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Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal consolida decisão sem precedentes na história brasileira com votos de Cármen Lúcia e Cristiano Zanin pela condenação integral do ex-presidente e sete aliados


O Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou nesta quinta-feira (11) uma decisão sem precedentes na história brasileira: a formação de maioria para condenar um ex-presidente da República por crimes contra a democracia. Com os votos das ministras Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, a Primeira Turma fechou o placar em 4 votos a 1 pela condenação de Jair Bolsonaro e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada e três crimes adicionais relacionados à trama golpista que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023.


A sessão desta quinta-feira marcou um momento histórico na jurisprudência brasileira, com citações literárias, análises jurídicas aprofundadas e reflexões sobre os fundamentos do Estado Democrático de Direito que ecoaram pelos corredores do Palácio da Justiça.


Jair Bolsonaro primeiro ex-presidente condenado por tentativa de Golpe de Estado - Foto: Reprodução
Jair Bolsonaro primeiro ex-presidente condenado por tentativa de Golpe de Estado - Foto: Reprodução

O voto decisivo de Cármen Lúcia: literatura, autoritarismo e defesa da democracia


A ministra Cármen Lúcia abriu sua manifestação com uma referência que definiria o tom de todo seu voto. Citando Victor Hugo e sua obra "História de um Crime", sobre a oposição do escritor francês ao golpe de Napoleão III, a magistrada reproduziu a frase que se tornaria emblemática do julgamento: "O mal feito para o bem continua sendo mal".


"Principalmente quando ele tem sucesso. Porque então ele se torna um exemplo e vai se repetir", disse a ministra, utilizando a citação para contextualizar os ataques de 8 de janeiro de 2023. Para Cármen Lúcia, os réus da trama golpista buscaram enfraquecer o Estado de Direito sob o argumento de defender o país, mas "a Constituição não abriga atalhos autoritários, mesmo quando travestidos de bem".


Em uma das passagens mais contundentes de seu voto, a ministra rejeitou qualquer tentativa de minimizar a gravidade dos eventos que levaram aos ataques às sedes dos Três Poderes. "O 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal, depois de um almoço de domingo, quando as pessoas saíram para passear", declarou enfaticamente.


A magistrada destacou que o episódio foi resultado de um "conjunto inédito e infame" de acontecimentos que se estendeu por meses, com estratégias diversas e prolongadas que visavam enfraquecer as instituições democráticas. "Todos os empreendimentos que espalham os seus tentáculos de objetivos autoritários são ações plurais, pensadas, executadas com racionalidade", afirmou.


Em um momento que gerou risos na sessão e quebrou a tensão do julgamento, Cármen Lúcia fez uma observação que transcendeu o aspecto puramente jurídico. Quando interrompida pelo ministro Flávio Dino, que pediu para fazer um comentário, ela respondeu de forma bem-humorada: "Desde que rápidos, porque nós mulheres ficamos 2.000 anos caladas e queremos ter o direito de falar".


A frase, que provocou risos na sessão, foi uma mensagem sobre representatividade feminina nos espaços de poder, lembrando que a voz das mulheres foi historicamente silenciada.


Um dos aspectos mais técnicos, mas politicamente relevantes do voto de Cármen Lúcia, foi sua defesa da competência do STF para julgar o caso. Em resposta direta à posição divergente de Luiz Fux, que defendeu a "incompetência absoluta" da Corte, a ministra foi categórica: "Sempre votei do mesmo jeito. Sempre entendi que a competência era do STF. Não há de novo para mim".


A magistrada alertou para o risco de casuísmo caso houvesse mudança repentina no entendimento consolidado desde 2018. "Acho que seria casuísmo, gravíssimo, que alguns fossem julgados depois da mudança e fixação das competências que já exercemos inúmeras vezes e voltar atrás nessa matéria", afirmou.


Ao analisar o conjunto probatório, Cármen Lúcia foi incisiva ao afirmar que a Procuradoria-Geral da República havia demonstrado inequivocamente a existência da trama golpista. "Para mim, a PGR fez prova cabal de que um grupo liderado por Jair Messias Bolsonaro, composto por figuras-chaves do governo, das Forças Armadas e de órgãos de inteligência, desenvolveu e implementou plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas".


A ministra destacou o uso de "milícias digitais" como instrumento central da estratégia para minar o exercício dos demais poderes constitucionais, especialmente do Poder Judiciário.


