixotescos, que questionam normas sociais e desafiam a lógica prática, refletem as batalhas diárias dos recifenses por justiça, igualdade e inovação cultural.
Com a celebração de seus 420 anos, Dom Quixote convida os recifenses a refletirem sobre a atualidade de seus temas. Em tempos de crises sociais, climáticas e políticas, a figura de Dom Quixote nos lembra que, mesmo em meio às adversidades, o ato de sonhar e lutar por um ideal continua sendo essencial. Assim, o Recife se junta ao mundo para homenagear o cavaleiro da triste figura, cujo espírito revolucionário permanece vivo, inspirando gerações a desafiar a realidade e buscar o impossível.
Como a obra-prima de William Golding foi deturpada por ideologias autoritárias e por que ela continua a refletir os desafios mais urgentes da sociedade atual.
O Senhor das Moscas Capa - Ed. Alfaguara
William Golding, ao publicar O Senhor das Moscas em 1954, provavelmente não imaginava que sua obra se tornaria um dos romances mais debatidos e reinterpretados do século XX. Muito menos que, quase setenta anos depois, o livro seria usado por ideologias políticas para sustentar discursos completamente alheios às intenções originais do autor. Essa obra, que emerge como uma reflexão complexa sobre a natureza humana, a fragilidade da civilização e os perigos do poder, transcendeu sua época e continua a ser uma lente poderosa para interpretar o presente.
A narrativa de O Senhor das Moscas é aparentemente simples, mas carrega camadas profundas. Um grupo de meninos, sobreviventes de um acidente aéreo durante uma guerra, é isolado em uma ilha deserta. Ali, eles tentam criar uma ordem baseada em regras, representada por Ralph e a concha, um símbolo de democracia e cooperação. No entanto, aos poucos, o esforço civilizatório dá lugar à barbárie, liderada por Jack, cuja abordagem autoritária apela aos instintos mais primitivos dos meninos. Essa espiral de caos culmina em violência extrema, tragédias e na destruição literal e figurada da ilha, até que um resgate chega, trazendo uma reflexão amarga sobre as marcas deixadas pela experiência.
Golding, que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial, construiu sua obra como uma alegoria universal da condição humana. Ele parte da premissa de que o mal não é imposto por circunstâncias externas, mas existe dentro de cada indivíduo, latente, esperando por condições propícias para emergir. Essa ideia é brilhantemente encapsulada na figura do "senhor das moscas" — a cabeça de um porco deixada como oferenda, que, em uma visão alucinada, diz a Simon: "Eu sou parte de vocês. Estou dentro de vocês." (Capítulo 8, página 96). Essa frase não apenas define o coração da narrativa, mas também confronta o leitor com uma verdade desconfortável: o mal é intrínseco à humanidade.
No entanto, o que torna O Senhor das Moscas ainda mais intrigante é como sua mensagem foi distorcida ao longo das décadas. Golding escreveu uma obra profundamente crítica, não apenas da condição humana, mas também das estruturas de poder e da fragilidade das convenções sociais. Ainda assim, grupos de extrema-direita apropriaram-se do livro para justificar hierarquias rígidas, controle autoritário e até mesmo a ideia de que a desigualdade é uma "ordem natural" das coisas. Essas interpretações, ao mesmo tempo que traem a intenção do autor, revelam como os textos literários podem ser moldados para servir a interesses específicos.
A deturpação do pensamento de Golding pela extrema-direita está enraizada em uma leitura superficial e enviesada da obra. Por exemplo, há quem veja na falência da liderança de Ralph uma justificativa para a necessidade de governantes autoritários, como Jack. A ideia de que “a civilização falha sem uma mão firme” ignora completamente o fato de que a liderança de Jack não é apenas opressora, mas também destrutiva, levando a um colapso total da comunidade. O incêndio final da ilha, que deveria ser um sinal claro da crítica de Golding à violência desenfreada, é interpretado por alguns como uma metáfora para o poder necessário de destruir o velho para construir algo novo — uma visão completamente descolada do pessimismo deliberado do autor em relação à natureza humana.
Além disso, a ideia de que o mal é uma condição inerente a todos os seres humanos foi usada para justificar discursos de exclusão e supremacia. Grupos autoritários torceram a narrativa de Golding para argumentar que certas populações, consideradas “mais civilizadas” ou “mais fortes”, têm o direito de governar sobre outras, que seriam mais propensas à barbárie. Essa leitura, ao ignorar o fato de que todos os personagens do livro sucumbem de alguma forma à selvageria, reforça preconceitos e distorce a complexidade moral que Golding trabalhou com tanta precisão.
O perigo dessas deturpações é que elas transformam O Senhor das Moscas em uma arma retórica para fortalecer discursos de ódio e polarização, quando a obra deveria ser um alerta contra esses mesmos perigos. Golding não escreve para justificar o caos, mas para nos fazer refletir sobre ele. Sua narrativa é um grito de alerta sobre os riscos de ignorarmos nossa própria humanidade e de permitirmos que o medo e o poder nos dominem.
É impossível discutir a relevância de O Senhor das Moscas sem conectar a história à sociedade contemporânea. Em um mundo marcado pela polarização política, pelo crescimento do autoritarismo e pela fragmentação das relações humanas em redes sociais, a obra de Golding ressoa mais forte do que nunca. A ilha deserta é um microcosmo da sociedade, e a deterioração das relações entre os meninos é um reflexo das dinâmicas que vemos nas esferas políticas e sociais atuais. A liderança de Jack, baseada no medo e na força, é assustadoramente semelhante a líderes modernos que exploram divisões e criam “inimigos imaginários” para consolidar poder.
Por outro lado, Golding nos dá vislumbres de esperança, especialmente no personagem de Simon, que tenta, sem sucesso, comunicar aos outros que a "besta" não é real, mas uma criação dos próprios medos internos. Sua morte brutal é um lembrete trágico de que aqueles que buscam a verdade nem sempre são ouvidos, mas seu papel na narrativa é essencial: ele nos lembra que a introspecção e a coragem moral são as únicas forças capazes de desafiar o mal que reside dentro de nós.
Por fim, O Senhor das Moscas permanece como um clássico porque continua a nos fazer perguntas difíceis, em vez de oferecer respostas fáceis. Ele nos obriga a olhar para o espelho e confrontar nossos próprios medos, fraquezas e escolhas. William Golding, com sua visão sombria, mas profundamente humana, nos convida a refletir sobre quem somos e sobre o mundo que queremos construir. É uma obra que transcende o tempo, que dialoga tanto com aqueles que cresceram em tempos de guerra quanto com as novas gerações que enfrentam as complexidades do mundo digital.
Mas, acima de tudo, é um lembrete de que a literatura, em sua essência, é um espaço de questionamento. E é justamente por isso que devemos protegê-la de leituras manipulativas e reducionistas, que desrespeitam sua profundidade e sua capacidade de transformar o pensamento.
O Senhor das Moscas não é apenas um livro sobre o colapso da civilização; é uma obra sobre a luta constante para manter a humanidade viva em meio ao caos. Que essa mensagem seja preservada, mesmo quando deturpações tentam obscurecê-la.