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Literatura

O banimento permanente do perfil de Jeferson Tenório no Instagram representa mais que uma simples "moderação de conteúdo". É o ápice de uma perseguição sistemática de quatro anos contra um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos, cujo único "crime" foi escrever sobre racismo estrutural e violência policial no Brasil.


Capa do livro 'O Avesso da Pele', de Jefferson Tenório, retratando um homem negro se preparando para mergulhar, simbolizando temas explorados no romance
Capa do livro 'O Avesso da Pele', de Jefferson Tenório, retratando um homem negro se preparando para mergulhar, simbolizando temas explorados no romance

A perseguição a Jeferson Tenório começou em 2021, quando "O Avesso da Pele" ganhou o prestigioso Prêmio Jabuti na categoria romance literário. O reconhecimento, longe de protegê-lo, o transformou em alvo prioritário da extrema direita brasileira. As primeiras ameaças chegaram após ele escrever sobre Paulo Freire em sua coluna no jornal Zero Hora. Mas foi em 2022 que a violência digital escalou dramaticamente. Após anunciar uma palestra em uma escola de Salvador, Tenório recebeu ameaças de morte explícitas através do Instagram. O usuário anônimo @estudante_anonimo123 enviou mensagens dizendo que ele teria seu "CPF cancelado" caso comparecesse ao evento. "Eh mlhr vc meter o pé e sair do país. Se nn vc tá fudido irmão", dizia a mensagem. As ameaças foram tão específicas e credíveis que a escola optou por realizar o encontro virtualmente, reconhecendo sua incapacidade de garantir a segurança física do escritor. Tenório registrou boletins de ocorrência, mas as ameaças continuaram após a palestra.


O ano de 2024 marcou uma escalada qualitativa na perseguição quando múltiplas secretarias estaduais de educação - Paraná, Goiás, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul - coordenaram ações para remover "O Avesso da Pele" das bibliotecas escolares. A justificativa oficial era sempre a mesma: "expressões impróprias para menores de 18 anos". Mas a hipocrisia era gritante. Como observou sarcasticamente o próprio Tenório: "O mais curioso é que as palavras de 'baixo calão' e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras". A diretora Janaina Venzon, da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira (RS), foi particularmente explícita em seu racismo estrutural. Em vídeo que depois apagou, ela declarou: "Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível".


O banimento definitivo do perfil de Tenório no Instagram, ocorrido no início de junho de 2025, seguiu um padrão familiar: censura silenciosa, sem justificativa específica, sem direito de defesa. O escritor, que havia construído um diálogo direto com 80 mil seguidores, descobriu-se digitalmente aniquilado da noite para o dia. "No primeiro momento, achei que a minha conta havia sido hackeado, mas depois veio a confirmação de que o meu perfil foi banido pela empresa Meta sob a alegação de que não se enquadrava nas diretrizes da plataforma", relatou Tenório. Nenhuma explicação adicional foi fornecida.


A recusa sistemática da Meta em responder questionamentos sobre o banimento revela uma estratégia deliberada de censura por desgaste. Múltiplos veículos de imprensa - UOL, Estadão, G1, CNN Brasil - contataram a empresa. Nenhum recebeu resposta. Este silêncio não é passividade; é política ativa. Ao recusar-se a justificar suas decisões, a Meta transforma cada banimento em um ato de soberania corporativa absoluta, onde não há instância de recurso, transparência ou prestação de contas. A coincidência temporal entre o banimento de Tenório e casos similares - Jones Manoel, Manuela d'Ávila, diversos perfis progressistas - expõe o caráter sistêmico e coordenado desta operação de limpeza ideológica. Particularmente revelador é o timing: faltando pouco mais de um ano para as eleições de 2026, quando o debate sobre racismo, educação e violência policial - temas centrais da obra de Tenório - tende a se intensificar. Como ele próprio observou: "faltando um ano para as eleições no Brasil, uma eleição que promete ser bastante difícil, acho que tem um envolvimento político também".


Tenório revelou um detalhe crucial: dias antes do banimento, ele havia publicado uma crítica comparando Bolsonaro a Trump. Pouco depois, sua conta sofreu o que ele suspeita ter sido um "ataque em massa" - técnica onde grupos organizados reportam simultaneamente um perfil para forçar sua suspensão automática. Esta weaponização dos próprios mecanismos de moderação da Meta representa uma sofisticação táctica da extrema direita digital. Eles não apenas produzem ameaças diretas, mas manipulam os algoritmos para que a própria plataforma execute a censura, criando uma aparência de neutralidade técnica. "Se for isso que aconteceu comigo mostra que há uma grande falha na Meta de não conseguir fazer esse tipo de avaliação", observou Tenório. Mas esta "falha" pode ser, na verdade, uma feature funcionando perfeitamente conforme o design corporativo.