O voto final de Cristiano Zanin: análise técnica e confirmação da condenação


O ministro Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma, encerrou a votação confirmando a maioria pela condenação. Em seu voto técnico e detalhado, Zanin rejeitou sistematicamente todas as preliminares apresentadas pelas defesas e confirmou sua posição pela condenação integral dos réus.


Zanin afastou categoricamente a alegação de cerceamento de defesa em razão do grande volume de provas, observando que todo o material produzido pela Polícia Federal foi disponibilizado às defesas por meio de links eletrônicos. "Em processos complexos, os chamados 'megaprocessos', é natural lidar com grandes acervos, cabendo às defesas utilizar os recursos técnicos necessários", argumentou.


O ministro também rejeitou a tese de suspeição do relator Alexandre de Moraes, lembrando que o plenário já havia decidido pela improcedência dessas arguições.


No mérito, Zanin foi categórico ao afirmar que "a prova dos autos confirma a existência de uma organização criminosa armada, estruturada e hierarquizada, cujo objetivo central era assegurar a permanência de Jair Bolsonaro no poder a qualquer custo, mesmo à revelia do processo eleitoral e da vontade popular".


O ministro descreveu detalhadamente os papéis de cada réu na estrutura criminosa, destacando que "havia clara divisão de tarefas, todas voltadas a fragilizar as instituições e a pavimentar a ruptura democrática".


Zanin analisou minuciosamente os crimes previstos nos artigos 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado) do Código Penal, incluídos em 2021. Para o ministro, os fatos demonstram tentativa concreta de vulnerar as instituições democráticas.


"O bem jurídico é vulnerado quando o poder destinatário da ameaça sofre interferência concreta em razão dos atos praticados, como ocorreu com as ameaças reiteradas ao Supremo Tribunal Federal e à Justiça Eleitoral", destacou.


O ministro frisou que a violência e grave ameaça devem ser interpretadas em chave institucional. "Não se exige que a violência recaia sobre uma pessoa determinada. A grave ameaça pode se materializar no constrangimento institucional, como a retórica de decretação de medidas de exceção em descompasso com a Constituição", afirmou.


Zanin encerrou seu voto com uma síntese que se tornou uma das frases mais marcantes do julgamento: "Não se trata de atos isolados, mas de uma cadeia de condutas coordenadas que visavam vulnerar o Estado Democrático de Direito".


A decisão final da Primeira Turma ficou definida em 4 votos a 1 pela condenação. Alexandre de Moraes, como relator, abriu a votação pedindo a condenação integral de todos os réus, tratando Bolsonaro como líder de uma organização criminosa hierarquizada. Flávio Dino acompanhou integralmente o relator, mas defendeu penas diferenciadas conforme o grau de participação de cada réu.


O único voto divergente veio de Luiz Fux, que em uma análise de mais de 14 horas absolveu Bolsonaro de todos os crimes e também livrou Augusto Heleno, Almir Garnier, Anderson Torres e Paulo Sérgio Nogueira, reconhecendo apenas a responsabilidade de Mauro Cid e Walter Braga Netto.


As consequências imediatas: q que acontece agora com Bolsonaro


A condenação criminal terá consequências imediatas para os direitos políticos de Bolsonaro. Segundo especialistas, a Constituição Federal prevê automaticamente a perda de direitos políticos de um condenado durante o cumprimento da pena. Como Bolsonaro já está inelegível até 2030 por decisão do TSE, a nova condenação pode estender esse prazo até o final do cumprimento da pena criminal.


As penas máximas somadas podem chegar a 46 anos de prisão para Bolsonaro, considerando os cinco crimes pelos quais foi denunciado:


  • Organização criminosa armada: até 20 anos de reclusão

  • Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito: até 8 anos

  • Golpe de Estado: até 12 anos

  • Dano qualificado: até 3 anos

  • Deterioração de patrimônio tombado: até 3 anos


Contudo, o Código Penal brasileiro limita o cumprimento efetivo da pena a 40 anos. A dosimetria será definida em sessão posterior, considerando o grau de participação de cada réu e eventuais atenuantes ou agravantes.


Apesar da condenação, Bolsonaro não será preso imediatamente. A execução da pena só ocorrerá após o trânsito em julgado da decisão, quando não houver mais possibilidade de recursos. Como a decisão não foi unânime, as defesas podem apresentar embargos infringentes, submetendo o caso ao plenário do STF.


