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Como “1984” e “A Revolução dos Bichos” foram apropriados pela nova direita para atacar a esquerda — e por que isso é uma distorção


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Dizer que “estamos vivendo em 1984” se tornou uma das frases mais repetidas nas redes sociais e nos discursos públicos da nova direita, tanto no Brasil quanto em outros contextos ocidentais. Essa frase, que parece carregar um alerta legítimo, é frequentemente esvaziada de conteúdo e instrumentalizada de forma estratégica por discursos que, ironicamente, reproduzem as práticas que Orwell denunciava com veemência.


A obra de George Orwell, especialmente 1984 e A Revolução dos Bichos, foi ressignificada nas últimas décadas por vozes que buscam instrumentalizar sua crítica ao totalitarismo para sustentar narrativas antiprogressistas, anti-intelectuais e, muitas vezes, francamente antidemocráticas. Esse processo de apropriação simbólica, embora eficaz do ponto de vista retórico e midiático, constitui uma grave distorção — não apenas da obra de Orwell, mas de seu pensamento político, de sua trajetória pessoal e do contexto histórico em que produziu seus textos, especialmente no período pós-guerra. Para além do erro de leitura, estamos diante de uma operação ideológica que transforma um autor engajado em liberdade crítica num estandarte vazio e moldável ao sabor de interesses reacionários.


Orwell, nascido Eric Arthur Blair, foi um socialista democrático convicto. Sua filiação ao Partido Trabalhista Independente e sua atuação voluntária na Guerra Civil Espanhola ao lado do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), onde chegou a ser ferido em combate, não deixam margem para dúvidas quanto ao seu alinhamento político e sua coragem intelectual. Em seu célebre ensaio Por Que Escrevo, Orwell afirma categoricamente:


“Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático.”

Essa frase, muitas vezes esquecida ou propositalmente omitida por seus detratores, é essencial para compreender a natureza de sua crítica. A crítica ao autoritarismo — seja ele de origem comunista, fascista ou capitalista — nunca foi, portanto, uma rejeição da esquerda em si, mas uma denúncia das formas como ideologias podem ser pervertidas quando se tornam dogmas e instrumentos de dominação. Não há espaço, em sua obra, para um niilismo político que iguale todas as formas de poder ou para um cinismo reacionário que instrumentalize sua denúncia como arma contra qualquer pensamento progressista.


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A nova direita, no entanto, sobretudo em sua expressão digital e memética, descontextualizou essa crítica e a reconverteu em ataque direto à esquerda como um todo. Como apontam estudiosos como Alex Woloch (Universidade de Stanford), John Rodden (autor de A Política da Reputação Literária) e Dorian Lynskey (autor de O Ministério da Verdade), Orwell foi convertido em símbolo conservador por meio de um processo de simplificação extrema e recorte seletivo.


Elementos como o Grande Irmão, o duplipensar e o Ministério da Verdade passaram a ser empregados como metáforas vagas para tudo aquilo que incomoda a sensibilidade da direita contemporânea: políticas públicas inclusivas, regulação da mídia, ações afirmativas, universidades, imprensa investigativa e movimentos sociais. Essa instrumentalização retórica se baseia em slogans fáceis, que dispensam leitura aprofundada e promovem uma falsa equivalência entre vigilância estatal e qualquer tipo de política pública progressista. E ao fazer isso, apagam-se os contextos históricos específicos que alimentaram as obras de Orwell, criando uma leitura superficial, despolitizada e profundamente anacrônica.


O que se vê, portanto, não é um esforço honesto de interpretação, mas sim uma estratégia deliberada de distorção. Essa apropriação não acontece apenas no plano simbólico, mas se traduz em práticas discursivas concretas: influenciadores bolsonaristas no Brasil, militantes da direita alternativa nos Estados Unidos e colunistas de extrema-direita europeus invocam Orwell como “patrono” da resistência conservadora contra o que chamam de “totalitarismo cultural da esquerda”.


Em fóruns como 4chan, Reddit, Gab, X (antigo Twitter) e outros espaços digitais, memes com frases retiradas de 1984 ilustram supostos abusos do “globalismo”, da “ideologia de gênero” e do “marxismo cultural” — expressões que, por si só, já operam como categorias fantasmáticas de uma guerra cultural paranoica e infundada. Esses memes são muitas vezes acompanhados de ilustrações que transformam Orwell em uma figura quase mitológica da liberdade individual, ignorando deliberadamente suas posições socialistas e seu compromisso com a justiça social. Esse processo cria uma espécie de fetichização do autor, que passa a existir mais como imagem do que como pensamento, como símbolo vazio do que como autor complexo.