A obra de Tenório não é atacada por acaso. "O Avesso da Pele" narra a história de Pedro, jovem negro cujo pai professor foi assassinado por policiais que o confundiram com um bandido. É uma denúncia literária do genocídio da população negra brasileira através da violência estatal. O romance expõe três pilares do projeto político da extrema direita brasileira: o racismo estrutural, a brutalidade policial e a precariedade educacional como instrumentos de controle social. Por isso, atacar Tenório é atacar uma cosmovisão antirracista que ameaça as bases ideológicas do conservadorismo brasileiro. A capitulação das secretarias estaduais em 2024 revelou como instituições públicas podem ser instrumentalizadas para executar a agenda censória da extrema direita. O fato de que "O Avesso da Pele" faz parte do PNLD - programa federal que aprovou a obra após rigorosa avaliação técnica - não impediu governadores de desautorizar unilateralmente decisões pedagógicas. Esta hierarquização política sobre critérios técnicos representa um golpe na autonomia educacional e um precedente autoritário perigoso.


A campanha de solidariedade a Tenório conseguiu mobilizar personalidades como Chico Buarque e Drauzio Varela, além de mais de 6.400 assinaturas em um abaixo-assinado contra a censura. A Companhia das Letras, sua editora, emitiu notas de repúdio e acionou a Justiça contra as tentativas de censura. Contudo, esta resistência liberal tem limitações estruturais. Enquanto se concentra na defesa da liberdade de expressão em abstrato, evita confrontar diretamente o caráter racial e classista da censura. A branquitude intelectual progressista solidariza-se com Tenório, mas evita radicalizar o debate sobre como racismo e censura são fenômenos indissociáveis.


O banimento de Tenório no Instagram representa prejuízo econômico direto e mensurável. Como escritor contemporâneo, ele dependia da plataforma para divulgar agenda de palestras, lançamentos de livros e interação com leitores. A redução drástica de alcance - de 80 mil para 3,2 mil seguidores - equivale a uma amputação digital de sua capacidade de subsistência profissional. Seus advogados do escritório FFM são explícitos: "a exclusão arbitrária reduz drasticamente o alcance do trabalho de Tenório, prejudicando sua atuação como escritor, educador e figura pública". Esta é a violência econômica da censura digital: destruir meios de subsistência de intelectuais dissidentes.


O silêncio sistemático da Meta diante das ameaças de morte que Tenório recebeu através de sua própria plataforma revela uma cumplicidade ativa com a violência racista. A empresa que censurou imediatamente uma conta que denuncia racismo foi a mesma que protegeu contas que promovem racismo. Esta seletividade não é acidental, mas estrutural. A Meta opera como um mecanismo de apartheid digital, onde vozes negras críticas são sistematicamente silenciadas enquanto discursos supremacistas circulam livremente. A recente guinada explícita da Meta - encerrando a checagem de fatos, afrouxando regras contra discursos de ódio, nomeando republicanos para cargos-chave - institucionaliza o que já era prática clandestina. O caso Tenório demonstra que essa virada à direita não começou em 2025, mas vinha sendo testada e refinada há anos através de experimentos de censura seletiva.


O caso Jeferson Tenório expõe a brutal realidade do apartheid digital brasileiro: escritores negros que denunciam o racismo são sistematicamente perseguidos, censurados e economicamente estrangulados por uma aliança entre extrema direita política, instituições públicas cooptadas e corporações tecnológicas globais. Não se trata de um caso isolado, mas de uma operação coordenada de silenciamento que combina ameaças físicas, censura institucional e aniquilação digital. O sucesso desta perseguição - Tenório permanece banido enquanto seus perseguidores operam livremente - demonstra a eficácia desta nova forma de controle social. A luta pela reativação do perfil de Tenório é, portanto, muito mais que uma questão de liberdade de expressão. É uma batalha antirracista contra um sistema de dominação que usa a tecnologia para perpetuar estruturas de opressão racial sob uma fachada de neutralidade corporativa. A democracia brasileira será testada por sua capacidade de proteger intelectuais negros que ousam narrar as violências que estruturam nossa sociedade. Por enquanto, este teste está sendo reprovado com nota zero.