Caso a pena seja efetivamente cumprida, especialistas indicam que Bolsonaro teria que cumprir a condenação por organização criminosa armada em regime inicialmente fechado, podendo progredir para regimes menos rigorosos conforme previsto na legislação.


O Contexto Histórico e Político


A decisão marca um precedente inédito na história brasileira: pela primeira vez um ex-presidente é condenado criminalmente por crimes contra a democracia. O julgamento ocorre em um momento simbólico, próximo aos 40 anos da redemocratização e do aniversário da Constituição de 1988.


A condenação torna ainda mais improvável qualquer possibilidade de Bolsonaro disputar as eleições de 2026. Além da inelegibilidade já imposta pelo TSE, a nova condenação criminal criará um obstáculo adicional quase intransponível para uma eventual candidatura.


A decisão repercutiu imediatamente no cenário político nacional e internacional, sendo considerada um marco na defesa das instituições democráticas brasileiras. O julgamento foi acompanhado de perto por juristas, políticos e observadores internacionais, sendo visto como um teste da solidez do sistema judiciário brasileiro.


Além de Bolsonaro, foram condenados pelos mesmos crimes outros sete aliados que compunham o chamado "núcleo crucial" da trama golpista:


  • Mauro Cid: ex-ajudante de ordens de Bolsonaro

  • Walter Braga Netto: ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente em 2022

  • Alexandre Ramagem: deputado federal e ex-diretor da Abin

  • Anderson Torres: ex-ministro da Justiça

  • Augusto Heleno: ex-ministro do GSI

  • Paulo Sérgio Nogueira: ex-ministro da Defesa

  • Almir Garnier: ex-comandante da Marinha


Cada um deles desempenhava funções específicas na estrutura da organização criminosa, desde a difusão de desinformação até a mobilização de estruturas policiais e militares.


Próximos Passos Processuais


As defesas ainda podem apresentar diversos tipos de recursos. Em caso de decisão não unânime, como ocorreu, é possível a interposição de embargos infringentes, que levariam a questão ao plenário do STF para nova análise. Também cabem embargos de declaração para esclarecer possíveis obscuridades ou contradições na decisão.


A dosimetria das penas será definida ainda na sessão de hoje, onde os ministros determinarão a pena específica para cada réu, considerando fatores como grau de participação, antecedentes criminais e demais circunstâncias judiciais.


Apenas após o esgotamento de todos os recursos e o trânsito em julgado da decisão é que as penas poderão ser efetivamente executadas. Especialistas estimam que esse processo pode levar ainda alguns anos, considerando a complexidade do caso e as instâncias recursais disponíveis.


A decisão histórica desta quinta-feira representa um marco na consolidação do Estado Democrático de Direito brasileiro, estabelecendo que mesmo as mais altas autoridades não estão acima da lei quando atentam contra as instituições democráticas. Como concluiu a ministra Cármen Lúcia em seu voto: "O Brasil só vale a pena porque nós estamos conseguindo ainda manter o Estado Democrático de Direito".

 
 
 

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Instituto Nacional do Seguro Social (CPMI do INSS), instalada em agosto de 2025, emerge em um contexto de fraudes bilionárias que atravessaram três governos e expõem uma teia complexa de interesses políticos, empresariais e corporativos. Longe de ser apenas uma investigação técnica, a CPMI revela-se como um teatro político onde alguns dos próprios protagonistas das irregularidades tentam controlar a narrativa e encobrir suas responsabilidades históricas.


Evolução dos descontos fraudulentos no INSS de 2016 a 2024, mostrando como o esquema cresceu durante diferentes governos
Evolução dos descontos fraudulentos no INSS de 2016 a 2024, mostrando como o esquema cresceu durante diferentes governos

A anatomia de um esquema bilionário


O esquema de fraudes no INSS representa uma das maiores sangrias de recursos públicos da história recente do Brasil. Entre 2019 e 2024, estima-se que R$ 6,3 bilhões foram desviados através de descontos irregulares nas aposentadorias e pensões de milhões de brasileiros. O prejuízo potencial pode chegar a R$ 10 bilhões considerando todo o período investigado.


A operação criminosa funcionava através de um sistema aparentemente legítimo de Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) entre o INSS e entidades associativas. Essas organizações, muitas delas de fachada, descontavam mensalidades diretamente dos benefícios previdenciários sob o pretexto de oferecer serviços como assistência jurídica, odontológica e descontos comerciais.