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Mas há um problema central nessa leitura: Orwell nunca foi um libertário no sentido contemporâneo da palavra. Ele não defendia um Estado mínimo nem era contrário à ação estatal como promotora de igualdade e justiça social. Sua crítica à burocratização da vida e à manipulação ideológica visava salvaguardar o projeto democrático e igualitário da esquerda, não destruí-lo. A sua adesão ao socialismo democrático exigia a liberdade de imprensa, a transparência do discurso público e a autonomia da consciência individual — elementos que, aliás, são sistematicamente atacados pelos mesmos grupos que hoje se declaram “herdeiros” de Orwell. Sua crítica ao stalinismo jamais significou uma rejeição do socialismo; era, antes, um alerta sobre os riscos de sua degeneração autoritária. Orwell se opunha ao totalitarismo como forma de dominação baseada na mentira, na reescrita da história e na aniquilação da subjetividade humana — exatamente o que certos setores da nova direita têm promovido sob o manto de um anticomunismo reativo e dogmático.


A leitura orwelliana da nova direita também apaga outro aspecto crucial: a crítica à linguagem como ferramenta de poder. O conceito de “novilíngua” não se refere a mudanças linguísticas progressistas nem à busca por linguagem inclusiva, mas à destruição sistemática da complexidade vocabular para empobrecer o pensamento e domesticar a dissidência. Ao confundir propostas de justiça linguística com censura orwelliana, a nova direita inverte completamente o eixo da crítica de Orwell — um verdadeiro exemplo contemporâneo do duplipensar que ele tão agudamente denunciou.


É importante destacar, como argumenta o linguista David Crystal, que as tentativas de controlar a linguagem não são exclusividade de regimes progressistas, mas uma prática comum de qualquer governo autoritário que busca moldar a realidade pela imposição de palavras. O que Orwell denunciava era a imposição de um vocabulário mínimo, que apagava significados e limitava a imaginação — algo que se repete hoje em campanhas que tentam interditar termos como “racismo estrutural”, “feminicídio” ou “patriarcado”, acusando-os de serem expressões da “ideologia”.


É nesse ponto que a apropriação simbólica se torna uma forma de violência intelectual. Como afirmou a pesquisadora Helen Nissenbaum, especialista em ética da tecnologia e vigilância, a linguagem orwelliana foi esvaziada ao ponto de se tornar um “emblema vazio, útil a qualquer projeto ideológico que queira parecer subversivo”. O problema não está apenas em citar Orwell de forma superficial — está em reconfigurar seu legado para servir a um projeto político que ele combatia frontalmente. O uso distorcido de sua obra se converte em arma de guerra cultural, apagando sua complexidade crítica e transformando-o em instrumento de propaganda. A violência não está apenas na leitura errada, mas no fato de que ela substitui o pensamento crítico por slogans que reduzem, empobrecem e deseducam.


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E o caso brasileiro merece atenção especial. Desde as manifestações de 2013 até o bolsonarismo militante nas redes sociais, 1984 passou a ser citado como justificativa para ataques ao sistema educacional, à imprensa e às instituições democráticas. Professores universitários foram acusados de “doutrinação ideológica” sob a alegação de que estariam implantando uma realidade “orwelliana”.


Não se trata de simples ignorância interpretativa. Trata-se de uma campanha sistemática de deslegitimação da crítica e da complexidade, substituídas por slogans fáceis, memes simplistas e analogias desonestas. A frase “quem controla o passado, controla o futuro” passou a ser utilizada para justificar revisionismos históricos, enquanto a denúncia do Ministério da Verdade se converteu em ferramenta para desacreditar agências de checagem e veículos jornalísticos tradicionais. Orwell é invocado para atacar quem denuncia notícias falsas — uma ironia que, se não fosse trágica, seria absurda.