 
 
 

Uma investigação sobre a apropriação política de uma das obras mais influentes da literatura moderna revela as tensões entre legado artístico e instrumentalização ideológica


J. R. R. Tolkien. Crédito: Tolkien Estate
J. R. R. Tolkien. Crédito: Tolkien Estate

Quando Giorgia Meloni subiu ao poder na Itália em 2022, uma de suas primeiras iniciativas culturais foi patrocinar uma dispendiosa exposição sobre J.R.R. Tolkien em Roma.


"Nesta saga encontramos os valores eternos que formam heróis autênticos", declarou a primeira-ministra durante a inauguração, referindo-se ao Senhor dos Anéis.

Para quem conhece a trajetória política de Meloni – formada nos "Campos Hobbit" organizados por grupos neofascistas italianos nos anos 1990 –, a homenagem soa menos como celebração literária e mais como manifesto político disfarçado.


Retrato oficial, 2024
Giorgia Meloni - Primeira-ministra da Itália - Retrato oficial, 2024

A apropriação da obra de Tolkien por movimentos de extrema-direita representa um dos casos mais complexos e perturbadores de como clássicos literários podem ser instrumentalizados para fins que contradizem frontalmente as convicções pessoais de seus autores. Uma investigação baseada em mais de quarenta fontes acadêmicas, documentos históricos e análises especializadas revela como uma obra sobre união na diversidade foi sistematicamente distorcida para promover exatamente o contrário: exclusão racial e nacionalismo étnico.


A transformação de hobbits em símbolos fascistas começou em 1977, nas colinas da Toscana. O Movimento Social Italiano (MSI), partido que congregava os herdeiros políticos do regime de Mussolini, criou os primeiros "Campos Hobbit" – acampamentos temáticos onde jovens militantes eram doutrinados usando O Senhor dos Anéis como base ideológica.


"A genialidade diabólica estava na reinterpretação", explica Helen Young, da Universidade Deakin e autora de Race and Popular Fantasy Literature. "Eles pegaram uma narrativa sobre resistência ao mal e cooperação entre diferentes povos, e a transformaram numa metáfora para pureza racial e resistência à 'invasão' cultural."

"Campos Hobbit"- Fonte: I Ligiornali Off
"Campos Hobbit"- Fonte: I Ligiornali Off

Os organizadores reinterpretaram sistematicamente os elementos centrais da narrativa tolkieniana: os "povos livres do Oeste" representavam a Europa branca e cristã; Sauron e suas hordas simbolizavam invasões de povos não-europeus; a missão de destruir o Anel se tornava um chamado para preservar a homogeneidade cultural ocidental. O método funcionou com eficácia impressionante. Os acampamentos continuaram por décadas, formando gerações de quadros políticos que cresceram vendo Frodo e Aragorn como heróis de uma causa nacionalista. Entre os participantes estava Giorgia Meloni, então adolescente, que hoje ocupa o cargo mais alto do governo italiano.


J. D. Vance - Vice-presidente dos EUA - Retrato oficial, 2025
J. D. Vance - Vice-presidente dos EUA - Retrato oficial, 2025

Nos anos 2000, essa interpretação política da obra tolkieniana atravessou oceanos, encontrando terreno fértil nos Estados Unidos. Peter Thiel, co-fundador do PayPal e bilionário do Vale do Silício, nomeou sistematicamente suas empresas com referências ao universo de Tolkien: Palantir Technologies, Mithril Capital, Valar Ventures, Anduril Industries. A escolha dos nomes não foi coincidental. Palantir, as pedras de visão que na narrativa tolkieniana representam os perigos da vigilância autoritária, tornou-se o nome de uma empresa especializada em tecnologias de espionagem para governos. Anduril, a espada reforjada de Aragorn, denomina uma companhia de armamentos autônomos. A ironia é perturbadora: símbolos criados por Tolkien para alertar sobre os perigos do poder absoluto sendo usados por empresas que lucram com controle e guerra.


J.D. Vance, candidato republicano à vice-presidência dos Estados Unidos em 2024, declarou publicamente que


"muito da minha visão política conservadora foi profundamente influenciada pela obra de J.R.R. Tolkien".