A realidade, porém, era bem diferente. Investigações da Controladoria-Geral da União (CGU) revelaram que 97,6% dos beneficiários entrevistados afirmaram não ter autorizado os descontos. A falsificação de assinaturas era sistemática, com "fábricas" dedicadas exclusivamente à produção de documentos fraudulentos.


No centro do escândalo encontra-se a Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer), presidida pelo empresário mineiro Carlos Roberto Ferreira Lopes. A entidade, que se apresenta como defensora de indígenas e pequenos agricultores, é na verdade controlada por um proeminente pecuarista do agronegócio com extensos negócios pessoais.


Conafer - Foto: Reprodução
Conafer - Foto: Reprodução

A Conafer recebeu R$ 688 milhões em repasses do INSS até o começo de 2025, tornando-se a entidade que mais arrecadou através dos descontos fraudulentos. O crescimento da organização foi explosivo: passou de 231 mil associados em 2021 para 641 mil em 2023, representando um aumento de quase 180% em dois anos.


Durante a pandemia de COVID-19, quando os brasileiros enfrentavam suas maiores dificuldades, a Conafer promoveu a inclusão de descontos em 73.108 benefícios em apenas quatro meses (abril a julho de 2020), equivalente a aproximadamente 610 novos "filiados" por dia. Esse crescimento anômalo ocorreu justamente quando as agências do INSS estavam fechadas e os idosos tinham menor capacidade de detectar as fraudes.


A evolução histórica das fraudes


Governo Temer (2016-2018): As sementes da corrupção


Michel Temer - Getty Images
Michel Temer - Getty Images

As fraudes no INSS não surgiram do nada. Suas raízes remontam ao governo de Michel Temer, quando as bases legais e operacionais foram criadas ou flexibilizadas para permitir o esquema. Durante esse período, os descontos fraudulentos saltaram de R$ 413 milhões em 2016 para R$ 617 milhões em 2018.


Um marco crucial foi a implementação da "transformação digital" em 2017, que suspendeu o envio de extratos em papel e transferiu tudo para o aplicativo Meu INSS. Embora apresentada como modernização, essa medida deixou milhões de idosos sem meios eficazes de acompanhar seus descontos, criando um ambiente propício para as fraudes.


Já em 2016, servidores do INSS denunciavam repasses suspeitos a associações, mas essas denúncias foram sistematicamente abafadas. Um servidor responsável por contratos denunciou à Polícia Federal repasses irregulares a uma associação de peritos médicos, mas não apenas não houve investigação como o próprio denunciante foi transferido para um setor conhecido como "cemitério de elefantes brancos".


Governo Bolsonaro (2019-2022): A consolidação criminal


O ex-presidente Jair Bolsonaro  • 09/06/2025 - Ton Molina
O ex-presidente Jair Bolsonaro  • 09/06/2025 - Ton Molina

Se o governo Temer plantou as sementes, foi durante o mandato de Jair Bolsonaro que o esquema floresceu e se consolidou em escala industrial. Os números são eloquentes: os descontos fraudulentos mantiveram-se relativamente estáveis entre R$ 604 milhões em 2019 e R$ 706 milhões em 2022.


O período foi marcado por mudanças legislativas que facilitaram ainda mais as fraudes. A Medida Provisória 871/2019 inicialmente exigia renovação anual das autorizações de desconto, mas a Lei 14.438/2022, sancionada por Bolsonaro sem vetos, eliminou esse requisito de segurança. Como resumiu o ministro Wolney Queiroz: "Entre 2019 e 2022 é que o ladrão entra na casa".


Durante esse período, 10 das 11 entidades hoje investigadas pela Polícia Federal assinaram acordos de cooperação técnica com o INSS entre 2021 e 2022. Essa concentração não é coincidência, mas resultado de uma política deliberada de afrouxamento dos controles.


Governo Lula (2023-2025): A descoberta e o enfrentamento


Lula - Reprodução YouTube
Lula - Reprodução YouTube

Paradoxalmente, foi durante o terceiro governo Lula que tanto ocorreu a explosão final das fraudes quanto sua definitiva exposição e combate. Os números mostram um crescimento vertiginoso: de R$ 706 milhões em 2022 para R$ 1,2 bilhão em 2023 e impressionantes R$ 2,8 bilhões em 2024.