Ao fim, o que se revela é que George Orwell foi vítima de um sequestro semântico. Seu nome e suas obras foram instrumentalizados não por afinidade ideológica, mas por sua força simbólica. Como lembra Raymond Williams, crítico marxista britânico, Orwell era uma das vozes mais honestas de sua geração exatamente por se recusar a aceitar dogmas — inclusive os do seu próprio campo. Sua coragem estava na crítica implacável e autônoma, não na adesão cega a qualquer ideologia. Descontextualizar Orwell é, portanto, apagar o seu maior ensinamento: que a linguagem precisa ser clara, que a verdade precisa ser defendida, e que a liberdade só existe onde há espaço para pensar criticamente — mesmo contra as conveniências do seu próprio lado.


Orwell não era um mascote da direita. Era um pensador livre. E resgatar seu legado exige mais do que citações: exige leitura, contexto, crítica e, sobretudo, responsabilidade — especialmente num mundo em que a manipulação do discurso é cada vez mais sofisticada e amplificada por algoritmos e bolhas informacionais. Defender Orwell, hoje, é recusar o uso estratégico de sua obra como fetiche ideológico. É, em última instância, fazer da leitura um ato de resistência e da crítica literária um gesto profundamente político — capaz de atravessar a superfície dos memes e desvelar as estruturas de poder que se escondem por trás da linguagem.

 
 
 

Por: Raul Silva, Jornalista do Teoria Literária


Cineasta palestino é sequestrado por soldados israelenses, diz diretor | Foto: Reprodução
Cineasta palestino é sequestrado por soldados israelenses, diz diretor | Foto: Reprodução

O sequestro e a detenção do cineasta palestino Hamdan Ballal, tal como amplamente relatado, transcendem a mera conjuntura de um episódio isolado de repressão estatal. Este evento insere-se em um panorama mais amplo de dominação colonial, apagamento cultural e violência estrutural que caracterizam a ocupação da Palestina. Através de uma análise histórico-crítica, podemos traçar paralelos inquietantes entre as ações do Estado de Israel e processos históricos de violência sistemática, tais como o Holocausto e outras formas de segregação racial institucionalizada. Esse fenômeno de violência estrutural perpetua-se não apenas por meio de intervenções militares, mas também por uma arquitetura institucional que busca consolidar a ocupação como um fato consumado, impossibilitando qualquer processo de autodeterminação palestina.


A violência exercida contra Ballal, cineasta e ativista, não apenas busca suprimir uma voz dissidente, mas também se insere em um continuum de práticas de opressão que encontram eco no conceito freireano de "Pedagogia do Oprimido". Segundo Paulo Freire, a dialética da opressão muitas vezes leva o oprimido, ao conquistar um espaço de poder, a reproduzir as mesmas estruturas de dominação que outrora o subjugaram. O sionismo político, que emergiu como uma resposta à perseguição antissemita na Europa, paradoxalmente deu lugar a uma estrutura de ocupação que impõe sobre os palestinos um regime de controle e desumanização sistemática. A partir dessa perspectiva, a política israelense pode ser vista como um reflexo da internalização de estruturas de poder que foram, no passado, utilizadas contra a própria comunidade judaica.


A brutalidade do ataque a Ballal e sua subsequente detenção evidenciam a forma como o Estado israelense instrumentaliza tanto seus aparatos militares quanto os colonos extremistas como agentes de repressão. O fato de Ballal ter sido atacado por colonos antes de ser entregue às forças militares ilustra a conivência entre o Estado e os atores não estatais na perpetuação da violência contra os palestinos. Relatórios de organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, reiteram que tais ataques são cada vez mais frequentes e sistematicamente negligenciados pelo sistema judiciário israelense, que raramente responsabiliza os colonos por seus atos. Essa relação de cumplicidade entre forças estatais e colonos é um componente fundamental da política de expansão territorial israelense, onde a população civil é utilizada como força paramilitar para reforçar as dinâmicas de ocupação.


O aparato de repressão implementado por Israel guarda notáveis semelhanças com estruturas históricas de exclusão e genocídio. A imposição de um regime de segregação física, manifestado nos checkpoints militarizados e no sistema de passes que restringe a liberdade de movimento dos palestinos, remete aos métodos empregados pelos regimes de apartheid na África do Sul e à segregação imposta pelos nazistas aos judeus nos guetos da Europa. O enclave de Gaza, uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, funciona como uma prisão a céu aberto, onde as condições de vida são deliberadamente precarizadas para enfraquecer a resistência popular. O deslocamento forçado de comunidades palestinas, frequentemente justificado sob o pretexto de necessidades militares ou arqueológicas, reflete a lógica de engenharia demográfica voltada para o apagamento da identidade nacional palestina. Esse processo é complementado pela destruição sistemática de infraestruturas essenciais, como escolas e hospitais, que tornam a vida dos palestinos cada vez mais inviável.