Em suas formulações, a resistência do Condado aos "modernizadores" de Saruman espelha a resistência das comunidades tradicionais americanas às mudanças sociais contemporâneas. Robert Stuart, autor de Tolkien, Race, and Racism in Middle-earth, documenta como essa rede de apropriação se expandiu:


"Não estamos falando de fãs casuais. Estamos falando de uma rede internacional de políticos, empresários e intelectuais que desenvolveram, ao longo de cinco décadas, uma interpretação sistemática da obra como manifesto político".

A instrumentalização extremista da obra tolkieniana enfrenta, no entanto, um obstáculo histórico intransponível: as próprias convicções e ações de J.R.R. Tolkien. Em 1938, quando editores alemães solicitaram comprovação de sua "descendência ariana" para publicar O Hobbit na Alemanha nazista, a resposta de Tolkien foi devastadora para qualquer tentativa de alinhá-lo com doutrinas racistas.


"Não considero a (provável) ausência de todo sangue judeu como necessariamente honrosa", escreveu Tolkien, "e tenho muitos amigos judeus, e lamentaria dar qualquer aparência à noção de que subscrevo à doutrina racial totalmente perniciosa e não científica".

A carta, enviada em julho de 1938, causou o cancelamento imediato da publicação alemã. Mais que uma recusa diplomática, representou uma tomada de posição moral explícita contra a ideologia que hoje tenta cooptá-lo. Tolkien chamou Hitler de "aquele ignaro sanguinário" e expressou "rancor particular" contra o ditador alemão. Dimitra Fimi, da Universidade de Cardiff e especialista em medievalismo tolkieniano, argumenta que essa posição foi consistente ao longo da vida do autor:


"Em 1967, quase trinta anos depois da carta original, Tolkien rejeitou explicitamente o termo 'nórdico' devido às suas 'associações lamentáveis com as teorias raciais'".

Durante a Segunda Guerra Mundial, Tolkien não apenas se opôs ao nazismo politicamente, mas tomou atitudes práticas contra o racismo, oferecendo aulas gratuitas para refugiados judeus em Oxford e mantendo correspondência acadêmica com intelectuais perseguidos pelo regime hitlerista.


A questão se torna verdadeiramente complexa quando acadêmicos identificam elementos genuinamente problemáticos nos textos de Tolkien que, inadvertidamente, facilitam apropriações racistas. A passagem mais controversa aparece em uma carta de 1958, onde Tolkien descreveu os Orcs como:


"atarracados, largos, de nariz achatado, pele amarelenta, com bocas largas e olhos oblíquos: de fato, versões degradadas e repulsivas dos tipos mongóis (para europeus) menos atraentes".

James Mendez Hodes, especialista em estudos asiático-americanos, considera essa descrição uma forma de "lavagem de ódio" – a transferência de preconceitos do mundo real para contextos fantásticos.


Rebecca Brackmann documenta como os Anões em O Hobbit incorporaram estereótipos antissemitas da literatura europeia: obsessão com ouro, comportamento argumentativo, insulamento cultural. O próprio Tolkien reconheceu:


"Penso nos Anões como judeus: ao mesmo tempo nativos e estrangeiros em suas habitações".

No entanto, estudiosos como Tom Shippey argumentam que muitos elementos aparentemente racistas refletem convenções da literatura medieval que Tolkien estava imitando, não endossos pessoais a doutrinas raciais. Fimi demonstra como as representações evoluíram ao longo da obra: enquanto os Anões de O Hobbit (1937) reproduzem tropos problemáticos, Gimli em O Senhor dos Anéis (1954-55) é retratado como nobre e heroico, sugerindo evolução consciente nas ideias do autor.


Patrick Curry aponta momentos onde Tolkien explicitamente quebra caracterizações simplistas, como quando Sam contempla um soldado morto de Harad:


"Ele se perguntava como se chamava o homem e de onde ele vinha; e se ele era realmente mau de coração, ou que mentiras ou ameaças o levaram na longa marcha de sua casa".

É um momento de profunda humanização do "inimigo" que contradiz leituras supremacistas.