Esse crescimento aparentemente paradoxal explica-se pelo fato de que o governo Lula herdou um sistema completamente comprometido, com acordos fraudulentos já estabelecidos e mecanismos de controle destruídos pelos governos anteriores. As entidades continuaram operando com base nos contratos firmados anteriormente, mas agora em escala exponencial.


A diferença fundamental foi a resposta governamental. Enquanto os governos anteriores ignoraram ou facilitaram as fraudes, o governo Lula desencadeou a Operação Sem Desconto em abril de 2025, suspendeu todos os acordos suspeitos, bloqueou R$ 2,8 bilhões em bens dos fraudadores e já devolveu mais de R$ 1 bilhão aos aposentados lesados.


A rede de proteção interna


Uma das revelações mais chocantes das investigações é o nível de infiltração do esquema criminoso dentro do próprio INSS. A operação contava com uma rede de servidores estrategicamente posicionados que garantiam proteção e continuidade às fraudes.


Alessando Roosevelt
Alessando Roosevelt

Alessandro Roosevelt, diretor de benefícios do INSS, descobriu as irregularidades da Conafer em 2020 e tentou suspender os repasses. Ele identificou que a entidade havia incluído descontos em mais de 95 mil benefícios em apenas quatro meses, exigindo na prática a coleta de mais de 600 autorizações por dia. Roosevelt chegou a alertar o Ministério Público Federal sobre as irregularidades.


No entanto, sua investigação foi sabotada internamente. Em outubro de 2020, uma portaria assinada pelo então presidente do INSS Leonardo José Rolim retirou de Roosevelt a atribuição de fiscalizar a Conafer, transferindo-a para outra diretoria. A nova diretoria, chefiada por Jobson de Paiva Silveira Sales, rapidamente produziu uma nota técnica favorável à Conafer.


Os operadores da Fraude
Os operadores da Fraude

O papel de Jucimar Fonseca da Silva foi particularmente relevante. Conhecido como "Soldado do Proerd", Jucimar era ex-policial militar e ex-vereador pelo PR (atual PL) em Manacapuru, Amazonas. Como Chefe da Divisão de Consignação em Benefícios do INSS, ele liderou um comitê interno que "investigou" as suspeitas sobre a Conafer em 2022.


O relatório final de Jucimar, baseado apenas em documentos fornecidos pela própria Conafer, concluiu não haver "nem grave e nem iminente risco" nos descontos da entidade. Essa "investigação" ocorreu quando já havia um inquérito da Polícia Federal em andamento e múltiplos alertas internos sobre fraudes.


Ingrid Ambrozi, servidora da diretoria de Jobson de Paiva, produziu uma nota técnica defendendo a "presunção da boa-fé" em relação à Conafer. Sua análise, que não tinha poder de decisão mas influenciou fortemente o processo, baseou-se exclusivamente em documentos apresentados pela própria entidade investigada, considerando o "contexto da pandemia" como justificativa para as irregularidades.


A presença de Ingrid Ambrozi nos quadros do INSS desde pelo menos 2003 e sua ascensão a posições-chave coincidindo com o período de maior crescimento das fraudes levanta questões sobre a penetração de longo prazo do esquema na estrutura do órgão.


A CPMI como Cortina de Fumaça


A análise da composição e dos primeiros movimentos da CPMI revela sinais claros de que ela pode servir mais para encobrir responsabilidades do que para esclarecê-las. O senador Carlos Viana (Podemos-MG), eleito presidente da comissão, foi figura central na onda bolsonarista de 2018 e mantém posições críticas ao governo Lula.


Viana, que teve pouco protagonismo durante seu mandato, subitamente ganhou destaque ao assumir a presidência da CPMI. Suas declarações iniciais, embora prometendo "isenção", revelam um foco narrativo específico: concentrar as investigações no período mais recente (governo Lula) quando as fraudes se tornaram visíveis, evitando aprofundar as responsabilidades históricas dos governos que criaram e consolidaram o esquema.


Carlos Viana preside a CPMI, ao lado do vice-presidente, Duarte Jr., e do relator, Alfredo Gaspar - Fonte: Agência Senado
Carlos Viana preside a CPMI, ao lado do vice-presidente, Duarte Jr., e do relator, Alfredo Gaspar - Fonte: Agência Senado

Uma das principais estratégias da "cortina de fumaça" é inverter a narrativa temporal. Embora os dados mostrem claramente que as fraudes começaram no governo Temer e se consolidaram sob Bolsonaro, parte da comissão tenta focar exclusivamente no período 2023-2024, quando os números explodiam devido aos contratos fraudulentos já estabelecidos.