O documentário "No Other Land", dirigido por Ballal, é um testemunho eloquente dessas realidades. Ao denunciar a destruição sistemática de aldeias palestinas e a militarização cotidiana da Cisjordânia, a obra evidencia as contradições do discurso oficial israelense que busca justificar a ocupação sob o prisma da segurança nacional. O sequestro de Ballal é uma tentativa explícita de silenciar uma narrativa que desestabiliza a hegemonia discursiva israelense no cenário internacional. Esse controle narrativo, que se manifesta na censura de produções culturais palestinas e na perseguição de jornalistas, é um elemento crucial da estratégia colonial de Israel, que compreende a informação como um campo de batalha. A repressão à cultura palestina não se limita ao silenciamento de vozes individuais, mas se estende a políticas educacionais que visam obliterar a memória coletiva da resistência palestina.


A repressão contra jornalistas e cineastas palestinos insere-se em um contexto mais amplo de criminalização da resistência cultural. Relatórios indicam que, nos últimos anos, dezenas de jornalistas palestinos foram assassinados ou detidos, muitas vezes sob pretextos frágeis e sem direito a um julgamento justo. Essa censura estatal busca não apenas impedir a circulação de informações sobre os crimes cometidos na Cisjordânia e em Gaza, mas também desumanizar a população palestina aos olhos do público internacional, justificando assim a continuidade das operações militares e das políticas de ocupação. A manipulação da narrativa internacional por meio de think tanks e lobbies políticos nos Estados Unidos e na Europa desempenha um papel crucial para garantir que a repressão sistemática contra os palestinos permaneça impune.


A comunidade internacional, embora ciente dessas dinâmicas, mantém uma postura ambígua e, muitas vezes, conivente. A ONU, apesar de suas reiteradas resoluções condenando a ocupação israelense e a expansão de assentamentos ilegais, carece de mecanismos efetivos para aplicar sanções concretas. As potências ocidentais, notadamente os Estados Unidos e alguns países da União Europeia, continuam a fornecer suporte militar e diplomático a Israel, garantindo que este atue com impunidade. A inércia dessas potências revela o papel que os interesses geopolíticos e econômicos desempenham na perpetuação do status quo. A lógica da Guerra Fria, onde Israel se consolidou como um aliado estratégico do Ocidente, ainda se faz presente nas decisões políticas contemporâneas, tornando qualquer condenação efetiva improvável.


O pensamento freireano nos convida a uma reflexão mais profunda sobre a possibilidade de rompimento com esse ciclo de violência e opressão. A libertação autêntica, segundo Freire, só ocorre quando o oprimido se recusa a reproduzir a lógica de seu opressor, optando por uma práxis que emancipa não apenas a si mesmo, mas toda a sociedade. O caso de Hamdan Ballal é um testemunho da necessidade urgente de uma resistência organizada e de uma solidariedade internacional efetiva em prol da justiça e do direito à autodeterminação dos palestinos. Essa solidariedade não pode se limitar a manifestações simbólicas, mas deve se traduzir em ações concretas, como boicotes econômicos e a exigência de sanções contra Israel.


A luta palestina não é apenas uma questão geopolítica, mas um imperativo ético e moral. Os registros históricos demonstram que nenhum regime de ocupação é eterno e que a resistência popular, quando respaldada por uma mobilização global, pode reverter mesmo as estruturas de dominação mais arraigadas. Cabe à comunidade internacional decidir se continuará a perpetuar o silêncio conivente ou se posicionará ao lado da justiça, reconhecendo a autodeterminação palestina não como uma concessão, mas como um direito inalienável. A história julgará as escolhas feitas neste momento crítico, e a omissão de hoje poderá ser lembrada como cumplicidade na perpetuação de um sistema de violência e segregação. O caso Ballal, portanto, não é apenas uma questão de liberdade individual, mas um microcosmo de uma luta histórica pela dignidade e pelo reconhecimento da humanidade palestina.


 
 
 
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