Capa oficial da Séria - Divulgação Amazon Prime
Capa oficial da Séria - Divulgação Amazon Prime

O debate explodiu novamente em 2022 com o lançamento de Os Anéis de Poder, da Amazon, que incluiu atores negros interpretando elfos, anões e hobbits. A reação foi imediata e virulenta: campanhas organizadas de assédio racista, ataques sistemáticos nas redes sociais, e argumentos aparentemente sofisticados sobre "fidelidade ao material original". A resposta da comunidade acadêmica foi inequívoca. Mais de duzentos especialistas em Tolkien assinaram uma carta defendendo o direito de adaptações incluírem diversidade racial. O elenco original dos filmes de Peter Jackson se posicionou publicamente, com Sean Astin declarando:


"A Terra Média não pertence a supremacistas brancos. Essa obra fala sobre diferentes povos superando suas diferenças para combater o mal".

Robin Reid, do Journal of Tolkien Research, documentou como grupos organizados de extrema-direita atacaram não apenas adaptações diversas, mas os próprios acadêmicos que estudam questões raciais na obra. O seminário da Tolkien Society sobre diversidade em 2021 recebeu mais de 700 inscrições legítimas, mas também ataques coordenados de supremacistas tentando sabotar as apresentações.


Charles Mills, filósofo político da Northwestern University, ofereceu uma das análises mais sofisticadas em seu ensaio The Wretched of Middle-Earth. Mills argumenta que a obra de Tolkien opera simultaneamente em dois níveis morais: celebra explicitamente valores universais como amizade e resistência à tirania, mas implicitamente normaliza hierarquias raciais através de sua estrutura cosmológica. Helen Young vai além, identificando o que ela chama de "hábitos de branquitude" no gênero fantástico como um todo – padrões estabelecidos historicamente que facilitam apropriações problemáticas.


"O problema não é que Tolkien era um nazista disfarçado", ela explica. "O problema é que ele criou um mundo onde certas formas de desigualdade parecem naturais, mesmo quando a narrativa superficial prega valores igualitários."

A disputa pelo legado de Tolkien revela tensões mais amplas sobre como sociedades contemporâneas lidam com obras culturais influentes criadas em contextos históricos diferentes. Como observa a especialista em apropriação cultural Yuniya Kawamura,


"a transformação de símbolos culturais é sempre um processo político, onde diferentes grupos competem para estabelecer significados dominantes".

A apropriação de Tolkien insere-se num fenômeno mais amplo que historiadores chamam de "medievalismo weaponizado". Desde o ataque em Charlottesville (2017) até a invasão do Capitólio americano (2021), supremacistas brancos têm usado sistematicamente símbolos medievais – cruzes templários, runas nórdicas, brasões europeus – para promover fantasias de pureza racial.


Dorothy Kim, medievalista da Universidade Brandeis, alerta:


"O passado europeu cristão medieval está sendo weaponizado por grupos extremistas que frequentemente são estudantes universitários". Mary Rambaran-Olm adiciona que "grupos identitários de extrema-direita buscam provar sua ancestralidade superior retratando os anglo-saxões de formas que promovem identidade inglesa e progresso nacional".

O fenômeno não se limita ao mundo anglófono. Estudos documentam apropriações similares de simbologias medievais por movimentos ultranacionalistas em toda a Europa, sempre baseadas numa compreensão historicamente incorreta da Idade Média como período de homogeneidade racial.


A comunidade acadêmica tolkieniana desenvolveu o que Robin Reid chama de "engajamento crítico informado" – uma abordagem que reconhece problemas sem descartar valores, contextualiza limitações históricas sem usá-las como desculpas, e defende ativamente interpretações inclusivas. Emerge uma nova geração de pesquisadores, incluindo muitos estudiosos racializados, que não têm medo de abordar essas questões frontalmente. Helen Young não apenas identifica elementos problemáticos, mas analisa como eles podem ser contextualizados e criticados sem descartar o valor literário do conjunto. Dimitra Fimi oferece uma síntese equilibrada:


"Tolkien era um homem do seu tempo, e seu tempo tinha problemas. Mas ele também transcendeu muitas limitações de sua época e demonstrou capacidade de crescimento".

Sua pesquisa mostra como é possível amar profundamente uma obra reconhecendo simultaneamente suas limitações históricas.


A disputa sobre Tolkien oferece lições cruciais sobre como sociedades democráticas devem lidar com legados culturais complexos numa era de polarização extrema. Primeiro, demonstra que a resposta à apropriação extremista não pode ser nem condenação total nem defesa acrítica, mas engajamento nuançado baseado em evidências históricas. Segundo, revela como grupos organizados podem sistematicamente distorcer obras culturais para fins políticos, processo que exige vigilância e resposta ativa de acadêmicos, educadores e instituições culturais. Como observa a pesquisadora em apropriação cultural Abraham Oshotse:


"a determinação do que constitui apropriação cultural é um processo contextual, moldado pelo ato, pelas pessoas envolvidas e pela identidade dos observadores".