Como observou o deputado Pedro Campos (PSB-PE), líder do PSB na Câmara: "Vê-se um escândalo de corrupção que começou num governo e continuou no seguinte [...] Achar que o melhor lugar para investigar isso é dentro de uma CPI, no próprio Congresso Federal, não me parece inteligente. O que a gente vê, na verdade, é uma tentativa de criar uma cortina de fumaça".


A própria dinâmica da CPMI favorece essa inversão narrativa. Com mais de 800 requerimentos já apresentados, muitos focam exclusivamente em figuras do atual governo, como o irmão do presidente Lula, José Ferreira da Silva (Frei Chico), que é vice-presidente do Sindnapi, uma das entidades investigadas.


Analistas políticos alertam que a CPMI será marcada por "forte debate e tentativas de politização das investigações". Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP) chegou a alertar explicitamente para o risco de o governo usar a CPMI como "cortina de fumaça" para desviar a atenção das pautas da oposição.


O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) já sinalizou que usará a comissão para "cobrar investigações rigorosas", mas sem mencionar as responsabilidades históricas dos governos de direita que criaram as condições para o esquema.


As conexões políticas obscuras


Carlos Lopes
Carlos Lopes

A figura de Carlos Roberto Ferreira Lopes, presidente da Conafer, revela conexões profundas com o sistema político brasileiro. Além de ser um proeminente pecuarista do agronegócio, Lopes construiu uma rede de influência que atravessa diferentes espectros políticos.


Um de seus principais aliados é o senador Francisco Rodrigues (PSB-RR), a quem Lopes chama de "amigo e orientador". Rodrigues já foi flagrado com dinheiro na cueca em operação da Polícia Federal e defendeu o garimpo em terras indígenas. Seu avião foi flagrado circulando em garimpo ilegal em terra Yanomami em 2018.


Lopes também manteve relações próximas com diferentes governos. Em novembro de 2024, cinco meses antes da Operação Sem Desconto, ele assinou um Protocolo de Intenções com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A Conafer conseguiu 31 reuniões oficiais com representantes do governo federal só em 2024, a maioria com os ministérios da Agricultura e das Comunicações.


Enquanto a Conafer recebia centenas de milhões em repasses fraudulentos do INSS, Carlos Lopes diversificava agressivamente seus negócios pessoais. Entre 2020 e 2024, ele abriu empresas de genética bovina, uma loja de arte indígena, uma mineradora e até uma holding nos Estados Unidos chamada Farmlands.


Terra Bank logo
Terra Bank logo

Mas o mais revelador foi a criação do Terra Bank em outubro de 2021, no auge do aumento dos repasses do INSS à Conafer. Embora oficialmente pertencesse ao empresário Cícero Santos, documentos obtidos pelo Intercept mostram que o verdadeiro dono do banco digital é o próprio Lopes através de sua holding americana.


A Polícia Federal identificou transferências diretas entre a Conafer, Carlos Lopes, Cícero Santos e sua esposa no valor de R$ 812 mil entre 2021 e julho de 2023. O Terra Bank opera como fintech sem autorização do Banco Central, oferecendo serviços bancários voltados para o agronegócio e utilizando a imagem de indígenas em sua propaganda.


Nelson Wilians
Nelson Wilians

Uma das revelações mais explosivas das investigações é o envolvimento do escritório do advogado Nelson Wilians, um dos mais famosos do país. Relatórios do Coaf apontam movimentações suspeitas na ordem de R$ 4,3 bilhões entre 2019 e 2023 envolvendo o escritório.


O montante bilionário justificou pedidos de convocação de Wilians na CPMI, especialmente devido à sua relação com o empresário Maurício Camisotti, um dos principais alvos da Operação Sem Desconto. Investigadores suspeitam de lavagem de dinheiro através de transações aparentemente legítimas, como a compra de imóveis e "adiantamentos de honorários" de valores astronômicos.


A blindagem institucional


Leonardo Rolim, que presidiu o INSS durante período crucial das fraudes (2020-2021), desempenhou papel fundamental na proteção do esquema criminoso. Foi ele quem assinou a portaria que retirou de Alessandro Roosevelt a atribuição de fiscalizar a Conafer, transferindo-a para uma diretoria mais "amigável".


Rolim justificou sua decisão como parte de uma "reestruturação" organizacional, mas a cronologia sugere motivação bem diferente. A mudança ocorreu exatamente quando Roosevelt estava descobrindo e documentando as fraudes da Conafer. Dois meses depois, a nova diretoria liberou os repasses que Roosevelt havia bloqueado.


Posteriormente, Rolim foi promovido novamente à Secretaria de Previdência, demonstrando que sua proteção ao esquema fraudulento não apenas não foi punida como foi recompensada com ascensão na carreira.


José Carlos Oliveira representa talvez o caso mais emblemático de como o esquema de fraudes foi protegido e premiado institucionalmente. Como diretor de benefícios do INSS, ele criou o comitê que "investigou" e absolveu a Conafer em 2022.


A investigação comandada por Oliveira foi uma farsa completa. Liderada por Jucimar Fonseca da Silva (o ex-vereador do PL), baseou-se exclusivamente em documentos fornecidos pela própria entidade investigada e ignorou completamente os inquéritos policiais e alertas técnicos já existentes.


O resultado da "investigação" foi usado pelo próprio Carlos Lopes para tentar escapar de intimação da Polícia Federal, alegando já ter sido "inocentado" pelo INSS. Longe de ser punido por essa farsa, Oliveira foi posteriormente promovido a presidente do INSS e depois a ministro do Trabalho e Previdência no governo Bolsonaro.


O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou transações suspeitas entre um sócio de Oliveira e sócios de Carlos Lopes, sugerindo benefícios financeiros pela proteção oferecida.


As vítimas silenciadas


Por trás dos números bilionários estão milhões de brasileiros idosos que tiveram seus parcos recursos subtraídos por organizações criminosas. A auditoria da CGU revelou que 97,6% dos beneficiários entrevistados não autorizaram os descontos, demonstrando a natureza massivamente fraudulenta do esquema.


Muitos aposentados vivem com apenas um salário mínimo e viram descontos de até R$ 79 mensais sendo retirados de suas aposentadorias. Para uma pessoa que recebe R$ 1.412 (salário mínimo), isso representa mais de 5% de sua renda mensal sendo desviada para enriquecer organizações criminosas.


O perfil das vítimas torna o crime ainda mais hediondo: idosos, muitos com baixa escolaridade e dificuldades com tecnologia, que foram deliberadamente escolhidos como alvos por sua vulnerabilidade. A suspensão dos extratos em papel durante a "transformação digital" de 2017 deixou milhões deles sem meios de acompanhar seus benefícios.


Uma das facetas mais perversas do esquema foi o uso de comunidades indígenas como fachada para legitimar as operações da Conafer. Carlos Lopes se apresenta como "liderança indígena" e usa cocares e adereços em eventos públicos, embora não tenha reconhecimento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).


Líderes indígenas relataram ao Intercept que o "modo operante" da Conafer é "oferecer caminhonete locada e salário para as lideranças" em troca de apoio e legitimidade. A organização bancava atividades sociais, campeonatos de futebol e assembleias nas comunidades, criando uma rede de dependência e cooptação.


A Conafer chegou ao ponto de organizar mutirões previdenciários com Unidades Móveis Flutuantes da Previdência Social, criando a impressão de que ajudava indígenas a acessar benefícios quando na verdade estava preparando o terreno para descontos fraudulentos.


A resposta governamental


A diferença fundamental entre os governos anteriores e o atual foi a resposta às fraudes descobertas. Enquanto Temer e Bolsonaro ignoraram, facilitaram ou protegeram o esquema, o governo Lula desencadeou uma resposta imediata e eficaz.


A Operação Sem Desconto, deflagrada em abril de 2025, foi resultado de dois anos de investigações coordenadas entre a Polícia Federal, a CGU e outros órgãos de controle. A operação resultou em:


  • Suspensão imediata de todos os acordos suspeitos

  • Bloqueio de R$ 2,8 bilhões em bens dos fraudadores

  • Prisão de 8 pessoas ligadas ao esquema

  • Afastamento de 5 dirigentes do INSS

  • Devolução de mais de R$ 1 bilhão aos aposentados em tempo recorde


Uma das ações mais significativas foi o acordo firmado pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Supremo Tribunal Federal para ressarcimento imediato das vítimas. Em menos de um mês, mais de 1,6 milhão de beneficiários receberam R$ 1,084 bilhão em suas contas, valores corrigidos pela inflação.