Terceiro, mostra a importância de vozes diversas nos estudos culturais. Como documenta Helen Young, a predominância histórica de perspectivas brancas nos estudos medievais facilitou apropriações problemáticas. A inclusão de estudiosos racializados está produzindo análises mais sofisticadas e resistentes a cooptações extremistas.


Livros Tolkien - Fonte: Reprodução
Livros Tolkien - Fonte: Reprodução

Quando J.R.R. Tolkien escreveu que "mesmo a menor pessoa pode alterar o curso da história", dificilmente imaginava que suas palavras se tornariam relevantes numa batalha cultural sobre o próprio significado de sua obra. A tentativa de transformar símbolos de cooperação em emblemas de exclusão representa uma das mais perversas formas de apropriação cultural contemporânea. As evidências históricas são inequívocas: Tolkien pessoalmente rejeitava doutrinas raciais e defendia valores antitéticos ao supremacismo branco. Sua obra, apesar de limitações históricas específicas, promove fundamentalmente a união na diversidade contra forças de divisão e ódio – precisamente o oposto da mensagem extremista.


A resposta adequada não é abandonar esses símbolos aos extremistas, mas reclamá-los ativamente. Como argumenta Sean Astin, "You Are All Welcome Here" – "Vocês São Todos Bem-vindos Aqui" – captura o espírito real da obra muito melhor que qualquer campo político excludente. No final, a disputa pelo legado de Tolkien é uma disputa sobre que tipo de mundo queremos construir: um onde diferenças são motivos para divisão, ou um onde povos diferentes podem trabalhar juntos contra ameaças comuns. Nessa disputa, tanto a biografia quanto a obra de J.R.R. Tolkien oferecem muito mais munição para o segundo tipo de mundo. A batalha pela Terra Média continua. E dessa vez, os verdadeiros defensores de Tolkien são aqueles que defendem inclusão contra exclusão, cooperação contra supremacia, luz contra escuridão.



 
 
 


Publicado originalmente em 2018, o livro Como as Democracias Morrem, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, adquire renovado vigor interpretativo no contexto político de 2025, não apenas como análise retrospectiva, mas como instrumento de leitura crítica do presente. A obra, ancorada na análise densa do cenário político norte-americano contemporâneo — em particular, a ascensão e consolidação de Donald Trump —, transcende sua matriz empírica inicial para se afirmar como uma referência teórico-analítica indispensável à compreensão das transformações institucionais e da deterioração normativa que têm afetado regimes democráticos em diferentes geografias e escalas de poder.


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A tese central rompe com o modelo teleológico clássico segundo o qual as democracias se encerram abruptamente mediante a ação de forças externas ou golpes militares. Em lugar disso, Levitsky e Ziblatt propõem a ideia de um declínio incremental, operacionalizado por meio de processos formais — eleições, nomeações, reformas legais — conduzidos por líderes que, embora legitimados pelo sufrágio, se dedicam à corrosão paulatina das salvaguardas constitucionais e das normas informais que sustentam o pacto democrático. A substituição simbólica do tanque pelo tweet, da censura explícita pela desqualificação sistemática da imprensa, da ruptura legislativa pelo esvaziamento deliberado do Congresso, constitui um repertório de práticas que delineiam o modus operandi do autoritarismo do século XXI.


A estrutura analítica da obra articula-se a partir de quatro vetores que funcionam como indicadores de propensão autocrática: a rejeição das regras do jogo democrático; a negação da legitimidade dos adversários políticos; a tolerância — ou mesmo o estímulo — à violência contra opositores; e a disposição para restringir liberdades civis fundamentais. Essa tipologia, fundamentada na análise empírica de múltiplos contextos — da Venezuela de Hugo Chávez à Hungria de Viktor Orbán, passando pela Turquia de Erdogan e os próprios Estados Unidos sob a égide trumpista —, permite inferir a existência de um padrão transnacional de degradação institucional, calcado na naturalização progressiva de abusos de poder e no enfraquecimento das garantias democráticas.


No ano de 2025, a atualidade da obra se intensifica. A volta de Trump à presidência dos Estados Unidos opera como catalisador da transnacionalização da lógica autoritária delineada por Levitsky e Ziblatt. A convergência entre o trumpismo e o bolsonarismo evidencia a capacidade de adaptação e reconfiguração desses movimentos segundo padrões compartilhados de captura institucional, mobilização emocional e manipulação informacional. Embora o Brasil não seja objeto direto da análise dos autores, o país figura, hoje, como uma extensão quase experimental do arcabouço teórico desenvolvido na obra. A transformação do bolsonarismo em apêndice regional do trumpismo demonstra o caráter replicável dessas formas de poder autoritário.


Nesse cenário, o Brasil se vê no epicentro de uma ofensiva que conjuga desinformação industrializada, aparelhamento institucional, e submissão diplomática. As articulações para anistiar Jair Bolsonaro, as reiteradas tentativas de enfraquecer o Supremo Tribunal Federal, os constantes ataques ao sistema eleitoral, e a atuação internacional de Eduardo Bolsonaro como representante informal da extrema-direita global, compõem uma constelação de práticas que mantém a arquitetura democrática apenas como fachada. Trata-se de uma simulação institucional, em que os dispositivos legais permanecem, mas seu conteúdo normativo é manipulado para fins autocráticos, transformando o Estado em instrumento de revanche ideológica.


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No plano internacional, Trump emprega o poder geopolítico dos Estados Unidos como ferramenta de coerção, exigindo realinhamentos estratégicos de países considerados periféricos. A pressão para que o Brasil abandone o BRICS, por exemplo, revela a dimensão sistêmica do novo autoritarismo: ele não se contenta com a domesticação da política interna, mas exige a remodelação da ordem mundial sob a lógica do unilateralismo coercitivo. A política externa brasileira, subordinada a interesses de clãs familiares e influências estrangeiras, configura uma ruptura grave com os princípios da autodeterminação dos povos e da soberania nacional, conforme consagrados no direito internacional e no arcabouço constitucional brasileiro.


Como as Democracias Morrem impõe-se, nesse contexto, como um dispositivo de resistência teórica e prática. Ao enfatizar que a resiliência democrática não se assenta exclusivamente sobre a robustez das instituições, mas depende do compromisso normativo dos atores políticos e da vigilância ativa da sociedade civil, Levitsky e Ziblatt reconvocam a tradição republicana como horizonte de engajamento cívico. A democracia, afirmam os autores, sobrevive não pela inércia, mas pelo exercício constante da moderação, da responsabilidade institucional e do respeito à pluralidade. Quando essas virtudes são abandonadas em nome do poder, abre-se o caminho para a erosão das liberdades públicas.


Ao longo de sua exposição, os autores demonstram como a fronteira entre regimes democráticos e autocráticos se torna fluida em contextos de polarização extrema. Essa fluidez se manifesta, entre outros sintomas, pela conversão do dissenso em ameaça, pela substituição do adversário pelo inimigo, e pela normalização de mecanismos excepcionais de governo. No Brasil contemporâneo, essa descrição adquire contornos alarmantes: a descredibilização das urnas, a tentativa de cooptação do Judiciário, e a permanente tensão institucional entre poderes constituídos sugerem que o país atravessa um processo de inflexão democrática cuja reversibilidade depende, em larga medida, da mobilização cidadã e da firmeza das instituições ainda resistentes à captura.


A obra de Levitsky e Ziblatt, assim, transcende sua condição de análise empírica do caso norte-americano para se converter em uma gramática de resistência. Seu valor não está apenas no diagnóstico preciso, mas na oferta de um léxico crítico para a nomeação das práticas autoritárias que se escondem sob a roupagem da legalidade. O alerta não é panfletário, nem especulativo. É resultado de um esforço de sistematização teórica, com base em décadas de pesquisa e na observação comparada de regimes políticos em múltiplas latitudes.


Como as Democracias Morrem deveria ser leitura obrigatória não apenas em universidades e centros de pesquisa, mas em todos os espaços em que se pensa e se decide o futuro da vida coletiva. Compreender os sinais de erosão democrática não é um luxo acadêmico — é uma necessidade vital. A democracia não se desfaz em um único gesto: ela é minada em processos silenciosos, legitimados por pactos oportunistas e pela passividade de quem assiste. Levitsky e Ziblatt nos convocam, com precisão e coragem, a romper esse silêncio. Porque o silêncio, nesses tempos, é cúmplice. E essa convocação, hoje, não poderia ser mais urgente.



 
 
 
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