Essa solução evitou que cada vítima tivesse de entrar com ação individual na Justiça, processo que levaria anos e deixaria milhões de idosos sem reparação. A transparência foi assegurada por auditorias internas e acompanhamento dos órgãos de controle.


O governo também implementou medidas preventivas para evitar novos golpes:

  • Biometria obrigatória para toda autorização de desconto

  • Redução drástica no número de servidores com acesso a senhas críticas (de mais de 3.000 para apenas 6 pessoas)

  • Novos sistemas de monitoramento em tempo real

  • Campanhas de orientação para aposentados e pensionistas


Por que a CPMI é uma Farça: A inversão da responsabilidade temporal


A análise detalhada das evidências revela que a CPMI do INSS corre o risco de se tornar exatamente aquilo que seus críticos denunciam: uma cortina de fumaça para proteger os verdadeiros responsáveis pelas fraudes. A tentativa de focar as investigações no período 2023-2025, quando as fraudes se tornaram visíveis devido aos contratos estabelecidos anteriormente, representa uma inversão deliberada da responsabilidade temporal.


Os dados são inequívocos: as fraudes começaram no governo Temer, consolidaram-se sob Bolsonaro e foram descobertas e combatidas no governo Lula. Qualquer investigação séria deveria concentrar-se nos períodos de 2016-2018 e 2019-2022, quando as bases legais foram flexibilizadas e os mecanismos de proteção foram destruídos.


A composição da CPMI e seus primeiros movimentos sugerem uma estratégia deliberada de proteger figuras-chave que facilitaram ou protegeram o esquema. Nomes como Leonardo Rolim, José Carlos Oliveira, e os próprios ex-presidentes que criaram as condições para as fraudes parecem estar sendo poupados do escrutínio mais rigoroso.


Ao mesmo tempo, há uma concentração desproporcional de atenção em figuras marginais ou simbólicas, como o irmão do presidente Lula, que embora deva ser investigado se houver indícios, representa uma fração mínima do problema real.


O timing da criação da CPMI também levanta suspeitas. A comissão foi instalada exatamente quando as investigações da Polícia Federal e da CGU estavam avançando rapidamente e produzindo resultados concretos. Em vez de fortalecer esses órgãos técnicos, optou-se por criar uma arena política onde a narrativa pode ser mais facilmente manipulada.


Como observaram diversos analistas, a própria existência da CPMI pode prejudicar as investigações em curso, criando conflitos de competência e dando aos investigados múltiplas instâncias para protelar ou confundir os processos.


A verdadeira agenda por trás da CPMI parece ser tripla:

  1. Desviar a atenção das responsabilidades históricas dos governos Temer e Bolsonaro

  2. Criar narrativas alternativas que responsabilizem o governo que descobriu e combateu as fraudes

  3. Proteger a rede de interesses políticos e empresariais que se beneficiou do esquema


Para que a CPMI cumpra seu papel constitucional de esclarecer a verdade, seria necessário:


  1. Foco temporal correto: Concentrar as investigações nos períodos 2016-2018 e 2019-2022

  2. Convocação dos verdadeiros responsáveis: Leonardo Rolim, José Carlos Oliveira, e outros que protegeram o esquema

  3. Análise das mudanças legislativas: Investigar quem promoveu e aprovou as flexibilizações que facilitaram as fraudes

  4. Rastreamento completo dos recursos: Seguir o dinheiro até seus beneficiários finais, incluindo as redes de lavagem

  5. Responsabilização política: Identificar quais autoridades tinham conhecimento das fraudes e optaram por não agir


A atual configuração da CPMI, com sua composição política e agenda aparente, sugere que nada disso acontecerá de forma adequada. O que se vislumbra é mais um capítulo da longa tradição brasileira de investigações que servem mais para encobrir do que para esclarecer, protegendo os poderosos enquanto punem os subalternos.


A farça está montada. Resta saber se o público brasileiro se deixará enganar novamente por essa cortina de fumaça ou se exigirá uma investigação verdadeiramente séria sobre uma das maiores sangrias de recursos públicos da história recente do país.

 
 
 
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